CAPÍTULO 29
Assim que chego em casa, subo correndo até meu quarto e vou direto pegar meu laptop para alterar a ligação de voz no telefone com Amélia para uma chamada de vídeo no FaceTime, eufórica por finalmente ter paz para conversar com ela sem estar saindo na correria da casa de Zaden e nem com metade da minha atenção focada no trânsito do caminho de volta. Me aconchego rapidamente em minha cama, minhas costas contra a cabeceira acolchoada e o laptop aberto sobre o meu colo.
— Ok. Antes de tudo, vamos recapitular: você vai mesmo voltar para casa mais cedo? Quando? Alguma coisa aconteceu? Seus avós já sabem? Sebastian já sabe? — perguntei logo de uma vez, praticamente tropeçando entre tantos questionamentos.
Do outro lado da câmera, quase desaparecida dentro de um enorme suéter lilás, Amélia sacudiu a cabeça, rindo:
— Vamos com calma, Ali, respira um pouco — ela disse, erguendo as mãos como se em um pedido para que eu diminuísse o ritmo. Respirei fundo a contragosto, ávida por informações. — Bom, primeiro de tudo: sim, minha volta para casa vai ser antecipada. Acabou sendo assim porque o professor responsável pelo curso de escrita criativa que estou fazendo recebeu de última hora uma proposta para ministrar um simpósio acadêmico na Rússia e vai precisar encerrar o semestre mais cedo. Em outras circunstâncias um substituto seria chamado, mas somos uma turma pequena e todos já estamos bem adiantados em nossos projetos literários, então concordamos unanimemente em finalizar o curso no decorrer desse mês – o que significa que depois eu vou estar oficialmente liberada para voltar para casa!
Diante de tal anúncio, não consegui segurar meu grito de comemoração, e tampouco Amélia. Permanecemos grunhindo de felicidade por longos segundos até eu cantarolar:
— Até o final do mês, Ames! Em menos de trinta dias você vai estar de volta em casa depois de quatro meses fora do país! Sério, eu mal consigo acreditar. A notícia é tão boa que parece mentira! — exclamei, tonta de felicidade. — Você já contou para o Sebastian?
— Ah, ainda não. Aposto que ele mal está tendo tempo para dormir por causa do itinerário da turnê, então não quero deixá-lo ansioso antes da hora. E além do mais... tem algo que eu ainda não te contei — ela disse, ajeitando a franja para longe dos olhos.
Me endireitei na cama.
— Tipo o quê?
— Bem, depois do anúncio de que o nosso curso terminaria mais cedo do que o previsto, o professor me chamou em particular para perguntar se eu tinha interesse em permanecer em Cambridge para me formar na Inglaterra. Ele disse que se por acaso minha resposta fosse sim, seria um grande prazer me auxiliar durante os próximos anos e me guiar para conseguir as melhores oportunidades que o mundo literário tivesse a me oferecer.
Fiquei sem palavras por um instante, analisando o significado do que ela acabara de contar.
— Amélia, meus parabéns! Isso é... Uau, isso é uma grande chance. Você já sabe o que vai decidir?
Minha amiga suspirou, balançando a cabeça em uma negativa.
— Não, mas tenho que admitir que estou muito balançada. Quero dizer — Amélia se apressou em emendar. — O convite foi uma tremenda honra, me pegou completamente desprevenida. Você sabe; escrever sempre foi mais uma forma de terapia para que eu conseguisse lidar melhor com os meus traumas e a minha ansiedade do que qualquer outra coisa, então fiquei muito emocionada pelo reconhecimento que recebi — ela disse, sem jeito, encarando as próprias mãos. — Enfim. Não tenho que dar uma resposta agora, então vou focar primeiro em terminar o projeto do livro no qual estou trabalhando, voltar para casa e pensar com calma no assunto. Mas e quanto a você? O que há de novo acontecendo?
— Ah, eu? — ecoei, um pouco despreparada pela mudança repentina de tópico. — Hmm, eu... tô bem. Hoje saí com a minha equipe de dança para fazer uma espécie de pesquisa de campo para decidirmos um local para executarmos nosso FlashMob.
