51. lying game

A CADA PASSO que Savannah dava em direção às docas, mais tenso ficava seu corpo. Era inevitável; após os acontecimentos da noite anterior, nos quais Amelia fora atacada e Savannah, em resposta, espancara o homem que havia tentado feri-la, o local não lhe passava uma sensação boa. Nunca passou, na verdade, considerando que já fora um antro de drogas e agora era algo mais. A Major tinha teorias sobre tráfico de armas ocorrerem ali, embora, agora, sua maior preocupação fosse investigar a armadilha preparada para Kyle no dia passado.

Savannah precisava saber se havia alguma outra coisa por trás daquilo: um verdadeiro descarregamento de armas que só estava sendo vigiado, ou se realmente tudo havia sido apenas uma armação. Se haviam tentado mandar Kyle para sua morte, se Josie estava ciente ou não disso, se havia alguma prova, qualquer prova, que pudesse colocar um fim às aflições de Savannah. Fosse como fosse, ela estava ali para descobrir.

Sendo assim, a garota havia saído do trabalho e ido direto para as docas. Apesar da missão de reconhecimento em que estava prestes a embarcar, ela não vestia o seu uniforme; ele ainda estava molhado da última lavagem, quando Savannah havia tentado tirar as manchas frescas de sangue que haviam respingado no tecido militar na noite anterior. Além disso, ela não queria chamar atenção para si mesma, de modo que também havia deixado o bastão de beisebol em casa. Ainda assim, ela usava o colete à prova de balas por baixo do suéter e carregava consigo o seu confiável taser, agora recarregado depois do confronto no restaurante algumas semanas atrás.

Savannah caminhava pelas ruas já escurecidas dos arredores das docas, tentando não pensar em como ela havia deixado Amelia naquele exato local, para então a amiga ser atacada. Ela quase esperou ver a figura de um homem caído no chão mais adiante, o rosto estourado além do reconhecimento, seu sangue manchando o asfalto em seu entorno. Ela sabia que era besteira, afinal, quase um dia inteiro se passara desde então, e ele já devia ter acordado, ou, ao menos, sido socorrido — mesmo assim, o pensamento a fez travar por alguns instantes, um gosto amargo inundando a boca conforme perscrutava a rua em busca de qualquer vestígio da agressão, ainda que soubesse que aquilo só faria mal a ela, que não adiantaria procurar por provas do que ela havia feito, que...

— Ei, aonde pensa que vai com isso?!

O grito alcançou Savannah através da bolha de angústia que se formava em torno dela. Lançando tais pensamentos para o fundo de sua mente, a menina ficou atenta, e, em uma ruela tão deserta quanto aquela, não foi difícil encontrar a origem do som que lhe chamara a atenção. Na fachada da farmácia que ocupava a esquina mais próxima, dois homens brigavam por um pacote, ambos puxando-o com força na tentativa de arrancar das mãos um do outro. Não era preciso muito para perceber que aquilo se tratava de um roubo, apesar de não estar muito claro quem era o ladrão e quem era o comerciante.

Os pés de Savannah começaram a se mover antes que ela se desse conta. Era daquilo que ela precisava: um pouco de ação para se distrair. Dessa forma, após se certificar de que ninguém a via, ela abaixou a máscara de esqui no topo da cabeça e correu em direção à cena. A vigilante a alcançou bem a tempo de ver os homens perderem o controle do cabo de guerra; a embalagem pela qual lutavam saiu voando, e os dois escorregaram para trás, caindo com tudo no chão. Por um instante, os homens permaneceram parados, aturdidos demais para fazer qualquer coisa. Porém, não demorou para que avistassem Savannah, e um deles bradou:

— Não deixe que ele escape! — O homem, agora identificado como o comerciante, apontou freneticamente o ladrão. — Derrube-o!

O bandido, por sua vez, continuava no chão, congelado. Ele, que nem ao menos usava uma máscara, olhava para a Major com medo em sua face — um medo que, em qualquer outro dia, seria bem-vindo, mas fez as entranhas de Savannah se revirarem naquele momento. Ela não conseguiu deixar de pensar no último confronto em que havia se envolvido, em todos os erros que havia cometido até então: a expressão daquele homem lembrava, de certa forma, a expressão do criminoso da noite anterior, e Savannah viu-se incapaz de se mover, de respirar, conforme revivia o momento fatídico da outra noite. Lia gritando, a dor da faca perfurando seu braço, então suas juntas estalando contra o nariz do criminoso, a sensação viscosa do sangue dele em suas luvas...

— O que está esperando?! Prenda-o agora!

O grito esganiçado do vendedor arrastou a vigilante de volta à realidade. Havia um peso em seu peito que aumentava à medida que as lembranças se esforçavam para ressurgir, mas a Major compriu os lábios e balançou a cabeça. Ela precisava se recompor e fazer o seu maldito trabalho direito. Não adiantava ficar pensando no que havia acontecido, no que ela havia feito, pois não tinha como voltar atrás. Porém, no presente, ela tinha o poder de fazer as coisas diferentes, e tinha de agir antes que o ladrão fosse embora... Se bem que ele ainda estava no chão, olhando para a Major com pavor e sem fazer menção de se mexer. Ele, pelo jeito, não iria a lugar algum.

Decidida a não deixar seus erros a impedirem de fazer o que era certo, Savannah por fim avançou, pronta para imobilizar o ladrão — entretanto, uma olhadela para o embrulho que ele tentara roubar, caído alguns metros mais à frente, a fez parar.

Era um pacote de fraldas.

