CAPÍTULO 4

Respiro fundo enquanto ultrapasso o ladrilho preto e branco do imenso hall de entrada de casa. Onde diabos eu estava com a cabeça quando fiquei feliz por Alison ter ido me receber no aeroporto? Deveria ter sido óbvio desde o início o fato de que ela só estava ali a pedido de Charles, e não por mim. Não sei o que eu estava pensando ao me deixar levar pela crença de que talvez, só talvez, o tempo que tínhamos passado longe um do outro havia feito com que ela sentisse falta da nossa amizade como eu senti.

Mas é claro que eu estava errado. E não por falta de sinais: nos quase três meses em que estive em Nova York, Alison não me mandara uma mensagem sequer. Não ligara uma vez. Mesmo após o meu acidente durante o show, não recebi nem um sinal de fumaça vindo dela. E mesmo assim, como o idiota que era, eu ainda me importava.

Alison não sentia minha falta. Não sentia falta da nossa amizade, não sentia falta de nada que me envolvesse. E por que sentiria? Ela tinha o Bryan agora. Seu mais novo e perfeito melhor amigo, parceiro de dança e pro inferno com o resto. Que fossem muito felizes juntos. Que ficassem amigos para sempre enquanto dançavam na chuva debaixo de um maldito arco-íris.

Latidos vindos do fundo do corredor enchem meus ouvidos e esqueço repentinamente o porquê de estar tão irritado quando vejo a pequena ferinha alegre que vem correndo até mim, língua pra fora, rabo abanando e passo apressado.

— Loki! — eu chamo, e quando o meu cachorro late em resposta, não dou a mínima para o ombro e braço imobilizados e simplesmente me abaixo para pegá-lo no colo, sendo recompensado com festa e várias lambidas no queixo. — Quem é o garotão do papai? Quem é o garotão?

Ele late alto.

Lorde Comilão Destruidor de Sapatos – ou simplesmente Loki, – tem sido o grande amor da minha vida desde os meus doze anos de idade, quando o encontrei dentro de uma caixa de papelão enquanto andava de skate pela rua. Não iria esquecer nunca o sentimento que encheu meu peito ao vê-lo ali, indefeso e sozinho, completamente abandonado à própria sorte com tão poucos dias de vida.

Felizmente, não precisei implorar muito para que meus pais me deixassem ficar com ele, – minhas duas irmãs mais velhas sabiam ser bem persuasivas quando necessário e elas queriam ficar com o cachorro tanto quanto eu. Sendo assim, depois que o levamos para o veterinário e compramos tudo o que ele precisaria para ficar bem durante seus primeiros meses de vida, eu (que secretamente sempre fui o maior nerd fascinado por filmes de super heróis) decidi que o chamaria de Loki (que apesar de herói não ter nada, ainda assim conseguia ser o mais legal de todos eles).

E agora aqui estava ele, seis anos de idade, saudável e o meu maior parceiro de aventuras. Quase morri de tristeza por não poder levá-lo comigo para Nova York, mas não podia mantê-lo no apartamento que dividia com Sebastian quando nenhum de nós dois mal parava em casa. Meu cachorro tinha crescido numa casa grande e cheia de gente: eu nunca o deixaria confinado a uma solitária.

— E aí, campeão? As bruxinhas tem tratado você bem? — perguntei, fazendo carinho atrás das suas orelhas peludas. — Pode me contar tudo. Dou minha palavra de honra de que haverá retaliação.

— Sem essa, Zaden. Temos tratado ele até melhor do que você.

— Ah, é mesmo? Ela está dizendo a verdade, Loki? — um latido resoluto. — Hmm, a sua história não bate com a versão dele, Zara.

— Ela é uma mentirosa. Sou eu quem tem tomado conta do Loki — mais uma voz se junta à discussão.

— Cale a boca, Zoe. Você mal se lembra de escovar os dentes.

— Pelo menos é por esquecimento. E você, que dorme sem tomar banho por pura preguiça?

— Sua...

Gargalhei, enquanto me colocava de pé e encarava minhas duas irmãs mais novas.

Tendo crescido como o filho do meio e único homem entre quatro mulheres, a minha vida tem sido uma aventura repleta de emoções, principalmente pelo fato de todas as minhas irmãs serem extremamente expressivas e tagarelas, – a habilidade de não conseguir fechar a matraca certamente era uma característica de família.

— Meninas... — comecei, andando até onde as duas estavam, sendo seguido de perto por Loki. — Minhas pequenas bruxinhas. Não vão começar a brigar entre si para ver quem ganha o prêmio de ser a mais fedorenta, vão? Mamãe não ficaria nada orgulhosa se soubesse dessa história. Além do mais, o irmão de vocês está de volta. Não vou ganhar nem um abraço de boas vindas?

E, como se estivessem só a espera de um convite, sou completamente envolvido pelas duas, que agarram minha cintura com força.

