CAPÍTULO 2

— Você foi sortudo, rapaz. As consequências poderiam ter sido bem piores do que apenas uma concussão e um braço quebrado — disse o médico, enquanto apontava para a radiografia que eu havia feito alguns minutos atrás. — A queda que você levou foi bem feia.

Resisti ao impulso de fazer uma careta. Aquele realmente não havia sido um dos meus melhores momentos. Num instante eu estava no palco, inteiramente conectado à música e à energia da plateia e de repente... Nada. Somente o vazio sob meus pés. 

Se eu ao menos tivesse visto aquele maldito fio antes de saltar...

— É, o senhor tem razão. Na hora pareceu super maneiro, mas agora que paro pra pensar, só parece super idiota.

Loren bufa.

— Acho que você quer dizer super ultra mega idiota, Zaden — diz ele, encostado em uma das paredes do consultório, com os braços cruzados e uma expressão zombeteiro no rosto. — Cara, no que diabos você estava pensando? Você caiu igual a uma fruta podre. 

Mostro a ele o dedo do meio, gesto que ele retribui logo em seguida. 

— Acho que o problema aqui é exatamente o fato de ele não ter pensado — Charles comentou, me dando o mesmo tipo de olhar reprovador que eu receberia caso o meu pai estivesse aqui. — Fala a verdade, Zaden. Você estava chapado? 

— Pela milésima vez, Charles, eu não estava chapado. No máximo curtindo a brisa de ser adorado pela plateia, mas nada fora isso — eu revirei os olhos. — Além do mais, que se foda toda essa merda, eu quero saber por quanto tempo vou ter que ficar com o braço imobilizado nessa tipoia. Doutor Sanchez, por favor, prossiga.

O homem de jaleco e bigode grisalho apontou para as fotos da minha radiografia em destaque na parede.

— Bem, como pode ver, o úmero foi fraturado durante a queda. Felizmente, o osso não foi comprometido de forma irreversível e tendo em vista que o senhor é um homem jovem e com uma musculatura forte, é bem improvável que haja alguma complicação durante a sua recuperação. Então não se preocupe — ele disse, com um sorriso tranquilizador que fez com que eu relaxasse quase imediatamente. — Em dois meses você estará novinho em folha.

O quê? Dois meses? — arfei, me levantando tão rápido da cadeira que meu braço chiou de dor em resposta. — Doutor, eu sou guitarrista. A minha banda vai entrar em turnê daqui a menos de três semanas, eu não posso ficar impossibilitado de tocar durante todo esse tempo. É o meu trabalho. Deve haver algum jeito de eu ficar bem sem ter que passar dois meses com o braço imobilizado. Um anti-inflamatório, algum remédio pra dor... qualquer coisa, menos isso.

O médico me olhou com uma expressão de pesar irredutível. Porra, não. Não, não, não, não.

— Sinto muito, mas para o tipo de fratura que o senhor teve, dois meses é uma previsão até que muito otimista — explicou, tocando meu ombro. — A maioria não leva menos de três. Posso receitar anti-inflamatórios ou remédios para ajudar com a dor, mas nenhum deles fará com que você seja capaz de tocar como se nada tivesse acontecido em tão pouco tempo. Terá que ficar de repouso, meu jovem. E de preferência, em um lugar onde tenha pessoas que possam ajudá-lo durante esse período.

— Mas e se... — tento negociar, mas sou logo cortado por Charles:

— Obrigado, doutor Sanchez. Vamos garantir que ele tenha os melhores cuidados enquanto estiver em recuperação.

Eles continuam conversando, mas não ouço uma palavra sequer. 

Eu não conseguia acreditar. Tinha sido somente uma queda boba num momento de burrice, só isso. A coisa toda não levara mais do que um piscar de olhos para acontecer: num segundo eu estava pulando no palco e no outro tinha atingido o piso duro com toda a força. Tudo acontecera tão rápido que eu mal me dera conta da dor até tentar usar o braço como apoio para me levantar, – foi que ela me atingiu com tudo, o mundo ao meu redor se escurecendo de repente com a pontada lancinante.

