CAPÍTULO 24
É quase frustrante pensar que passei os últimos três dias ensaiando um super elaborado pedido de desculpas para Zaden só para no final acabar sendo pega completamente de surpresa por ele e ter que trocar horas de planejamento por uma improvisação despreparada e gaguejante. O suporte inesperado que recebi veio na presença de Loki, que felizmente tornou menos tensa toda a conversa que Zaden e eu tivemos. Se não tivesse a guia de sua coleira para segurar, passaria a maior vergonha ao demonstrar o tremor nervoso das minhas mãos.
Em contrapartida ao meu estado emocional, Zaden parecia calmo e relaxado, e ele e eu caminhamos com Loki até uma cafeteria conceituada a duas esquinas de distância do parque, onde além de permitirem animais também serviam um chocolate quente divino conhecido por ser a especialidade da casa. Ocupamos uma mesa na área aberta do local, que havia sido construída para lembrar a estrutura de uma estufa. Há samambaias penduradas no teto e vasos de flores variadas decorando todas as mesas. Loki espirra suavemente ao cheirar uma planta exótica próxima do lugar onde estamos sentados, e Zaden e eu rimos baixinho enquanto nos sentamos um ao lado do outro.
— Vá com calma na hora de meter o focinho nas plantas, amigão — ele disse, fazendo carinho na cabeça branca e peluda do cachorro sentado comportadamente ao lado de sua cadeira. Loki é um cachorro de porte pequeno e exceto pelas manchas cor de caramelo em suas orelhas e abaixo de seu olho esquerdo, todo o seu pelo é branco e espevitado. Tento não sorrir feito boba com a imagem, mas logo dou a missão como perdida.
Quando encontrei Loki pela primeira vez, ele vinha saltitando nas pernas de Zaden pelo saguão da Mansão LeBlanc, com o rabo agitado e a língua para fora. Lembro claramente de ter entrado em pânico, porque além de ter medo de cachorros em geral, percebi que aquele em específico era uma bombinha de energia caótica e perseguidora – Loki corria atrás de mim para onde quer que eu fosse, e sempre conseguia surgir nos lugares mais improváveis de surpresa sem fazer nenhum barulho. Contudo, apesar de sua eletricidade e habilidade perturbadora para me dar sustos, ele era dono de uma personalidade adorável: era companheiro, alegre, inteligente e carinhoso, e frequentemente uma fonte de conforto nos dias em que eu me sentia cabisbaixa. Hoje, com quase seis anos de idade, Loki não tinha mudado absolutamente nada, exceto por uns quilinhos a mais.
Como se adivinhando ser objeto dos meus pensamentos, o cachorro vira a cabeça e olha diretamente para mim, esboçando uma expressão feliz que se parece em muito com um sorriso.
— Olha só para essa carinha linda — falei, me inclinando para tocar a ponta de seu nariz. — Quem vê nem imagina que é capaz de arruinar um par de botas Off-White.
Zaden olha para mim de lado, um dos cantos de sua boca se erguendo em um sorriso torto. Uma covinha aparece em sua bochecha, e tudo em que consigo pensar por um momento é em como é injusto alguém ser tão bonito.
— Eu lembro disso. Seus olhos ficaram cheios de lágrimas quando viram o estrago.
— E com razão. Aquelas botas eram meu presente de aniversário — justifico.
— Passei a semana inteira me preocupando em tomar cuidado para não deixar o embrulho ao alcance de Loki, mas justamente no dia em que ia te entregar acabei dando bobeira. Lamentável — Zaden balançou a cabeça em negação, um claro ato de dramaticidade. — Mas eu devia ter imaginado: ele sempre teve um faro especial para sapatos novos.
— Para qualquer tipo de sapato, você quer dizer — esclareci, lembrando das várias vezes em que flagrei Loki de pé apoiado na prateleira do closet de Zaden, numa tentativa descarada de abocanhar um de seus tênis.
— Essa parte é insignificante. O que importa é que graças ao meu filhote aqui eu te comprei botas novas de uma edição especial antes do lançamento — Zaden pontuou, pegando a minha mão por cima da mesa e trilhando as linhas da minha palma com o dedo indicador. Mordi os lábios, uma onda de arrepios indesejados subindo lentamente pelos meus braços. Era difícil voltar a me habituar com as sensações que tê-lo me tocando despertava. — Tive que cobrar vários favores para conseguir entrar na prioridade da lista de espera. E tudo isso para não ter o prazer de vê-las nos seus pezinhos nem uma vez sequer.