— Estou tão feliz que você voltou! — Zoe disse, me apertando um pouco mais. Engasguei, sentindo um pouco do ar escapar dos meus pulmões. — Vi o vídeo da sua queda na internet. Zara disse que você tinha morrido!

— Zara! — eu a repreendi.

— Foi só uma pegadinha! Não sabia que ela seria tão burra de acreditar!

— Zara Coralie LeBlanc! — A voz da minha mãe ressoou pelo recinto. — Não chame a sua irmã mais nova de burra. E peça desculpas agora por ter feito piada sobre uma atrocidade dessas!

Ela bufou – tomando o maior cuidado para não ser ouvida por nossa mãe, é claro – e então pigarreou, se afastando o suficiente de mim e de Zoe para poder olhar em nossos olhos (era uma regra aqui em casa que, sempre que fôssemos nos dirigir ao outro com sinceridade, fizéssemos isso olho no olho):

— Zaden, Zoe. — Zara começou, solenemente. — Peço desculpas por usar vocês dois para fazer piada com uma coisa tão séria. Juro que da próxima vez será algo mais leve.

— Ora, venha aqui, sua pestinha... — mamãe deu um passo na direção dela, que logo achou uma maneira de escapar da bronca, correndo com Zoe e Loki em seu encalço. Desistindo do sermão com um suspiro resignado, minha mãe alisou a frente de sua blusa de seda rapidamente antes de erguer o olhar para mim. — Ah, meu filhinho... Olha só para você. Está todo enfaixado.

Eu ri.

— Não exagere, mamãe. — Falei, me inclinando para beijá-la na bochecha. — Foi só um braço quebrado. Vou ficar novinho em folha logo em breve.

— Eu espero mesmo — ela disse, lamentando, antes de me dar um tapa atrás da cabeça.

— Ai!

— É isso que você ganha por ficar fazendo estripulia quando deveria estar apenas tocando guitarra! Onde já se viu dar um pulo daqueles sem mais nem menos?! Você não tem amor à sua vida? Amor à sua família? Foi para Nova York e esqueceu que tem mãe? Nem avisou que estava voltando para casa!

Fiz uma careta.

— Foi um acidente, mamãe. — Eu disse, tentando amenizar a situação, passando o braço bom pelos ombros dela enquanto andávamos pelo hall de entrada até as enormes portas francesas que davam para a sala de estar. — Tomei uma decisão estúpida na hora da empolgação e acabei tropeçando num fio que havia no palco, mas não foi nada demais. Veja, estou inteirinho aqui na frente da senhora, não estou?

Ela me olhou de cima a baixo, não parecendo muito convencida.

— Humpft. O que você tem comido por lá? Consigo enxergar claramente o contorno dos ossos do seu rosto.

— Impressão sua. Eu engordei três quilos desde que me mudei — prontamente lhe informei.

— De verdade? — balancei a cabeça em confirmação. — Hmm, mas mesmo assim ainda está muito magrinho. Logo mais falarei com o Pierre para preparar um almoço especial de boas vindas — bateu palmas, animada.

Respirei aliviado por ela ter finalmente encontrado uma distração.

— E o papai? — perguntei. — Na empresa em pleno sábado?

— Infelizmente, sim. Uma nova cláusula foi adicionada a um processo que um advogado novato pegou e o seu pai fez questão de supervisionar de perto para ter certeza de não perder nenhum detalhe. — Ela deu uma risadinha, sentando em sua poltrona de costume. — Você sabe como ele é.

Eu ri junto.

— Pode apostar que sei.

O meu pai vem de uma longa linhagem de advogados na França. Antes mesmo de ele nascer, o meu avô já era dono de uma renomada firma de advocacia que administrava em parceria com um amigo que também havia se formado em Direito, e o meu pai – como o primogênito exemplar que era, – cresceu sabendo o Código Penal Francês de trás pra frente. No entanto, quando ele estava prestes a entrar na faculdade, o tal sócio do meu avô (em quem ele confiava de olhos fechados) lhe passou a perna e tomou a firma dele.

Un lâche misérable, como o meu pai diria. Ou para melhor entendimento, um covarde desgraçado.

O fato é que, o desgraçado do velho levou praticamente todos os associados do escritório do meu avô, exceto por um sócio estadunidense que também era dono de uma firma nos EUA e que indicava clientes que estavam interessados em expandir seus negócios para a França – coisa que meu avô também fazia com grandes empresários franceses que planejavam adentrar no mercado norte-americano. E foi aí que a família LeBlanc se mudou para os Estados Unidos e se associou à firma Wright, que mais tarde se tornou a corporação Wright & LeBlanc Advogados, uma das mais caras e procuradas do país quando o assunto é gerenciamento jurídico de empresas, presidida atualmente por Timothée Leblanc e Louise Wright – que também costumam atender por papai e mamãe quando chamados por mim ou por uma das minhas irmãs.

