CAPÍTULO 10
Tento manter a expressão desinteressada enquanto observo com o canto dos olhos a movimentação da frente do Instituto St. Davencrown, na espera de encontrar um rosto específico em meio a massa de alunos descendo e subindo as escadas de mármore do enorme edifício escolar. Mais uma vez peguei uma carona com Steve, o motorista da família, que era encarregado de buscar Zoe e Zara no colégio. A mais nova já estava acomodada no banco de trás do carro, entretida com um jogo interativo que havia acabado de baixar no meu iPad. Eu estava em pé do lado de fora do veículo, e de vez em quando Zoe me mostrava pela janela a tela do aparelho eletrônico e me pedia para escolher entre uma das muitas opções de atitudes que ela poderia tomar para o desenvolvimento da história.
— O que você acha: eu aceito o convite dele para sair ou mando ir ver se estou lá na esquina? — minha irmã perguntou, animada.
— Com certeza mandá-lo ir ver se você está lá na esquina — respondi, no ato. — Não foi esse aí que no capítulo anterior te disse pra sair da frente dele? Qual é, o cara nem pede licença e quer chamar a sua personagem pra sair? Sem chance! O seu avatar pode arranjar coisa bem melhor aí nesse jogo.
— Tem razão — Zoe concordou, prontamente. Fazendo uma careta de desgosto, ela prosseguiu: — Além do mais, ele nem sabe cantar. E também não tem nenhuma guitarra, acredita?
Eu sorri, olhando para ela por cima do vidro semi-aberto.
— Você quer ter um namorado que cante e toque igual ao seu irmão?
— Sim, isso mesmo! — assentiu, cheia de pompa. — Uma coisa que eu notei foi que todos os seus amigos bonitos cantam ou tocam alguma coisa. A partir desse detalhe, fica muito óbvio descobrir o motivo — ela começou, parecendo bastante orgulhosa de si mesma por ter chegado àquela conclusão sozinha. — Olha só pra você: é guitarrista e ainda canta bem. Foi assim que ficou bonito, não foi, maninho?
Gargalhei, um tanto surpreso pela trajetória que os pensamentos dela tiveram que percorrer até concluírem uma coisa daquelas.
— Na verdade, Zoe, o maninho aqui já nasceu desse jeito. E desculpe decepcioná-la, mas a maioria dos rapazes que tocam instrumentos não costumam chegar nem perto de serem tão lindos quanto eu — franzi um pouco a testa, parando para pensar no assunto. — Ou até mesmo de tocar tão bem quanto eu, para ser sincero.
Minha irmã arregalou os olhos, perplexa.
— Nossa! Isso é mesmo verdade? Achei que todos os guitarristas fossem bonitos.
— Sim, é verdade. E não, nem todos.
— Puxa! Tenho sorte de você ser meu irmão, Zad — ela disse, me olhando com admiração. — Os irmãos das minhas amigas além de serem feios, não sabem fazer nada!
Eu acariciei o topo da cabeça dela, achando graça do comentário. Às vezes eu desejava que minha irmã mais nova não crescesse nunca e continuasse sempre assim; doce e inocente, achando que eu era algum tipo de herói com uma guitarra na mão.
— Não se gabe demais para as suas coleguinhas, Zoe — brinquei. — Não podemos culpar aqueles que não foram agraciados com a combinação perfeita de talento, beleza e carisma em um só recipiente.
— É, você está certo. Coitadinhos — Zoe lamentou, antes de se voltar para seu joguinho.
Crianças, pensei comigo mesmo, retornando para a minha missão de procurar Zara entre os estudantes. Eu não entendia o porquê de ela ainda não estar aqui; quando eu estava na escola, vivia contando os minutos para que o momento em que eu recuperaria a minha liberdade chegasse e eu finalmente não tivesse mais que ficar preso numa cadeira com a bunda doendo e ainda por cima assistindo aula de um monte de coisa entediante que, sinceramente, eu duvidava muito que fossem me ser aplicáveis no mundo fora dos muros do Instituto.
— Zaden, aqui está dizendo que eu não posso dispensar esse idiota se não tiver quinze diamantes — Zoe disse, emburrada. — Isso é tão injusto! Tive que gastar todos os diamantes que juntei comprando um vestido chique para não passar vergonha numa festa e agora fiquei sem nada!
