CAPÍTULO 27

O guincho que eu havia chamado para retirar os veículos da estrada e transportá-los até uma oficina já estava pronto para ir embora quando me virei para me despedir do dono do outro carro envolvido no acidente:

— Bem, tudo está resolvido agora. Me contate assim que o orçamento do conserto do seu carro estiver pronto e eu cuidarei para que o valor seja transferido para a sua conta bancária o quanto antes — eu disse, entregando de volta o telefone que o homem havia me dado para que eu pudesse salvar meu número na sua lista de contatos. Com apenas alguns minutos de conversa e um acordo mais do que generoso para pagar pelos danos feitos ao carro dele, eu o havia convencido a desistir de chamar a polícia. Além do mais, o cara visivelmente havia perdido a disposição de acionar a justiça no momento em que me apresentei – pareceu se dar conta a tempo de que nunca venceria um processo judicial contra os LeBlanc. — E, mais uma vez, desculpe pelo que aconteceu. Sei como é estressante ter que lidar com gente irresponsável no trânsito.

— É. Foi um susto grande, mas no fim acabou não sendo nada grave, então tudo bem — ele concordou, estendendo a mão para um cumprimento amigável que eu rapidamente retribuí. — E correndo o risco de estar enganado, mas você não é o guitarrista daquela banda de rock que estourou no país inteiro alguns meses atrás? A The Noisy?

Assenti com a cabeça, abrindo um sorriso largo como sempre acontecia quando eu era reconhecido pelo meu trabalho.

— É, sou eu mesmo.

— Agora tudo faz sentido! — exclamou, sacudindo a cabeça em surpresa. — O seu sobrenome é conhecido, mas eu sabia que já tinha visto o seu rosto em algum lugar. Cara, você é animal! Conto nos dedos de uma mão só os guitarristas que conseguem fazer o que você faz. É simplesmente inacreditável o jeito como você toca tão suave em "Amélia", mas faz um solo de guitarra pesado pra caralho em "Only For a Night".

Meu sorriso ficou ainda maior.

— Poxa, muito obrigado. Já sei que você entende de rock — eu brinquei, piscando.

"Only For a Night" era uma das músicas mais eletrizantes do nosso álbum e muito provavelmente a minha favorita. Todo mundo era obcecado por "No Matter How I Try, I Can't Get You Off My Mind" – o que, cai entre nós, era completamente compreensível – porque a linha melódica da música deixava qualquer um doido de euforia, mas "Only For a Night" era algo fora do comum. Se tantos críticos a haviam definido como sendo "uma sinfonia musical complexa e esplêndida", não seria eu quem iria contestar.

O rascunho original de "Only For a Night" nasceu de um rompante enérgico, bem no meio da madrugada, quando os rapazes e eu tínhamos acabado de voltar do pós-show de uma das primeiras apresentações da banda em um clube noturno famoso. Estávamos todos reunidos no estúdio da minha casa, conversando e comendo uns hambúrgueres enormes, quando Sebastian de repente ficou com aquele olhar distante característico de quando uma letra nova surgia em sua cabeça. Nós já estávamos juntos como banda há pouco mais de um dois anos, e sabíamos muito bem o que aquela expressão significava. "Alguém arranja uma caneta para ele", eu disse, e Charles retirou uma do bolso interno da jaqueta no ato. Quando a inspiração para compor chegava até Sebastian daquele jeito, era absolutamente necessário que a letra fosse escrita à mão.

A primeira estrofe da música foi criada no verso de um panfleto amassado que Loren tinha no bolso.

Lembro que tudo aconteceu em um piscar de olhos: Seb começou murmurando a melodia e Charles e Loren foram desenvolvendo o arranjo da bateria em conjunto com o baixo até que o som finalmente pareceu se encaixar em um ritmo grave e profundo. A letra de "Only For a Night" foi terminada em uma hora e quarenta e sete minutos repletos de substituições e rabiscos. Não havia uma linha daquela música que não tivesse passado por inúmeras alterações, exceto pela primeira estrofe – aquela tinha sido um feixe de luz certeiro em meio a escuridão.