Encolhi os ombros, culpada. Aquelas botas tinham sido o último presente que eu aceitara de Zaden antes da nossa briga. Eram pares lindos de couro branco na altura do joelho, com a característica frase "for walking" da marca transcrita em fonte preta. Caí de amores por ela; fantasiava todos os dias com a oportunidade perfeita e a roupa perfeita para usá-las. Na época, como não tinham sido lançadas oficialmente, o valor de mercado ainda viria a ser divulgado, mas quando a coleção finalmente chegou às lojas, descobri que minhas botas haviam sido o presente mais caro que eu já recebera em toda a minha vida. E, juntamente com a descoberta do preço, veio também a constatação de que eu nunca poderia sair com aquelas botas sem ouvir cochichos na escola a respeito da garota bolsista e interesseira que ganhava esmolas do garoto rico e caridoso.
Não digo nada disso a Zaden, mas vejo sua expressão endurecer conforme ele mesmo chega à essa conclusão.
— Uma hora você vai ter que me contar quem foi o desgraçado que começou com a porra desses boatos, Alison.
Tento tirar minha mão da sua, mas ele não permite.
— Eu não preciso que você me defenda, Zaden — digo em voz baixa, sorrindo em agradecimento quando o garçom surge ao nosso lado e deixa as xícaras de chocolate quente e o pedaço de torta de morango e limão na nossa mesa.
— Eles precisam pagar pelo que fizeram — ele diz, no mesmo tom, buscando estabelecer contato visual.
— Ah, ok. E o que você vai fazer? Porque não foi só uma pessoa, Zaden. Perdi as contas de quanta gente já falou sobre nós dois na escola — eu o encarei. — E aí? Você vai meter um processo em todo mundo?
— E se for? Eu estou no meu direito — replicou, como se fosse natural colocar na justiça qualquer pessoa que fale mal de você.
— É, mas a maioria dessa gente nem sequer se lembra do que fez. Não vale a pena.
— Como assim, não vale a pena? — ele franziu a testa, consternado. — É claro que vale. Não importa quantos sejam, eu vou processar todo mundo que tiver tido parte nisso por injúria, calúnia e difamação. Duvido que não se lembrem do que fizeram quando receberem uma intimação. E se brincar dou até uma surra em... — enfio um morango recheado na boca dele antes que possa terminar de falar. Não consigo evitar o sorriso quando percebo que, mesmo querendo continuar sua declaração de guerra, Zaden não contém um murmúrio de aprovação: — Puxa, isso aqui está uma delícia.
— Não é? Coma mais — empurro o prato em sua direção.
— Mas eu ainda não terminei de falar.
— Zaden... — comecei, ajeitando uma mecha de cabelo dourado que insistia em cair sobre seus olhos. — De verdade, deixa isso pra lá, ok? Não quero ter que revirar nomes para fazer uma lista de todas as pessoas que já falaram merda sobre mim ou sobre nós dois. Como você mesmo disse, perdemos dois anos por causa do estrago que essas mentiras causaram no nosso relacionamento. Acho que a melhor vingança que podemos ter agora é sair por aí esfregando a nossa felicidade na cara de todo mundo que não queria nos ver juntos e mostrar que a opinião deles não faz a mínima diferença na nossa vida.
Zaden me olha em silêncio por um minuto antes de assentir, se dando por vencido. Aperto sua mão em gratidão, quando então o ouço dizer:
— Que tal se fizermos assim: eu desisto da ideia do processo se você me deixar dar um morango na sua boca.
Pisco, descrente.
— Você só pode estar brincando.
Ele abre um sorriso lento, um brilho malicioso cintilando no fundo de seus olhos azuis enquanto desliza um morango enorme pela cobertura da torta.
— Ah, mas eu estou falando muito sério. Vamos, Alis, abre essa boquinha linda pra mim — diz, no exato momento em que duas mulheres passam por nós em direção à uma mesa mais à frente. Elas arregalam os olhos e soltam risadas abafadas.
Sinto meu rosto arder de vergonha.
— Eu vou te mat... — Zaden aproveita a oportunidade e enfia um morango coberto de chantilly na minha boca. Mastigo a fruta a contragosto, me esforçando arduamente para não deixar que a carranca em meu rosto desapareça por conta do sabor delicioso em minha língua.
Aos nossos pés, Loki emite um latido baixo, e Zaden lhe oferece um morango livre de recheio por debaixo da mesa, o qual o canino logo devora.
— Você realmente não tem medo de apanhar — digo, finalmente terminando de engolir a comida.
Zaden dá uma risadinha, se virando para mim.
— Eu já te disse que sempre gostei da ideia de apanhar de uma mulher bonita — retrucou, tocando meu queixo. — Ficou sujo de chantilly aqui — disse, antes de beijar o cantinho da minha boca e recuar lentamente para me olhar nos olhos, como se para testar a maneira com a qual seria recebido. Algo em minha expressão deve encorajá-lo, e sinto meu coração disparar dentro do peito com a visão de suas pupilas dilatadas. — Tem um pouco aqui também — ele sussurrou, me beijando nos lábios tão suavemente que sinto como se a carícia fosse um suspiro doce de calor.