Não demorei nem dois minutos para recobrar a consciência, mas quando o fiz, Sebastian já tinha me erguido do chão, me segurando pela cintura enquanto todas as pessoas olhavam para mim em estado de choque, apontando para o meu braço com horror e desviando o olhar rapidamente. Loren e Charles andavam ao meu redor como um escudo, prontos para me ampararem caso eu desabasse, seguranças nos seguindo de perto entre a multidão.

Meu Deus, que fracasso. Aquele tinha sido com certeza o maior fiasco da minha vida toda. Nunca antes eu havia me sentido tão idiota. Tão falho.

Minha guitarra aos pedaços representava isso da forma mais enfática possível. 

— Não adianta ficar assim, Zaden — Sebastian disse, no instante em que passamos pela porta de entrada do apartamento que nós dois dividíamos. Inicialmente, o plano era que ele e a namorada morassem juntos depois do colégio, mas ela tinha ido fazer uma espécie de intercâmbio na Inglaterra. Essa era a primeira vez em que Amélia vinha nos visitar desde que se mudara e de brinde terminava a noite tendo que me levar ao hospital junto com os outros por causa de uma queda estúpida que nem deveria ter acontecido. — Sei que é uma merda, mas essa não vai ser a última turnê que vamos  fazer na vida. 

— Sim, mas vai ser a primeira. E eu não vou estar — falei, inclinando as costas lentamente no encosto do sofá para não mover o ombro com brusquidão. Inferno. Até pra me sentar eu tinha que ter cuidado. — Isso simplesmente não é justo. Nunca, nenhuma vez sequer, um de nós faltou a um show da banda. Sempre estivemos os quatro juntos em todos eles, não importava a hora, o tamanho ou a distância do lugar. Fazemos isso há quase cinco anos, Seb — suspirei, nostálgico. — Não consigo aceitar que logo agora que o nosso álbum está bombando e que ficamos conhecidos ao ponto de sairmos em uma turnê pelo país eu tenha machucado a porra do meu braço. 

— Sei como você se sente, Zaden — Amélia disse, me oferecendo uma caneca fumegante de algo que cheirava muito bem. Segurando-a com o braço bom, reconheci seu conteúdo de primeira: chocolate quente. Sorri em agradecimento. — É horrível quando temos que parar de fazer o que gostamos. Você sabe que eu escrevo desde sempre e que agora que estou trabalhando no projeto do meu livro tenho feito isso com ainda mais afinco — ela sentou na poltrona de frente para mim, na qual Sebastian estava encostado. — Contudo, mesmo sendo aquilo que amo, não posso ignorar os sinais que o meu corpo me envia de que preciso fazer uma pausa quando sinto dores no pulso ou quando meu estômago ronca de fome por ter passado horas a fio na frente do computador. Sei que para poder continuar trabalhando tenho que cuidar da minha saúde, ou então não poderei fazer nada. Do mesmo jeito é com você. 

— Eu sei, mas a questão aqui é diferente, Ames. Eu estava bem. Não precisava de uma pausa. Estava no meu auge! — ergui a caneca de chocolate na direção dela. — Você mesma leu os artigos que escreveram sobre mim. As manchetes diziam tudo: "Zaden LeBlanc, o guitarrista lendário".

— Tá mais para derrubado — Sebastian murmurou, e tanto eu quanto Amélia fizemos cara feia para ele. Fingindo uma coceira na garganta, ele tossiu: — Desculpe. Prossigam, por favor.

— Zaden, o que eu estou tentando dizer é que, sendo justo ou não, você caiu e quebrou o braço e não está em condições de tocar agora. E é um saco que esse acidente tenha acontecido tão perto da primeira turnê da banda, mas Bash tem razão: não vai ser a última vez — ela deu alguns tapinhas na minha mão, me olhando com solidariedade. — E essa é só pelo país, nem vai ser tão longa. Você deveria encarar esse tempo de repouso menos como algo punitivo e mais como... sei lá, férias? Um momento para cuidar mais de si mesmo, relaxar e então voltar com tudo. E dois meses passam voando, você vai ver. Falando por experiência própria, parece até que foi ontem que cheguei em Cambridge.

