Prólogo

     Se fosse possível que Jiang Wanyin franzisse ainda mais o cenho, ele o faria. Sua veia na testa estava prestes a saltar – se de raiva ou preocupação, nem ele sabia dizer.

     Observou Jin Ling, seu sobrinho de 14 anos, ajeitar um fio de cabelo desalinhado que sequer existia pela milionésima vez em frente ao espelho. Ele havia passado máscara de cílios e um gloss cintilante que realçavam os traços delicados que herdou de sua falecida mãe. Tirou um amassado invisível da roupa e finalmente virou para sair, pulando de susto ao dar de cara com a expressão fechada e desconfiada do tio.

— Se importaria em me explicar o motivo de tanta demora e meticulosidade em se vestir p'ra bater perna na praça?

     As bochechas e orelhas do garoto atingiram cinquenta tons de vermelho diferentes em nem cinco segundos.

— Ah- eu- nada, Jiujiu! Nada, não! Impressão sua ... — Desconversou ao trocar o peso de perna e encarar qualquer lugar que não fosse o mais velho. — Eu ... estou indo?

     O rosto de Jiang Wanyin, mais uma vez, conseguiu quebrar seu recorde em mostrar uma carranca assustadora.

     Faziam algumas semanas desde que Jiang Wanyin notou certas mudanças no comportamento de seu sobrinho.

     Ele, que nunca gostou de acordar cedo e frequentar a escola, estava cada vez menos rabugento de manhã e caprichava mais na própria aparência antes de partir.

     Ele, que só fazia barulho para reclamar e retrucar os outros, andou rindo pelos cantos do apartamento com o celular na mão. Jiang Wanyin jura tê-lo escutado rir até de madrugada.

     Ele, que nunca mencionava ninguém ou qualquer eventualidade do dia, passou a contar anedotas inteiras durante o jantar – o que, cabe dizer, o mais velho apreciava e muito.

     Ele, que sempre exibia uma expressão beirando a dureza (assim como seu tio), adotou uma neutralidade quase suave em suas feições.

     Ele, que sempre tirou sarro dos fãs de romance, foi pêgo lendo "Heartstopper" e "A Culpa é das Estrelas". (Todas as vezes, ele saltava como um gato e mal sabia disfarçar, e o livro voar como um foguete de sua mão não ajudava em sua dissimulação. )

     Ele, que nunca saía de casa e, quando o fazia, era deveras exigente com o local, decidiu bater perna na praça. Todo arrumado. Exalando nervosismo e hesitação.

— O que aconteceu, Pirralho?

— Oi? Nada! — Cruzou os braços, trocou o peso de perna novamente e encarou seus All Stars pretos de cadarço amarelo como se fossem a coisa mais interessante do mundo. — Eu não fiz nada!

     Por um ou quinze segundos, nenhum dos dois falou. Para colaborar com a aura tensa, Jiang Wanyin bateu com o pé no chão repetidas e ritmadas vezes, como uma mãe furiosa.

— ... Nada que eu possa controlar?

     Suspirou pesarosamente e apertou a ponte do nariz, impaciente. Sua primeira pergunta, apesar de nada verossímil com a situação, foi inevitável:

— 'Tão fazendo bullying com você de novo, Jin Ling?

— Não. — Foi pronto e sincero na resposta, e o rubor conquistou parte de seu pescoço pela vergonha ao dizer. — Não ... não é nada, Jiujiu. Não precisa se preocupar.

— Meu sobrinho 'tá virando um morango. Que parte disso não é preocupante!?

     O comentário arrancou um riso nervoso do garoto, que brincou com a barra da manga de sua camiseta amarela para extravasar a ansiedade.

     "Eu não sirvo p'ra ter esse tipo de conversa com ele ..."

     Suspirou de novo. Chegou mais perto e tomou-lhe pelos ombros, abaixando-se para olhá-lo frente a frente.

— Tem alguma coisa te incomodando, Jin Ling? — Vasculhou sua expressão em busca de respostas, o tom estranhamente suave. — Algo que eu possa ajudar?