Eu estiquei a mão para pegar o iPad, inserindo rapidamente os dados do meu cartão de crédito para poder comprar um dos pacotes de diamantes do joguinho dela. Talvez fosse uma compra supérflua, mas e daí?, era quase desumano forçar a coitadinha a sair com um mané só por não ter alguns míseros diamantes. Mesmo que virtualmente.
E com o personagem de um jogo infantil.
— Prontinho — falei, entregando-lhe o aparelho de volta.
— Obrigada, Zaden! — ela vibrou, sorrindo de orelha a orelha. — UAU! Agora tenho dez mil diamantes?! Vou poder fazer tudo o que eu quiser! — comemorou, me dando um beijo na bochecha. — Eu te amo! Você é o melhor irmão do mundo!
Eu sorri junto, bastante satisfeito. Era bom ser o melhor irmão do mundo.
— Fazendo todos os gostos da Zoe, como sempre — Zara resmungou, aparecendo do meu lado de repente, me fazendo ter um leve sobressalto. — Ela vai virar uma mimada insuportável quando você não estiver mais aqui pra dar tudo o que ela quiser.
Ergui uma sobrancelha.
— Quando eu não estiver mais aqui? Vamos com calma, irmãzinha, ainda tenho ao menos sessenta anos pela frente — cutuquei seu braço de brincadeira, mas ela mal sorriu. Vixe. Alguém aqui não estava tendo um dia muito bom. — Escuta, o que você acha de quando eu chegar em casa a gente fazer uma noite de filmes de terror? Com direito a pipoca, pizza e milk-shake?
— Sério mesmo? — ela perguntou, mal acreditando. — Mas você odeia filmes de terror.
Estalei a língua, fazendo pouco caso.
— É, mas quem liga? Faz séculos que não temos uma noite de filmes. E é meu dever como mais velho não deixar que uma tradição dos irmãos LeBlanc caia no esquecimento — dei uns tapinhas no ombro dela, que abriu um pequeno sorriso.
— Isso quer dizer que posso escolher os filmes de terror que eu quiser?
Tentei não fazer uma careta.
— Pode apostar que sim. Faça o seu pior — falei, abrindo a porta do carro para que ela entrasse. — Eu vejo vocês em algumas horas.
Zara franziu a testa, puxando o cinto de segurança enquanto se acomodava ao lado de Zoe, que parecia ter realmente entrado de cabeça no jogo agora que tinha o seu novo estoque de diamantes.
— Como assim? Para onde você vai? — perguntou, desconfiada.
— Ora, não pareça tão surpresa — eu estreitei os olhos diante da expressão inquisidora dela, enquanto fechava a porta do veículo. — Eu tenho muitos amigos, sabia? Se passo a maior parte do tempo em casa, é porque prefiro, não porque não recebo convites para sair.
— Ah, eu nunca duvidei disso — ela endireitou os ombros, um quê de divertimento despontando de seu tom de voz no exato segundo em que Steve ligou o carro. — No entanto, veja se consegue não se desentender com esses seus "muitos amigos", ok? Eu odiaria que vocês se afastassem de novo.
Eu assenti com a cabeça, acenando em despedida.
— Tchau, meninas.
— TCHAU, ZADEN! — Zoe gritou, ao passo que Zara apenas revirou os olhos e acionou o botão para fechar a janela do passageiro, me dando um tchauzinho discreto com um curto movimento dos lábios.
Fiquei parado durante um momento, observando o carro em que elas estavam se afastar e atravessar o imenso portão de ferro do colégio antes de soltar um longo suspiro e tirar meu telefone do bolso.
Estava na hora de encontrar outra pessoa.
🎸
Exatos quinze minutos depois, com o blazer bordô dobrado sobre o braço, gravata folgada ao redor do pescoço e saia xadrez acompanhando cada passada que suas pernas davam até mim, Alison surgiu no estacionamento, com uma cara que eu não diria ser das melhores. Para a minha infelicidade, vinha acompanhada do seu novo amiguinho dançarino, Bryan, que era todo sorrisos, cabelo raspado e pele morena.