De pé atrás dela, Sebastian ergueu as sobrancelhas.

— É, mas na realidade foi há dois meses, três dias e... — ele tirou o telefone do bolso. — Dezessete horas. Exato.

Desviando o olhar dele, me aproximo de Amélia, falando em voz baixa:

— Como é que você ainda não fugiu desse cara?

— Você já provou os muffins que ele faz? São de outro mundo.

Meu amigo bufa de irritação, enquanto Amélia e eu trocamos sorrisos cúmplices. Particularmente, eu a adoro. Desde que começaram a namorar, Sebastian a leva para todos os lugares possíveis (o que até seria chato se ela não fosse tão legal) e isso acabou aproximando-a de todos nós. Loren costuma dizer que é dele de quem ela gosta mais, mas para falar a verdade, todo mundo sabe que eu sou seu favorito: sempre posso contar com ela quando preciso de apoio.

— Mas voltando a falar da banda, vocês vão simplesmente colocar um carinha qualquer pra me substituir? — questionei, querendo saber com antecedência quem seria o palerma que ficaria no meu lugar.

— Não vai ser um “carinha qualquer”. — Sebastian falou, enquanto tirava a jaqueta. — Vai ser o Thom. Você o conhece, ele já tocou com a gente algumas vezes na gravadora. Jonas disse que ia agendar uma reunião com ele pra ver se estaria disponível nas próximas semanas para acertamos tudo e ensaiarmos antes da turnê.

— O Thom? — franzi o nariz, insatisfeito. — Não tinha um que fosse mais alto, não? Quer dizer, nada contra, mas ele vai parecer um anão ao lado de vocês três no palco.

— Ele é um ótimo guitarrista, Zaden, e somos uma banda, não uma agência de modelos.

— Para ser sincera, como vocês todos são altos e bonitos, não dá pra perceber muito a diferença — Amélia murmurou, pensativa.

— Não é?! — exclamei em concordância.

Sebastian revirou os olhos.

— Quer saber? Desisto. Eu estou indo tomar banho — anunciou, seguindo em direção ao corredor que levava até o seu quarto. — Quando você está vindo?

— Eu? — indaguei, estranhando.

— É claro que não. Estou falando de Amélia.

— Ah. Agora faz mais sentido.

Ames riu, olhando para Sebastian.

— Não se preocupe comigo, Bash. Eu vou ficar aqui conversando com o Zaden mais um pouco e logo depois vou dormir. Tenho que pegar um voo logo cedo, lembra?

— Infelizmente, sim. Ainda não entendo o porquê de você precisar voltar tão rápido. E você — disse ele, apontando o dedo para mim de maneira acusatória. — É uma péssima influência para a minha namorada — declarou, e então foi embora.

— Você viu isso? Ele é tão ciumento — balancei a cabeça em reprovação, bebendo mais um pouco do meu chocolate quente. — E só tem dois estados de espírito desde que você foi para Cambridge: o melancólico e o ranzinza. Sei que você deve ter percebido também. Aposto que a conversa que nós vamos ter agora é para falar mal dele. Sou todo ouvidos.

Amélia me olhou com ceticismo.

— Sério, Zaden? Olha, Sebastian pode ter mudado o rumo da nossa conversa e te distraído um pouco do assunto, mas eu sei que você está muito mal por perder a turnê. Essas suas tentativas de bancar o engraçadinho não me enganam.

Baixei o olhar, me sentindo como se tivesse sido pego no flagra. Esse era o superpoder de Amélia: ela sempre conseguia ler muito bem as emoções que tentávamos esconder.

— O que mais eu posso fazer, Ames? Hoje foi um dia de merda. Não bastasse a vergonha que foi cair no meio do show, ainda tive que quebrar o braço e descobrir que não vou ficar bem a tempo para a turnê. Isso sem contar o que vai sair sobre mim nos jornais. Vou ser a maior piada.

— Sei que é constrangedor, mas você não é o primeiro a cair no meio de uma apresentação. Essas coisas acontecem pelo menos uma vez na vida com todo mundo que trabalha fazendo shows. É normal.