     As orbes cor-de-mel demoraram a encontrar as cor-de-relâmpago, pois o dono estava literal e figuradamente morrendo de tanta vergonha. Quando elas enfim cederam, Jiang Wanyin não teve mais dúvidas do que se tratava. Jin Ling tem os olhos da mãe, e o Jiang viu aquele sentimento passar pelo olhar da irmã vezes o suficiente para reconhecê-lo.

     Piscou repetidas vezes, tentando processar a informação.

— ... Jiujiu ... não surta-

— Quando foi que eu surtei, Pirralho!?

— ENFIM! — Engoliu com dificuldade, e fitou a maçaneta da porta ao questionar. – Jiujiu ... como que- como você sabe se alguém gosta ... de você?

     Uma ou quinze piscadas e Jiang Wanyin ainda não se recuperou do baque.

     Jin Ling passou a morar consigo com quase dois anos de idade, quando seus pais acabaram falecendo num acidente de carro. Por mais que Wei Ying, seu irmão adotivo, houvesse se oferecido para adotá-lo, Jiang Wanyin fez questão de tomar a guarda do sobrinho.

     Não foi nada fácil.

     Ele não era o tio mais carinhoso, nem o mais paciente. Ele não sabia falar sobre ... sentimentos. Ele gritava muito. Ele trabalhava muito. Ele não sabia "resolver" o bullying que Jin Ling sofria doutra maneira que não ameaçando espancar um monte de crianças de nem dez anos.

     A lista de defeitos do homem era quilométrica. Jiang Wanyin é torto, quebrado e bruto.

     Mas se ele é intenso na hora de odiar, é ainda mais na hora de amar, e não havia ninguém com uma porção de seu coração tão grande quanto a que Jin Ling ocupava.

Como você reage quando o bebê que você viu crescer ... se apaixonou pela primeira vez!? E bem debaixo do seu nariz!? Ele devia espancar alguém?!

— ESQUECE! — Desvencilhou-se do mais velho e correu para a porta. — Nada, não! Volto antes das seis. Te amo, tchau!

E então bateu a porta logo atrás do tio, deixando um Jiang muito, muito surtado para trás.

...

[— Posso saber o porquê de perturbar o meu sono da beleza?]

— É meio-dia, Wei Ying.

[— Seu ponto?]

— Quer saber? Esquece. Preciso da sua ajuda com uma coisa.

[— Uuuuh. — Riu-se, e Jiang Cheng escutou o irmão ajeitando-se sobre onde quer que estivesse dormindo anteriormente. — O Grande Cheng-Cheng quer a minha ajuda? Vai chover.]

— É algo que é do seu interesse.

[— O Wen Chao caiu e quebrou o pescoço?]

— O Jin Ling 'tá gostando de alguém.

     O moreno teve que afastar o celular do ouvido: seu irmão deu um berro.

[— O NOSSO BEBÊ!?]

— Não, Wei Ying. A tua mãe.

[— Grosso. — Gargalhou, incrédulo. — Senhor Jesus- quem é o consagrado?]

— E você lá sabe se é um cara?!

[— Você já olhou p'ra cara do seu sobrinho com o mínimo de atenção, Cheng-Cheng?]

— Podemos focar na parte de que eu não sei quem é?

[— Certo. Já sei. — Colocou a chamada no viva-voz, e antes que o irmão pudesse perguntar sobre isso, berrou. — A-YUAN, VEM CÁ!]

     "Perfeito", pensou. "Eles estudam na mesma escola! Ele deve saber de algo."

[— Que foi, Baba? O Jin Ling e o Lan Jingyi 'tão me esperando na praça.]

     Dois segundos de silêncio foram interrompidos por mais um berro.

[— BINGO! HAHAHAHAHAHA-]

[— ... Baba, por que o Tio Wanyin tá em chamada com você?]

— Lan Yuan ... — disse, literalmente tremendo. — eu preciso de um favor.

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