— Por que diabos você me mandou uma mensagem dizendo que havia uma emergência e que precisava da minha ajuda quando está aqui de pé na frente do meu carro sorrindo feito um idiota? — ela esbravejou, parando de frente pra mim.
Tentei diminuir um pouco o sorriso, apesar de ter consciência de que não estava fazendo um bom trabalho.
— Oi, Alison. Bryan, não é? — estendi a mão na direção dele, que logo retribuiu o cumprimento. — Você estava na minha festa ano passado, mas não fomos diretamente apresentados. Sou o...
— Zaden LeBlanc. Eu sei quem você é — ele sorriu, olhando para Alison com o canto do olho. Pressionei os lábios. — Ali vive falando de você. E cuidado, cara, está doendo.
Soltei a mão dele, mal tendo me dado conta de que a estava apertando.
— Foi mal. Como não estou usando o outro braço, acho que acabo colocando um pouco de força demais nesse — expliquei, apesar de não ser totalmente verdade. — Mas onde nós estávamos? Ah, sim. Na parte em que você dizia que Alison passa o dia inteirinho falando de mim. Agora eu sei porque a minha orelha vive queimando.
Ela bufou.
— Com certeza eu fico falando de você o dia todo, Zaden. Até porque não tenho nada melhor pra fazer mesmo, não é? Vai, sai da frente — disse, com um gesto para que eu liberasse a porta do motorista na qual estava encostado. Ao abri-la, ela retira uma sacola de dentro e entrega a Bryan. Tento dar uma espiada, mas não consigo ver seu conteúdo. — Pronto. Lembre-se de usar todos os dias, está bem?
— Eu vou fazer isso. Obrigado, Ali — ele agradeceu, antes de abraçá-la.
Abraçá-la.
Faço o melhor que posso para não ficar encarando, mas a tarefa se mostra algo impossível; essa é a garota que passou quase três anos fazendo de tudo para não encostar um centímetro que fosse em mim? A mesma que agora estava abraçando um cara que não conhecia nem há seis meses como se fosse o seu próprio irmão?
Ela vive tocando todo mundo, engoli em seco, cerrando o punho. Todo mundo, menos eu.
— Disponha. Tchau, Bry — ela disse, se desvencilhando dos braços dele. — A gente se vê amanhã.
— Tchau. E tchau, Zaden — ele acenou em minha direção, apontando para a tipoia que envolvia o meu ombro até o pulso direito. — Melhoras com o braço.
— Valeu. Tchau — acenei de volta, enquanto ele se afastava. Me virando para Alison, ergui uma sobrancelha, sem me conter: — “Bry”? Vocês devem ter ficado muito íntimos mesmo para ter dado até um apelido pra ele.
Ela suspirou, cruzando os braços.
— O que você veio fazer aqui, Zaden? E por que escreveu aquela mensagem maluca sobre ser uma emergência quando parece estar aqui passeando tranquilamente pelo estacionamento enquanto aproveita o sol?
Rangi os dentes, frustrado por ela não ter mordido a isca sobre Bryan.
— Eu vim porque sei que hoje é o dia em que você dá aulas de dança no centro comunitário e que se eu não aparecesse por conta própria, você daria um jeito de inventar uma desculpa para não me levar — falei, em tom acusatório.
— E como você tem tanta certeza de que hoje é o dia em que eu dou aulas lá? Eu não comentei nada a respeito disso — ela devolveu, estreitando os olhos.
Eu dei uma risadinha.
— Como eu sei? Faça-me favor, Alison. Não aja como se eu não conhecesse a sua rotina desde os treze anos.
Ela se empertigou, colocando as mãos na cintura, sua posição de costume para contra-argumentar. Era ao mesmo tempo irritante e engraçado vê-la se esforçando para parecer alguém diferente do que era quando nós costumávamos passar o tempo todo juntos. A garota à minha frente não tinha mudado nada; continuava terrivelmente teimosa, inteligente, espirituosa e linda.
Se possível, ainda mais linda.
— A minha rotina mudou bastante desde os treze anos, Zaden. Não aja como se soubesse tudo sobre mim.
Ergui as sobrancelhas diante do desafio.