Me inclino para mais perto dele inconscientemente, tocando seu rosto. Alguma parte de mim provavelmente está emitindo sinais de alerta para o fato de que nós dois estamos no meio de uma cafeteria, mas a outra parte – a maior parte – não consegue se concentrar em outra coisa que não seja esse beijo. Esqueço meu próprio nome quando a língua de Zaden toca a minha e sua mão desce para a minha perna, apertando a minha coxa. Por um segundo, penso no quão melhor seria se eu simplesmente sentasse no colo, e a imagem projetada na minha mente faz com que eu decida que já está mais do que na hora de reassumir o controle sobre mim mesma.
Eu me afasto, mordendo os lábios. O ar parece subitamente vários graus mais quente ao meu redor, e o jeito desejoso como Zaden está encarando a minha boca não ajuda.
— Pare com isso — ordenei em um murmúrio, cobrindo a sua mão em minha perna com a minha. Zaden tem mãos muito bonitas. Seus dedos são longos e há veias azuladas pronunciadas sobre a pele do dorso. O contraste do meu tom de pele marrom contra o pálido dele é gritante, e se torna ainda maior com a diferença de tamanho: as mãos de Zaden são enormes. Não é surpresa que ele consiga alcançar acordes tão distantes uns dos outros no corpo da guitarra com tanta facilidade. — Seu branquelo capitalista pervertido.
Ele dá uma gargalhada baixa, os olhos brilhando de alegria. Sua risada é grave, e reverbera na atmosfera ao nosso redor até penetrar a minha pele, a sensação causada por ela provocando uma agitação gostosa no meu estômago – prefiro colocar dessa forma ao invés de dizer que há um monte de borboletas bobas alçando voo dentro de mim.
— Eu senti saudade, Alis. Muita — diz, com um sorriso repleto de covinhas. Ele está parecendo um bobo. Só posso torcer para que a mesma expressão abobalhada não esteja sendo exibida no meu rosto também. — Saudade de estar com você assim, te olhando de pertinho. Saudade de rir com você. De segurar sua mão. De beijar você. Tanta saudade que chega a doer.
— Nós nos víamos quase todos os dias antes de você ir para Nova York — balbuciei. Digo isso de maneira débil, mas sei muito bem o que Zaden quer dizer: a saudade da qual ele está falando é uma saudade física, só que vai muito além disso; é sentir falta da alma do outro. Da essência e do sentimento de estar perto. De poder olhar nos seus olhos e analisar todas as nuances de azul cristalino das suas íris sem precisar me preocupar em disfarçar. Sei disso. Sinto isso. Mas não consigo colocar para fora confissões tão íntimas e há tanto tempo mantidas em segredo. Também doeu de saudade em mim, quero dizer, mas não encontro a minha voz.
— Não se trata disso — ele fala, balançando a cabeça. A mecha loira insistente desliza suavemente entre os fios de seu cabelo para sua testa. — Eu sentia a sua falta muito antes de ir embora. Poder te ver com frequência era um consolo, mas ao mesmo tempo fazia com que a saudade apertasse ainda mais, porque você estava distante. Estava ao alcance das minhas mãos, mas eu não te tinha.
Como você consegue?, quero gritar, o coração em chamas ardendo em meu peito. Como consegue ser tão transparente e se abrir dessa forma comigo mesmo depois de eu tê-lo feito sofrer?
— Agora você me tem — respondo, encostando a testa na sua, nossas mãos ainda entrelaçadas sobre a minha perna. Zaden resvala o nariz no meu, o sorriso de antes voltando com força total para o seu rosto. Não consigo resistir e beijo de leve cada lado dos seus lábios, bem sobre a covinha em suas bochechas, rindo de mim mesma por me imaginar ao olhos das outras pessoas e chegar à conclusão de que devo parecer uma tola apaixonada.
— Eu devia saber que havia um motivo para que você não quisesse sair comigo — uma conhecida voz masculina diz, fazendo com que eu me enrijecesse completamente. — Garotas da sua laia sempre ficam com o que paga mais.
— Mas que porra você acabou de dizer? — Zaden fica de pé ao meu lado em um salto, e Loki solta um latido baixo por causa da súbita agitação.
— É isso mesmo que você ouviu, cara — César zombou, olhando para mim com escárnio. — Foge enquanto pode, porque essa daí é uma vadia interesseira.
Me levanto imediatamente, sabendo que Zaden está a um segundo de partir para agressão. Sei que se eu não fizer nada ele sairá na briga com esse imbecil independentemente de estar com um braço quebrado, então me adianto e assumo o controle da situação.
E desfiro eu mesma um soco na cara de César.
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