I've been always looking for someone who could make me ready to fight/ Someone that could get my heart burning into the flames and my blood beating wild/ A tidal wave that I could drown in and never come back to surface/ A thrill that grows around me and holds me so damn tight/ I would give everything I own to feel like this/ Even if only for a night*

*Eu sempre estive buscando alguém que me fizesse pronto para lutar/ Alguém que fizesse meu coração arder em chamas e meu sangue pulsar selvagemente/ Uma onda gigantesca na qual eu pudesse me afogar e nunca voltar à superfície/ Uma sensação que cresce ao meu redor e me prende com tanta força/ Eu daria tudo que eu tenho para me sentir assim/ Mesmo que somente por uma noite

Particularmente, Loren e eu sempre fizemos piada de Sebastian por ele ser um romântico incurável, mas uma coisa era indiscutível: nenhum de nós se permitia sentir tão intensamente e demonstrar tanta vulnerabilidade da maneira que ele conseguia fazer quando criava suas músicas. Cada uma delas era uma confissão sobre os sonhos dele, sobre seu medo de não realizá-los e, acima de tudo, sobre uma paixão secreta que o consumia por dentro.

E de paixões como essa eu entendia bem: convivia há anos com uma que parecia não se satisfazer em devorar cada pequeno pedaço do meu coração, mas era covarde demais para admitir.

Alison e eu tínhamos nos distanciado cerca de um mês antes da composição de "Only For a Night" e a tensão entre nós estava tão pesada na época que poderia ser cortada com uma faca; ela nem sequer olhava para mim. Dizer que era doloroso trabalhar com uma música daquelas sabendo que o "alguém" capaz de fazer meu coração arder em chamas estava bem ao meu lado e não aguentava passar cinco minutos no mesmo ambiente que eu era no mínimo um eufemismo.

No entanto, eu me encontrava em negação e me recusava a deixar transparecer que estava abalado – e descontava tudo quando tocava. O interlúdio que separava os vocais de Sebastian e Loren (o resultado do contraste entre o tom de voz rouco e aveludado de um com o tom suave e sonante do outro era inacreditável) se iniciava com uma breve introdução da bateria para então ser protagonizado por um solo de guitarra que eu só podia descrever como sendo pura loucura.

Sem qualquer prenúncio ou aviso, eu simplesmente adentrava na música elevando-a de uma melodia quase sussurrada a um agudo de guitarra estarrecedor. Eu percorria as cordas do instrumento e as unia em acordes melindrosos que exigiam muito controle para que o tom não fosse quebrado antes de atingir seu clímax. A minha Stratocaster vibrava nas minhas mãos, rugindo potente o solo de guitarra com a maior carga emocional que já compus. Meus dedos ficavam mais e mais esfolados a cada ensaio realizado com o objetivo de dar os retoques finais no instrumental da música antes da gravação oficial, mas eu não me importava nem um pouco, porque valia a pena.

Em tempos como esses, quando eu me encontrava impossibilitado de tocar e tinha que ficar afastado da banda durante a nossa primeira turnê, o reconhecimento que eu recebia de pessoas aleatórias nas quais eu nem imaginava esbarrar era mais do que o suficiente. No fim, tudo o que prevalecia era o sentimento de realização e dever cumprido. Eu fazia o que amava e meu trabalho era apreciado por um número de gente tão grande que eu não podia especular. Isso era um consolo e tanto para o aperto causado pela saudade que eu sentia de estar em palco com os meus irmãos.

 Depois de mais alguns minutos de conversa agradável, me despedi do homem com um breve aceno de cabeça ao vê-lo adentrar no Uber que havia chamado pouco tempo atrás.

