CAPÍTULO 22
Engulo um comprimido para dor de cabeça com uma careta, minhas têmporas latejando por causa dos quarenta e cinco minutos posteriores de choro incessante. Havia anos desde a última vez em que eu havia perdido o domínio das minhas emoções desse jeito, chorando incontrolavelmente não importava o quanto quisesse parar. Minhas lágrimas pareciam estar sob controle por agora, mas se eu fechasse os olhos ainda conseguia visualizar com clareza a imagem da mágoa misturada à decepção estampada no rosto de Zaden, e isso era motivo mais do que o suficiente para me deixar arrasada outra vez.
De todas as coisas, o que mais doía era o fato de que, no fim, Zaden tinha razão: na primeira oportunidade que tive de mostrar minha confiança nele, eu dera para trás. E, ao resolver guardar somente para mim todos os rumores que tinha ouvido a respeito dele e tomá-las como verdade após entreouvir fragmentos de uma conversa cujo tema eu nem estava a par, eu tinha sido egoísta; não tinha dado a ele nem mesmo uma chance de se explicar – estava com tanto medo do quanto me machucaria que optei por mentir e simplesmente me afastar sem nem parar para considerar a possibilidade de também tê-lo machucado no processo.
Expirei o ar lentamente, na esperança de acalmar meu coração. Não conseguia tirar da mente todas as vezes em que o havia evitado e tratado friamente sem motivo, tudo por causa de um emaranhado de boatos maldosos que poderiam ter sido driblados caso eu tivesse tido coragem o suficiente para falar com Zaden sobre o que estava acontecendo comigo. E eu havia tentado: tinham sido muitas as vezes que eu pensara em abordar o assunto com ele, mas algo sempre fazia com que eu desse para trás. Estava tão receosa de perguntar e terminar confirmando minhas piores inseguranças que me tornei uma covarde. Não pude evitar. Era um sentimento irracional com a mesma essência daquele que eu tinha quando era pequena e estava aprendendo a executar o grand jeté pela primeira vez: a vontade de ir e me arriscar a tentar era enorme, mas o receio de me desequilibrar após o salto e cair de mau jeito era gigantesco. A única diferença era que na exata proporção em que aquele velho conhecido medo havia me desafiado a ser melhor no balé, ele também havia me paralisado por completo no que dizia respeito à minha situação com Zaden.
Porque a verdade era que Zaden me deixava apavorada.
O jeito como ele me tratava... a maneira com a qual sempre parecia estar atento ao que eu precisava e a forma como conseguia traduzir o que eu estava pensando ou sentindo só com um olhar... tudo aquilo era aterrorizante. O fato de eu ter permitido que uma pessoa me conhecesse ao ponto de antecipar para que lado eu me movia primeiro quando dançava ou qual sabor de sorvete eu iria pedir sem nem precisar me perguntar... eu quase implorei para sair machucada. E só havia me dado conta disso – do quão vulnerável eu me tornava quando estava com Zaden – quando me vi afundando na incerteza de não saber o que realmente significava para ele. E foi aí que me tornei fraca. Odiei tanto essa versão medrosa e insegura de mim que preferi sufocar meus próprios sentimentos no lugar de ser sincera e abrir meu coração.
Contudo, eu tinha errado feio ao fazer essa escolha, porque agora estava odiando ainda mais a versão atual que tinha duvidado do melhor amigo e o julgado como falso tendo em base apenas uma série de comentários cruéis feitos por desconhecidos e conclusões precipitadas.
Tenho um sobressalto quando meu celular começa a vibrar em cima do balcão, e o alcanço com um suspiro de cansaço. No entanto, ao ler o nome em destaque na tela, parte do meu desânimo se esvai e eu atendo a chamada o mais rápido que posso, o som da voz que enche meus ouvidos me trazendo um conforto imediato:
— Oi, Alison. Só estou ligando para saber como as coisas estão por aí...
— Charlie? — digo, na intenção de cumprimentá-lo, mas seu nome soa como se fosse uma interrogação. Limpo a garganta. — Charlie, oi. Onde você está agora? O que está fazendo? Você e os meninos já chegaram à próxima cidade? Como foi o...