— Um FlashMob? Tipo aquelas apresentações em locais públicos onde de repente pessoas aleatórias entre a multidão se juntam e performam um número de dança?
— Exatamente isso.
— Que incrível, Ali! — ela disse, sorrindo, o semblante pálido se iluminando de animação. — Você já tem uma data? Por favor, me diz que eu já vou estar aí para poder te assistir pessoalmente.
Eu inclinei a cabeça para o lado, sem esconder meu próprio sorriso.
— Pois parece que você anda com sorte, Ames, porque se tudo correr como planejado a apresentação vai acontecer lá para o fim do próximo mês, o que quer dizer que você já vai ter chegado há pelo menos algumas semanas.
Amélia assentiu, satisfeita.
— Que a sorte esteja sempre ao meu favor, então — falou, erguendo a mão e fazendo com os três dedos o sinal característico de Jogos Vorazes. Eu automaticamente fiz o mesmo, e nós duas rimos em reflexo. — A melhor recepção de boas vindas que eu poderia receber é assistir minha melhor amiga talentosíssima dançando outra vez — sorriu, erguendo uma sobrancelha conspiradora logo em seguida: — E conheço outra pessoa por aí que também deve estar morrendo de vontade de te ver dançar.
Revirei os olhos.
— Ah, estava demorando.
Ela piscou, se fazendo de inocente.
— Como vai Zaden LeBlanc, o nosso sagaz guitarrista de braço engessado?
— Que eu saiba, muito bem. E quando você voltar ele já nem vai estar usando o gesso — falei, logo depois decidindo que era melhor eu reformular: — Quer dizer, se não acontecer de ele acabar tropeçando na própria sombra e quebrar a cara em algum lugar. Aí talvez possa ser que você o encontre com algum membro engessado.
— É impressão minha ou eu acabei de sentir uma pitada de carinho na sua voz? — Amélia franziu a testa, um pequeno sorriso começando a surgir em seus lábios. — Por acaso aconteceu alguma coisa entre vocês dois que você propositalmente está ocultando de mim, senhorita Walters?
Por reflexo, imediatamente abri a boca para contradizê-la, mas as palavras morreram em minha garganta quando me dei conta de que negar seria uma mentira pra lá de descarada. Guardar segredo sobre o meu passado com Zaden era algo que eu vinha fazendo há tanto tempo que falar a respeito me parecia errado e terrivelmente constrangedor – contudo, eu sabia com toda a certeza que, caso a situação fosse inversa, eu ficaria muito magoada se a minha melhor amiga optasse por esconder algo assim de mim e ainda por cima mentisse quando questionada.
Foi ao enxergar as coisas por essa perspectiva que a culpa pesou esmagadora em meu peito: Amélia tinha confiado em mim sem reservas para dividir aspectos da sua vida que eram extremamente difíceis de serem compartilhados; estava mais do que na hora de eu começar a fazer o mesmo por ela.
— Não é tão fácil para mim falar sobre o assunto, mas... — pigarreei, tentando soar mais firme. — Mas para ser sincera, tem algumas coisas em relação a Zaden sobre as quais eu ainda não te contei.
Ela assentiu, inclinando cautelosamente a cabeça para o lado.
— Alison, você sabe que eu vou estar sempre aqui para te escutar, não importa o quê, não é? Você não precisa ter pressa — assegurou, com um daqueles seus pequenos sorrisos carregados de sinceridade. — Quando estiver pronta para me contar, eu vou estar pronta para te ouvir.
Ao sentir a completa compreensão naquela promessa de lealdade, um profundo e involuntário suspiro de gratidão escapou de meus lábios, e me vi contando tudo o que ainda não tinha dito a ela no espaço de tempo entre uma respiração e outra.