Consideravelmente mais calmo e com a consciência muito mais tranquila, me encaminhei silenciosamente até onde Alison conversava com Zara de pé em frente ao carro dela. Como eu não sabia ao certo sobre o que a conversa se tratava, me aproximei somente o bastante para poder escutar e aguardei calado um momento oportuno para poder me intrometer.

— (...) eu entendo, Zara. Mas como você esperava que ele pudesse te conhecer quando estava agindo como alguém que você não é? — Alison indagou, sua voz transmitindo o mesmo tipo de compreensão complacente que eu a tinha visto usar para falar com as meninas da sua turma de balé. — Aquela garota imatura que estava tentando fugir da responsabilidade de um erro que cometeu fazendo graça sobre a gravidade da situação não é você. Para ser sincera, nada do que aconteceu parece com algo que você faria. Nada mesmo.

— E eu não queria ter feito nada disso — minha irmã respondeu, balançando a cabeça assertivamente enquanto limpava o rosto, fungando. Fiz um esforço monumental para não ir até ela e consolá-la. A coisa que eu mais odiava no mundo era ter que ver as pessoas que eu amava chorando e não poder fazer nada a respeito. — A verdade é que eu só pedi ao Luca para me ensinar a dirigir porque queria ter um motivo plausível para me aproximar do Harvey sem parecer tão óbvia. Eu vi como ele é chegado aos amigos, então achei que... achei que seria uma boa maneira de tentar me enturmar. Pensei que seria melhor fingir ser a garota radical e engraçada que queria aprender a dirigir do que a esquisita fã de filmes de terror que eu realmente sou.

— Gostar de filmes de terror não te faz ser esquisita, Zara. Eu gosto de filmes de terror. Você me acha esquisita? — Alison ergueu uma sobrancelha, à espera de uma resposta.

— É claro que não, mas você... você e eu somos muito diferentes.

— Todos nós somos diferentes uns dos outros.

— Você não entende — Zara começou, tão baixo que quase não fui capaz de escutar o restante das suas palavras: — Alison, você é... você é o que qualquer garota gostaria de ser. Bonita, inteligente, estilosa, confiante. Todo mundo quer ser seu amigo naturalmente. Você não precisa mudar nada em si mesma para conseguir se encaixar.

— É aí que você se engana, Zara. — Alison respirou fundo, dando um passo para mais perto dela. — Eu tive que mudar muito para conseguir me encaixar. Tive que me endurecer, aguentar muita coisa calada e aprender a manter a cabeça erguida mesmo estando com o coração em pedaços. Fui a protagonista de inúmeros boatos maldosos no St. Davencrown durante quase todo o meu primeiro ano e só depois consegui superar tudo isso — ela fechou os olhos, fazendo uma leve careta enquanto engolia em seco. — Corrigindo: ainda estou superando. Há uma semana atrás eu nem mesmo conseguia tocar no assunto sem cair no choro, tudo isso por causa do tempo que passei fingindo. Sufoquei tanto a mim mesma e aos meus sentimentos que acabei magoando muita gente importante para mim. E estou te dizendo isso porque não quero que você seja como eu e finja ser alguém que não é. Sei por experiência própria que pode até funcionar a curto prazo, mas depois você só... se torna muito solitária e infeliz.

Ouvir essa confissão de Alison faz com que eu sinta um misto de emoções ao mesmo tempo; tristeza por todo o sofrimento que ela se obrigou a suportar sozinha e orgulho por ela ter escolhido se abrir e mostrar uma faceta de sua vulnerabilidade para ajudar a minha irmã quando poderia ter simplesmente falado alguma coisa genérica como "não se preocupe, tudo isso vai passar" e não ter dito absolutamente nada sobre si mesma. Aquele havia sido um passo gigantesco para Alison, e por dentro eu estava aplaudindo-a com muita força por ter sido maior que seus traumas.

De súbito, Zara se joga nos braços de Alison, ação que a pega tão despreparada quanto a mim.