— Por que a sua voz está embargada? Você estava chorando? — meu irmão indaga, e quase posso visualizar sua testa se franzindo de preocupação.
Fico em silêncio por alguns segundos, na tentativa de estabilizar meu estado de espírito; sempre que estou me sentindo para baixo e Charles pergunta o motivo eu tenho que fazer um esforço monumental para não cair no choro. É algo no tom de voz dele; todo o cuidado, suavidade e compreensão. Só de ouvi-lo meu coração já fica menos angustiado.
— Não muito — admito, sem ter forças para negar. — É uma longa história. Para encurtar, a culpa é minha.
— Minha nossa. Minha irmã assumindo a culpa por algo que deu errado? Você está sob ameaça ou o impensável realmente aconteceu e você finalmente se deu conta de que é um ser humano com falhas? — ele questiona, e sinto o pequeno sorriso que acompanha suas palavras. Reviro os olhos, com saudade da sua zombaria velada. — Brincadeira. Mas falando sério, o que foi que houve? Achei que estivesse tudo bem.
Respirei fundo, tentando encontrar a maneira certa de dizer.
— Eu meio que... me desentendi com alguém.
— Hm. Por "alguém" você quer dizer o Zaden, certo?
Apertei os lábios em uma linha fina, irritada por ele ter acertado de primeira.
— Como você tem tanta certeza de que isto é sobre ele?
— Vocês dois são bem previsíveis. Ele só fica mal por sua causa e você só fica mal por causa dele. Além do mais, você estava na casa dele ontem. E vocês sempre acabam se desentendendo quando estão juntos, o que, aliás, é sinal de um grave problema de comunicação — ele pigarreou. — Mas para você ter chorado, a coisa deve ter sido séria. Qual foi o motivo da discussão?
Sinto meu rosto queimar. Eu não costumo falar sobre Zaden com ninguém. Tudo o que tinha acontecido entre nós era... embaraçoso e revelador demais.
— Ele... eu meio que... é um pouco difícil conversar sobre isso.
— Será mais fácil se você falar sem rodeios — meu irmão encorajou.
Respirei fundo.
— Ontem, na casa dele... algumas coisas aconteceram e nós dois acabamos discutindo, como você mesmo disse. Eu queria deixar pra lá e ficar na minha, mas Zaden veio até aqui insistir no assunto e durante a conversa que tivemos acabamos descobrindo que havia um mal entendido não resolvido entre nós.
— Um mal entendido? De que tipo?
Levei a mão à testa, massageando as têmporas, a dor de cabeça não me dando trégua.
— Do tipo que eu acreditei em fofocas que diziam que ele só era meu amigo por consideração a você e então achei melhor me afastar.
— O quê? — Charles parecia descrente do outro lado da linha. — Alison, essa maluquice não faz o menor sentido. Por que você acreditaria em algo assim?
Seguro o telefone com mais força, na intenção de canalizar minhas emoções naquele aperto. Quase três anos guardando em silêncio um passado de bullying e em apenas um dia eu me via tendo que falar a respeito duas vezes seguidas justamente para as duas pessoas de quem mais me preocupei em esconder. Não que fosse por falta de confiança – eu sabia que sempre podia contar com Charles para me defender e ficar do meu lado, mas não queria que precisasse. Eu podia ser a irmã mais nova, mas não pretendia me tornar um fardo do qual ele tivesse que cuidar. Por outro lado, eu já havia aprendido a minha lição com Zaden e sabia que não tinha como continuar mantendo aquele segredo por muito mais tempo: não me abrir com as pessoas que se importavam comigo por medo ou por orgulho era o mesmo que erguer uma barreira ao meu redor e deixá-las do lado de fora da minha vida. Não queria que fosse assim com o meu irmão.