Um ponto engraçado a ser levantado é que, apesar da maioria das pessoas pensar que o casamento dos dois foi pura conveniência e negociação entre herdeiros, a possibilidade é rapidamente descartada por qualquer um que já tenha passado cinco minutos conversando com eles: além dos toques e olhares melosos, é certo que a minha mãe cedo ou tarde vai vir com a frase "e quando menos esperava, já estava grávida pela quinta vez"!

Como posso dizer? Ela é uma mulher extremamente dedicada aos filhos.

— Mas mudando de assunto: Zelina e Zaya, como estão? — perguntei, me referindo às minhas irmãs mais velhas. — Essas desnaturadas só ligaram para mim quando souberam que eu tinha me machucado e nunca mais.

— Zelina está em uma segunda lua de mel com o marido e...

Outra lua de mel? Aquela dali não cansa, né?

— Ah, deixe a sua irmã ser feliz — mamãe ralhou, em tom de riso. — Eu dou todo o apoio. Estou louca para ser avó.

Arregalei os olhos.

— Ter cinco filhos já não foi o bastante pra senhora? — perguntei, perplexo. — Só o que falta agora é querer inventar mais um nome com a letra Z para colocar no seu futuro netinho.

— Ah, me deixe em paz — cruzou os braços, encabulada. — O nome de todos vocês é lindo e foi escolhido a dedo, sabia? Quase ninguém tem a inicial Z. Deveria se gabar de ter uma mãe tão criativa.

— Aham — murmurei, achando graça. — E Zaya, por onde anda?

— Em Paris, na casa da sua tia. Foi para lá no início da semana e está amando! Só fala com a gente em francês pelo telefone.

— Mamãe, falar francês é mais do que usar "salut" no começo e "au revoir" no final das frases — zombei, lembrando do quanto a minha irmã sempre odiou as aulas de francês que papai forçou todos nós a fazer quando crianças. — Porque se me lembro bem, foram só essas duas palavras que a Zaya aprendeu.

Minha mãe gargalhou, fazendo com que eu sorrisse de satisfação. Senti falta da risada dela.

— Você não tem jeito, Zaden! Sempre com a língua afiada, não é?

— Para não perder o costume — lhe dei uma piscadela, logo depois endireitando a postura. — Se a senhora me der licença, acho que vou descansar um pouco. Não tenho dormido direito esses dias.

— É claro que sim, meu filho. Está muito desconfortável? — perguntou, indicando o meu braço enfaixado com o queixo.

— No início, sim, mas agora nem tanto. Acho que já estou começando a me acostumar — falei, o que era ao mesmo tempo verdade e mentira. Sim, eu já havia me habituado ao desconforto, mas não estava nem perto de me acostumar com a realidade de não poder segurar uma guitarra. — Não se preocupe. Vou ficar bem logo.

— Suba devagar, está bem? — ela alertou, quando comecei a me encaminhar em direção às escadas. — E tome cuidado para não tropeçar.

— Não precisa se preocupar — repeti, revirando os olhos enquanto subia os degraus. Não importa o quão velho você seja, as mães sempre têm um jeito de fazer com que você se sinta uma criança.

Quando finalmente chego ao primeiro andar, passo direto pelas quatro primeiras portas – duas de cada lado do imenso corredor, – e vou logo até a última, girando a maçaneta de cristal do meu quarto com um clique baixo e suave.

Dando uma rápida olhada ao redor, dou graças a Deus por tudo continuar aparentemente do mesmo jeito e nenhuma das irmãs ter dado uma de intrometida aqui dentro. Não quero que nada meu fique fora de lugar, principalmente pelo fato de eu ter deixado a maioria das minhas guitarras aqui.

Penduradas na parede estão todas as minhas preciosidades, felizmente intocadas: a minha guitarra branca, a vermelha, a verde e a azul, lindas e em ordem. Os dois únicos suportes vazios me fazem sentir falta da segunda guitarra vermelha que levei comigo para Nova York e da que eu comprara toda em acrílico, a qual infelizmente não havia sobrevivido para contar história. (Não que alguém tivesse visto, mas eu tinha chorado por ela).

Tirando os sapatos, me deito na cama com um suspiro cansado, admirando todos os pôsteres de filmes e bandas estampados em uma das minhas paredes. Tudo parece estar tão igual e tão diferente ao mesmo tempo. Não passei mais de três meses longe de casa, mas parecem ter sido anos.

E, apesar de não ser o que eu queria, até que era bom estar de volta.

Me acomodo entre os travesseiros, tentando achar uma posição na qual eu não me sinta tão desconfortável. E quando finalmente pareço encontrar, meus olhos são atraídos para um porta-retrato antigo em cima da minha escrivaninha. É assim que sei que alguém andou mexendo aqui, penso, porque me lembro muito bem de tê-lo deixado guardado dentro de uma das minhas gavetas.

Fecho os olhos, determinado a ignorar a foto.

A última coisa de que preciso agora é ficar encarando uma fotografia onde Alison e eu estamos sorrindo como dois patetas no meu aniversário de dezesseis anos.

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