— Talvez, mas mesmo assim… — faço careta só de imaginar a cena. — Que papel ridículo que eu fiz. Minhas irmãs vão tirar sarro da minha cara pra sempre quando ficarem sabendo. Sem falar na Alison — dou um sorriso amargo. — Acho que ela vai finalmente se dar ao trabalho de me ligar só para poder tripudiar.

— Ali não seria tão malvada — Amélia diz, partindo prontamente em defesa da melhor amiga.

Levanto uma sobrancelha.

— Você colocaria sua mão no fogo por ela?

Ela hesita, e é assim que sei que estou certo.

Alison Walters é a rainha que rege o meu inferno pessoal. Não importa o que seja, se for eu quem tiver feito, ela sempre irá criticar. Se eu estiver de um lado, ela sempre fará de tudo para estar do outro. Não sei bem como ou porquê essa animosidade surgiu entre nós dois, mas sei que foi ela a dar o primeiro passo. Na primeira vez em que fui à sua casa, a convite de Charles, lembro que ela deu um piti por eu ter lhe pedido alguma coisa para beber e me chamou de europeu mimado e fedorento (o que é a maior mentira, porque sou um cara bastante adepto à higiene pessoal).

Para simplificar, se estivéssemos em Meninas Malvadas, eu seria a Cady Heron e ela a Regina George – ou talvez eu devesse ser a Regina, já que somos os dois loiros – e, assim como elas, nós também já tivemos nosso período de paz: conseguimos superar todo o drama inicial em nosso relacionamento e nos tornamos amigos inseparáveis – amigos de verdade, não com alguma má intenção por trás como havia acontecido no filme.

E, para ser franco, nós dois nos divertíamos muito.

Nossas semanas eram sempre lotadas de atividades: às terças tínhamos as tardes de karaokê (mesmo que meus ouvidos sofressem bastante durante o processo), às quartas apostávamos corrida de skate pela rua dela e aos sábados sempre íamos à minha casa tomar banho de piscina – no entanto, apesar de tudo isso ser legal, a coisa que mais gostávamos de fazer juntos acima de todas as outras era dançar.

Alison nasceu para ser bailarina. E me fez gostar tanto de dançar que vez ou outra eu escapava das minhas aulas só para vê-la ensaiando no estúdio do colégio.

Mas a nossa amizade não durou.

E não por culpa minha.

— Bem, que seja — me levanto do sofá, fazendo uma careta. — Eu vou para o meu quarto assistir um filme ou coisa parecida porque dormir com esse braço vai ser impossível.

Amélia também se levantou, com uma expressão de solidariedade.

— Vai ficar melhor logo, você vai ver.

Pena que não a tempo para a turnê, pensei, com amargura.

— É, eu sei disso. Obrigado, Amélia — eu lhe disse, com um sorriso. — Você deveria ir descansar agora. É péssimo dormir mal antes de uma viagem.

Ela assentiu, também sorrindo.

— E você acha que eu vou dormir?

Ew! — fiz uma careta de nojo. — Amélia, pelo amor de Deus! Pode me poupar dos detalhes sórdidos dos seus planos noturnos com o Sebastian.

— Eu quis dizer que vou passar a noite trabalhando no meu livro — ela ralhou, com o rosto ardendo em vermelho. Ops. — Mas que mente suja a sua, hein?

— Foi mal — me desculpei com um encolher de ombros, esquecendo por um segundo da minha lesão e sendo recompensado com uma pontada afiada de dor.

Essa porra dói mesmo.

— Mas por falar em viagem — Ames falou, antes de seguir para o quarto de Sebastian. — O que você vai fazer quando os shows começarem? Vai continuar por aqui?

Penso sobre o assunto.

Ficar sozinho em Nova York me sentindo um inválido enquanto a minha banda está por aí rodando o país em turnê? Sem chance. Melhor encarar a zombaria das minhas irmãs.

— Não — falei, com um suspiro conformado. — Eu vou pegar um voo de volta para casa na semana que vem. Nada como curtir uma fossa em família, certo?

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