Sendo assim, engoli minha vergonha e disse a Charles tudo o que tinha para dizer: meus sentimentos por Zaden, os comentários zombeteiros que ouvia no colégio e que fingia não terem importância, a declaração que havia feito no parque (omitindo graciosamente todas as partes que envolviam beijos roubados e mãos dadas), o incidente no banheiro, a conversa de Zaden com outros garotos que eu havia mal interpretado e por fim o momento em que eu o usara como desculpa para encerrar qualquer coisa que havia entre Zaden e eu, alegando que ele não se sentiria confortável caso viéssemos a ter um relacionamento.
Quando cheguei nessa parte da história, Charles, que até o dado momento tinha ouvido tudo em silêncio, suspirou:
— Droga, Alison. De todas as coisas que você poderia ter dito...
— É, eu estou sabendo que pisei na bola — eu o interrompi. — Zaden me contou da conversa de vocês e sobre todo o apoio que recebeu. Aliás, obrigada por não me dizer nada — agradeci, ironicamente.
— Eu não queria me meter no relacionamento alheio — ele devolveu, lacônico. — Além do que, se tem alguém aqui que deveria estar indignado por não ficar sabendo de algo, esse alguém deveria ser eu. Alison, você passou meses sofrendo abuso psicológico no colégio e nunca nem pensou em me contar? Pelo amor de Deus, você não devia ter aguentado tudo sozinha.
Assenti com a cabeça, sabendo que ele tinha razão.
— Eu sei disso agora, mas na época eu só... pensei que seria melhor se eu simplesmente ignorasse. Nada do que diziam era verdade, então eu não queria ir choramingando para você e muito menos para o Zaden. Achei que... achei que conseguiria lidar com a situação fazendo do meu jeito — expliquei, com o rosto contorcido de culpa.
— Sim, eu entendo. O que acontece é que o jeito que você encontrou para lidar com o que estava acontecendo foi errado, Alison — Charles argumentou, respirando fundo para conter parte da frustração em sua voz. — Me diz uma coisa. Você acha que as pessoas que são vítimas de bullying devem suportar a humilhação em silêncio e superar por elas mesmas a intimidação que sofrem? Que passar por isso sem pedir ajuda é motivo de medalha?
— Eu... — começo, engasgada, mas mal consigo formular uma frase antes que ele prossiga:
— E não é só isso. E quanto a todas as mentiras que inventaram sobre Zaden, atribuindo a ele uma fama de canalha que nem era real? Isso é difamação, e é crime — meu irmão continuou, obstinado. — Ele merecia saber, Alison. Merecia de verdade.
Pisquei rapidamente enquanto me sentava em uma das cadeiras da sala de jantar, lágrimas transbordando dos meus olhos.
— Confie em mim, eu sei. E você não imagina o quanto estou arrependida. Passei anos guardando rancor dele por algo que no fim acabou sendo culpa minha — funguei, enxugando o rosto com o dorso da mão. — Mas o pior de tudo, Charles... o pior de tudo não foi nem os comentários maldosos que espalhavam sobre Zaden e eu. O que me mata é o fato de eu ter acreditado. Falavam coisas horríveis dele e eu... e eu acreditei. No primeiro mal entendido, virei as costas e fui embora. Não lutei, não fiz nada. Só aceitei e desisti. Enquanto ele... — parei, contendo um soluço na garganta, lembrando da corrente prateada com as nossas iniciais ao redor do pescoço de Zaden. — Enquanto ele nunca desistiu de mim.
Fechei os olhos com força, lágrimas pingando incansavelmente sobre a mesa. Eu estava me sentindo um lixo. Não bastava ter sido inferiorizada por aqueles filhinhos de papai repugnantes, ainda havia deixado que eles me fizessem pensar que estavam certos sobre a pessoa de quem eu gostava. Por causa deles eu havia me transformado numa desistente mentirosa e péssima amiga.
— Desculpe pelo drama. Não queria começar a chorar. Enfim, eu vou ficar bem. Sei que você deve estar ocupado agora — me apressei em dizer, assim que controlei minha respiração o suficiente para conseguir falar sem soluçar. — Obrigada por ouvir. Quer que eu mande algum recado para o papai ou...