Contei para Amélia desde o momento em que Zaden e eu superamos o desentendimento inicial que tivemos ao nos conhecermos até quando começamos a nos dar bem. Contei sobre como em um piscar de olhos nos tornamos inseparáveis e como estávamos sempre encontrando novas atividades para fazermos juntos. Contei a ela da forma como nos tornamos melhores amigos e sobre como inesperadamente acabei me apaixonando por ele e tomando coragem para dar o primeiro passo, mesmo que mil e uma dúvidas começassem a criar raízes em minha mente por causa dos comentários maldosos que circulavam no Instituto. E, por fim, eu disse a ela sobre como essas dúvidas acabaram por provocar um enorme mal entendido e criar uma barreira que manteve Zaden e eu separados durante anos.
— E eu até tenho vergonha de dizer isso, mas a verdade é que teríamos continuado assim se Zaden não tivesse cismado de ficar no meu pé desde que o dia em que voltou de Nova York — confessei, dando o braço a torcer para a determinação dele. — Aquele boboca estava sempre me perseguindo e se oferecendo para me ajudar ou para ir comigo a lugares aonde não tinha sido chamado, além de insistir em todas as ocasiões possíveis para que fizéssemos as pazes. Acabei sendo vencida pelo cansaço e achei que concordar com o plano dele seria uma oportunidade para deixar tudo o que tivemos para trás e esquecê-lo de vez, mas... não foi bem o que aconteceu — eu concluí, com um encolher de ombros.
— Alison... — Amélia começou, sacudindo a cabeça de leve, como se ainda estivesse processando. — Meu Deus. Eu desconfiava de que devia haver algo mais por trás da sua aversão declarada ao Zaden, mas nunca imaginei que seria uma história dessas — ela falou, uma expressão solidária tomando cada traço de seu rosto. — Ah, minha amiga. Eu sei muito bem o quão difícil é ter que guardar uma mágoa só para si mesma; fiz isso durante anos. Achei que nunca conseguiria ter segurança para me abrir com ninguém além dos meus avós, mas então conheci Sebastian. Contar para ele como eu realmente me sentia foi um divisor de águas para mim. Eu não tinha ideia do quanto o ato de mascarar meus traumas e esconder minhas cicatrizes mais antigas me fazia mal até finalmente falar sobre elas com outra pessoa.
Assenti em silêncio, sabendo que não tinha que me preocupar em explicar mais nada. Amélia entendia. Em poucas palavras, ela tinha sintetizado de forma exata a maneira como me senti depois de contar a razão do meu afastamento para Zaden: completamente esgotada, mas ainda assim com uma estranha sensação de alívio. Foi como se eu carregasse nas costas uma bagagem muito maior do que eu podia aguentar e só depois de muito tempo finalmente a deixasse cair. Falar com ele da minha insegurança, de toda a mágoa acumulada e de como eu me sentia sozinha havia doído tanto – tanto ao ponto de eu não conseguir segurar minhas próprias lágrimas enquanto falava. Foi assustador.
E era essa a consequência de acumular sentimentos ruins dentro de si e nunca procurar ajuda de ninguém para tratá-los: uma hora ou outra eles acabavam transbordando de alguma forma. Na grande maioria das vezes, das piores formas possíveis.
— Eu sei disso agora — reconheci, soltando o ar. — Antes eu achava que tinha que manter tudo só para mim por uma questão de orgulho, sabe? Para poder me olhar no espelho e dizer que estava dando conta de tudo sozinha. A minha mãe sempre me ensinou desde cedo que mulheres bem sucedidas não tinham tempo para ficarem tristes. Então eu meio que só comecei a fingir que nada de ruim estava acontecendo e procurei me ocupar o máximo possível, me esforçando dobrado para ser a melhor em tudo que pudesse. Achei que ficar triste e chorar era para fracassados, mas aí descobri que era só uma coisa normal de seres humanos — eu ri, sem graça. — Mas me senti muito melhor depois de ter colocado tudo pra fora. E para ser sincera, a cada vez que falo sobre isso com alguém, fica mais fácil. Da primeira vez que toquei no assunto com Charles, acabei chorando igual idiota.