— Você corre às segundas, medita às quartas, treina balé durante duas horas às quintas e faz pilates às sextas — ela abre a boca para me interromper, mas eu continuo: — Vai ao shopping aos sábados e à praia aos domingos. Com tudo isso, o único dia livre que sobra é a terça, que é hoje, o que significa que é quando dá aulas no centro comunitário infantil. Agora, sinta-se livre para concordar comigo e admitir que estou certo.
Para a minha total satisfação, Alison fica sem palavras. Ponto pra mim.
— Como você pode saber de tudo isso? Eu não…
— Durante dois anos, todas as vezes em que eu apareci na sua casa e era segunda-feira você estava saindo pra correr. Sobre a meditação, Charles me contou, o que eu acho que é realmente necessário para diminuir o seu estresse — ela aperta os lábios, e sei que está se contendo para não me xingar. Contenho um sorriso. — Sua aula de pilates é na mesma academia que eu frequento e acho que não preciso comentar a respeito do treino de balé, preciso?
Ela balança a cabeça, negando.
Porque de tudo o que fazíamos, aquela tinha sido a única coisa que não havia mudado desde que ela resolvera manter distância de mim.
— Que seja — estalou a língua, abrindo a porta do seu lado do carro. — Já que você quer tanto ser um voluntário no centro infantil, vamos lá. Passamos na minha casa, eu tomo um banho e podemos ir.
— Graças a Deus. Pensei que não ia chegar na parte em que você me oferecia uma carona nunca — falei, não demorando a dar a volta no veículo e ocupar meu lugar no banco do passageiro. — Até porque essa era a emergência: um pobre homem com um braço debilitado abandonado sozinho à própria sorte em um estacionamento escolar. Consegue pensar em algo mais deprimente?
— Sim. Ter que aguentar um trajeto de quarenta e cinco minutos com você tagarelando sem parar no meu ouvido — ela sorriu docemente, antes de ligar o som e Total Eclipse of the Heart começar a tocar.
Nos entreolhamos na mesma hora, porque nós dois adoramos essa música. Total Eclipse of the Heart, além de um clássico total, também era título fixo na lista do repertório das minhas tardes de karaokê com Alison. Não importava que mais cedo ou mais tarde ela acabasse desafinando no meio da nossa performance; éramos uma dupla e sempre cantávamos juntos. Só nós dois.
A+Z.
— Se prepara para a sua deixa — eu avisei, dando um tapinha em seu joelho quando a letra estava prestes a começar.
Ela quase dá um salto em seu assento.
— Isso é sério?
— Qual é. É a nossa música.
— Não é a nossa música...
— Alis…
Ela respirou fundo.
— Turn around…
Não perdi tempo para acompanhá-la, sentindo um sorriso imenso tomar o meu rosto:
— Every now and then I get a little bit lonely when you never coming around.
Ela me olhou de lado antes de repetir sua parte, os cantos dos seus lábios ameaçando se elevarem em um sorriso tão largo quanto o meu. E aí estava: a minha parceira. Aquela que me pegava pela mão e me ensinava a dançar vários ritmos diferentes como se fosse a melhor coisa no mundo; aquela que subia no meu skate e se apoiava em mim quando sentia que estava prestes a perder o equilíbrio e que se deitava na minha cama para ficar olhando revistas de moda como se fosse estivesse em casa.
A verdade era que eu simplesmente não conseguia entendê-la; o abraço que havia me dado ontem? Não foi de consolação. Foi um alto e claro “senti sua falta”. Estava evidente para mim. Seu coração batendo acelerado contra o meu, sua respiração pesada em meu pescoço… ela sentia saudade. E depois ainda houve aquele momento no meu quarto, em que por um maldito triz nós não nos beijamos. Porque Alison queria, não queria? Ainda que depois ela tivesse ignorado e fingido que nada havia acontecido entre nós, eu sabia que, se não fosse pela ligação, teríamos nos beijado. Ou ao menos era nisso que eu desejava acreditar com todas as minhas forças.
Porque eu com certeza teria. E pensar na possibilidade de ser rejeitado outra vez pela única garota capaz de partir meu coração… bem, digamos apenas que eu talvez não tenha achado a interrupção tão ruim assim.
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