— Fiquei com tanto medo de ter machucado alguém — ela confessou, soluçando. — Eu só queria parecer legal para fazer com que ele gostasse de mim. Não sabia que ia acabar causando um acidente. Fui burra e não pensei nas consequências, mas eu juro que não sabia.

Nesse momento, Alison vira o rosto na minha direção e seus olhos se fixam nos meus, surpresa e entendimento preenchendo suas íris castanhas. Eu sorrio para ela em silêncio, ternura e admiração martelando em meu peito.

— Ei — eu digo, enquanto vou me aproximando devagar. Toco o ombro de Zara com cuidado, e ela se vira imediatamente para enlaçar minha cintura em um abraço apertado. — Está tudo bem, ma petite sorcière.

— Eu juro que não queria arranjar problema pra você, Zaden. Eu juro. Eu não sabia. Je ne savais pas. Désolé, je ne savais pas. S'il vous plaît, croyez-moi. — Ela pediu desculpas, a voz embargada fazendo com que suas frases soassem quebradas.

Je ne connais. Tout va bien maintenant — falei, tranquilizando-a. Esfreguei suas costas de cima para baixo, sabendo que aquilo faria com que parasse de tremer. — Não precisa chorar, está bem? Qualquer um que não goste de você por quem você é não merece tê-la por perto, está ouvindo? Responda.

Zara fungou, concordando.

— Eu estou ouvindo — respondeu, obedientemente. Em situações como essas, era muito fácil enxergar o quanto ela ainda era nova e precisava de exemplos para seguir. Fiquei feliz de poder estar aqui para isso.

— É isso aí. Vamos, vá para o carro. Alison vai deixar a gente em casa — eu disse, ao passo em que Zara assentiu com a cabeça e seguiu para dentro do carro enxugando o rosto com a manga do casaco que estava usando.

Ela iria ficar bem.

Suspiro, então voltando minha atenção para a garota de pele negra e longas tranças de pé diante de mim, o meu primeiro instinto é o de tocar seu rosto. Me perco por um momento no arco bem desenhado de suas sobrancelhas e então nos cílios escuros que circundam seus olhos. Contorno o osso de seu nariz arredondado, deslizando o polegar sobre sua boca carnuda e macia.

— Nem em sonho é possível existir uma mulher que seja mais bonita que você — eu murmuro, em transe por alguns segundos. — Se você soubesse o tanto que eu quero te beijar agora…

— Zaden — ela adverte, baixando o olhar para minha boca antes de desviá-lo para longe. — A sua irmã está esperando. Acho melhor nós irmos embora.

— Me dá um beijo que a gente vai — pedi, encostando os lábios na pele logo abaixo da sua orelha.

Sorrio comigo mesmo ao ver os pelos da nuca de Alison se eriçarem com o contato. Mais do que justo: perdi as contas de quantas vezes já fiquei arrepiado só de olhar para ela.

— Depois, Zaden — insistiu, espalmando a mão no meu abdômen e então me empurrando levemente para trás. Encarei seus dedos abertos sobre a minha barriga coberta pela camisa e mentalmente desejei a não existência daquela peça de roupa. Pensamentos indecentes devem ter dado sinais de alerta no meu rosto, porque Alison adicionou: — E vê se controla essa sua imaginação depravada. Sua cara está ficando toda vermelha.

— Vou dar o meu melhor — prometi, sentindo meu rosto esquentar ainda mais.

— Muito bom. E depois preciso conversar com você sobre uma coisa — ela disse, séria de repente.

— Sobre o que é? — perguntei.

— Algo para conversarmos quando estivermos sozinhos e com mais tempo à nossa disposição, então vamos logo — dito isso, Alison virou as costas e se encaminhou para o lado do motorista do veículo.

Suspirei, frustrado por não tê-la beijado e ainda por cima recebido uma informação pela metade. Só o que me restava era me conformar e esperar pelo momento em que fôssemos apenas nós dois.

E eu estava ansioso por isso, porque também tinha algo a dizer.

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