— Ei. Você não é idiota por ter chorado — Amélia prontamente contrapôs. — É uma pessoa que tem emoções como qualquer outra. E sobre o que a sua mãe disse, sinto ter que discordar, mas mulheres bem sucedidas devem sim ter tempo para se sentirem da maneira como quiserem. Elas são bem sucedidas, afinal. O mínimo a que têm direito é derramar algumas lágrimas de vez em quando.
— Eu acho... — hesitei, sem saber ao certo o que dizer. — Eu acho que pode ser que você tenha razão.
— Eu também acho isso — minha amiga riu baixinho, com um sorriso tímido. Não pude evitar rir junto a ela; o constrangimento que Amélia sentia por estar reafirmando a si mesma era muito meigo. Senti uma pontada de orgulho por ela: um ano atrás a sua insegurança e receio de falar nunca a permitiriam fazer tal coisa. — Mas mudando de assunto... como as coisas ficaram entre você e o Zaden?
— Eu decidi que seríamos só amigos por enquanto — respondi, analisando despretensiosamente a ponta de uma das minhas tranças. — Eu sei que ele ficou decepcionado, mas é assim que as coisas têm que ser. Da outra vez fomos de 0 a 100 muito rápido, tão eufóricos que não paramos para pensar direito sobre nada. Desta vez, eu vou fazer de tudo para não perder o controle sobre o nosso relacionamento.
Amélia suspirou, apoiando o queixo sobre a mão.
— O que foi? Você não acha que eu fiz bem? — Franzi a testa, sem saber como interpretar o silêncio dela.
— Na verdade, eu acho que você fez bem, sim — ela assentiu.
Estreitei os olhos, esperando a continuação.
— Mas...?
— Mas eu também acho que você vai acabar se frustrando se continuar com a mentalidade de que pode controlar qualquer coisa que estiver ao seu redor. Tudo está em constante mudança na nossa vida, não importa o quanto nos esforcemos para continuar na mesmice. E fica ainda mais difícil de se controlar quando se trata de um relacionamento entre duas pessoas de personalidades fortes como você e o Zaden — Ames disse, olhando para mim com uma expressão serena através da câmera. — Por agora ele está cedendo para que você consiga se manter na sua rede de segurança, mas uma hora terá que ser a sua vez de ceder por ele.
Naquela noite, vou dormir com o eco das palavras de Amélia na cabeça. Será que estou mesmo me agarrando a uma rede de segurança? Que quero que continuemos sendo só amigos para não arriscar pôr tudo a perder novamente? Será que estou mesmo disposta a entrar de cabeça em um relacionamento de verdade com Zaden tendo consciência de que as chances de que ainda sintamos alguma vontade de olhar um na cara do outro caso tudo dê errado são mínimas?
Tenho um sobressalto quando meu celular vibra ao lado do meu travesseiro. Checo a notificação rapidamente e vejo que é uma mensagem de Zaden.
Espero que não tenha esquecido das suas aulas de francês
Você tem um professor muito requisitado
Reviro os olhos, apertando os lábios para evitar o sorriso que surge automaticamente em meu rosto.
Eu não esqueci
(E se você é mesmo tão requisitado assim, por que precisa ficar me implorando para dar aulas?)
A resposta dele é imediata:
Digamos apenas que eu sou muito comprometido com o meu trabalho ;)
Dou uma risadinha.
Aham, sei
Quem não te conhece que te compre
Zaden manda outra mensagem no mesmo instante em que envio a minha:
Eu te encontro na saída do Instituto amanhã
De lá vamos direto para sua casa
Bonne nuit, ma princesse
Ignoro o frio na barriga que sinto ao imaginar a última mensagem sendo pronunciada pelo sotaque francês grave da sua voz e respondo rapidamente:
Boa noite
Tchau
E então desligo o celular, virando para o lado e fechando os olhos. Mais e mais questões não respondidas insistem em perturbar a minha mente, mas vou afastando todos os pensamentos para longe. Eu estou no caminho certo, digo a mim mesma. Estou com tudo sob controle.
Ao menos por enquanto.
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