— Ali, você não tem que me agradecer por nada. A culpa não foi sua — Charles me cortou, suavemente.
— Ah, ok — eu ri, seca. — Por favor, Charlie. Você não tem que...
— Sim, eu tenho — ele discordou. — Quero que saiba que não estou falando isso porque sou seu irmão, mas sim porque é a verdade. Não foi sua culpa, está me entendendo? Você já estava com a cabeça tão cheia por causa de tudo o que tinha que ouvir daqueles merdas na escola que não sabia mais no que acreditar. Qualquer um teria desabado na primeira semana, mas você continuou firme mesmo sem ter recebido apoio emocional nenhum fora aquele que dava a si mesma. E ainda que tenha sido uma atitude errada e muito idiota, eu não posso negar o quanto você foi forte, Alison. Manteve a cabeça erguida o tempo todo. Foi corajosa e contou para Zaden como se sentia em relação a ele apesar de todos os boatos nojentos que circulavam pelo Instituto. No seu lugar, eu nunca teria chegado tão longe.
— Mas eu...
— Você é humana, Ali. Está tudo bem cometer erros. Sei que é difícil pensar desse jeito quando não fomos criados para admitir imperfeições, mas a vida é assim: repleta de falhas. É compreensível que você se sinta mal por ter duvidado do Zaden, mas as circunstâncias não estavam a seu favor. Com um mal entendido daqueles, a maioria teria ficado receosa em continuar acreditando. Eu não julgo você por isso — Charles disse, com carinho, o que fez com que uma parte do peso sobre meus ombros ficasse mais leve. Mentalizei seu sorriso tranquilizador imperturbável e inspirei, soltando o ar lentamente. — Você guardou essa mágoa dentro de você por muito tempo. O que você tem que fazer agora é dar espaço tanto para Zaden quanto para si mesma e depois pedir desculpas.
— Não sei se vai adiantar. Se você visse o modo como ele olhou para mim antes de ir embora... eu o decepcionei muito, Charles. E não é para menos — baixei a cabeça, apoiando-a no braço que estava estendido sobre a mesa. — Passei anos com raiva dele por causa de algo que ele nem fez. Eu no lugar dele não me perdoaria.
— Você é muito dura consigo mesma, Alison — meu irmão suspirou. — O Zaden é uma pessoa simples. Se for até ele sem reservas e pedir desculpas de coração aberto, ele com certeza vai te perdoar.
Imaginar uma versão minha que não tivesse reservas me parecia um cenário bem distante da realidade, principalmente quando se tratava de algo relacionado a Zaden. Mesmo agora, quando as peças do quebra-cabeça que haviam sido deixadas de lado por nós dois finalmente tinham sido postas em seus lugares, uma velha sensação de insegurança quanto a ele ainda pairava sobre mim. Como de costume, Charles estava certo. Eu precisava de espaço para organizar meus pensamentos. A última coisa que eu quero agora é agir precipitadamente e acabar magoando Zaden outra vez.
Deixar minhas defesas de lado seria uma tarefa difícil, mas eu teria que tentar.
— Vou seguir seu conselho, Charlie. E obrigada de novo por me ouvir. Não sei o que faria sem você — confessei, a saudade apertando.
— Eu estou sempre aqui, ok? Não hesite em me contar nada que esteja acontecendo na sua vida. Eu te amo — ele se despediu.
— Eu também te amo — vê se volta logo, quis dizer. Mas o que disse foi: — Quebra tudo no show de hoje.
Ouço sua risada abafada e sorrio comigo mesma.
— Pode deixar. As baquetas já estão no bolso da minha calça.
— Como de praxe — eu ri junto. — Manda um abraço pros meninos.
— Eu vou. Juízo por aí, destruidora de corações.
Revirei os olhos.
— Tchau, Charlatão — devolvi, um momento antes da ligação ser encerrada. — Hmpf. Destruidora de corações — murmurei, encarando a casa vazia ao meu redor.
Bem, estava na hora de começar a juntar os pedaços do meu. E, talvez quem sabe, os de outra pessoa no meio do caminho.
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