Algo dentro de Savannah se comprimiu com a visão. Ela tornou a observar o homem, percebendo suas roupas gastas, sua expressão assustada, suas mãos trêmulas. Aquele, com certeza, não era um criminoso. Era um homem assustado, possivelmente um pai de família querendo prover para seus bebês, mas sem recursos o suficiente para fazê-lo. O coração de Savannah pareceu quebrar diante da situação. O quão difícil a situação daquele homem devia estar para que ele recorresse ao roubo?

Às vezes, diante de toda a corrupção e maldade que ela enfrentava, era fácil esquecer que não era sempre violência e ganância que motivavam as pessoas. Nem todos os ladrões eram pessoas que faziam o que faziam porque podiam, porque queriam. De fato, algumas pessoas buscavam ferir, beneficiar-se e lucrar em cima dos esforços dos outros, e eram eles quem Savannah queria parar. Contudo, certas vezes — admitidamente poucas, mas ainda assim —, os ladrões com quem se deparava podiam ser apenas pessoas desesperadas sem outra alternativa além do crime. Como aquele homem.

Sem pensar duas vezes, Savannah disse:

— Vai.

Por alguns segundos, a expressão amedrontada do homem tornou-se confusa e, então, chocada, como se ele não pudesse acreditar no que estava escutando. Para indicar que estava falando sério, a garota assentiu e indicou o pacote de fraldas com o queixo. O ladrão, apesar de hesitar alguns segundos, pareceu entender a deixa. Rapidamente, ele se ergueu, apanhou as fraldas e saiu correndo.

Atrás de si, Savannah escutou o comerciante xingar.

— Que merda você acabou de fazer?!

Savannah suspirou. Ela sabia exatamente o que um aquilo parecia: a Major compactuando com um crime. Por mais que não houvesse câmeras por perto, já imaginava o que as manchetes diriam caso ficassem sabendo de sua proeza. Mesmo assim, ela não conseguia se arrepender. A Major existia para lutar por justiça, para acudir as pessoas que necessitavam, e era exatamente aquilo que ela havia feito. Até onde sabia, aquele era um homem desesperado para cuidar de seus filhos, tendo que recorrer ao roubo para poder fazê-lo. Não era correto, mas ela não o prenderia e o sentenciaria à cadeia por aquilo. Ele merecia uma chance de ajudar sua família, da maneira que podia no momento.

Claro que o vendedor não pensava daquela maneira. Honestamente, Savannah não podia culpá-lo. Era uma situação delicada, mas não era difícil olhar além dos próprios privilégios para perceber como a vida poderia ser dura para outras pessoas. Não era difícil ter um pouco de empatia.

A Major se aproximou do comerciante para ajudá-lo a se erguer, mas ele bateu em suas mãos assim que ela as estendeu. A jovem recuou com os braços erguidos em um sinal de rendição. Ela não estava ali para brigar; sabia que não havia feito exatamente a coisa certa, embora, em seu âmago, sentisse que sim. Assim, ela observou o homem se erguer sozinho e com dificuldade, seu corpo tremendo devido à raiva contida.

Você! — Ele apontou um dedo rechonchudo para Savannah de maneira acusatória. — Aquele cara acabou de roubar fraldas, e você o deixou ir!

— Sim — Savannah começou pacientemente, coisa que era rara para ela —, e, quando isso acontece, acho que o problema deixa de ser o furto e passa a ser o fato de que alguém tem que considerar roubar para conseguir o que deveria ser um direito básico.

— E eu com isso? Estou perdendo o meu lucro! Você acabou de me custar noventa dólares!

Savannah comprimiu os lábios. Ainda que soubesse que aquele homem havia acabado de ser vítima de um furto, não estava inclinada a se sentir mal por ele. Ele tinha todo o direito de estar bravo, claro, mas noventa dólares por um pacote de fraldas? Aquilo a fazia questionar quem estava roubando quem, na verdade. Ela mordeu a língua para se refrear de dizer aquilo em alto e bom tom, pois sabia que, depois de suas últimas ações, não estava no direito de dar sermões para ninguém, por mais que ela quisesse. Dessa forma, Savannah apenas abriu a bolsa que carregava e pegou de sua carteira, de onde tirou uma nota de cem dólares. Era velha e amassada, algo que ela mantinha consigo apenas para o caso de emergências, e foi a muito contragosto que ela estendeu para o homem à sua frente. Não acreditava que estava se desfazendo de cem dólares assim, mas era a coisa certa a se fazer.

— Tome — ela disse. — Estou pagando pelas fraldas.

— Você pensa que isso compensa o que você acabou de fazer?!

Daquela vez, Savannah permitiu-se revirar os olhos.

— Já que estou pagando pelo que aquele homem levou, você não foi mais roubado. Agora, não perdeu nenhum lucro — ela inclinou a cabeça e abriu um sorriso ácido, e, ainda que ele não conseguisse vê-lo, era possível ouvi-lo em sua voz. — Pode ficar com o troco.

O comerciante a olhava com um ódio escaldante, seu rosto vermelho e os olhos esbugalhados indicativos do quão irritado ele estava com tudo isso. Entretanto, ele aceitou o dinheiro, puxando-o rapidamente de suas mãos como se ela pudesse mudar de ideia. Após observar a nota por alguns segundos, provavelmente para verificar se era verdadeira, ele voltou a atenção para a vigilante.

— Jameson está certo. Você é uma fraude. — Ele praticamente cuspiu. — Acaba de perder o pouco respeito que eu tinha por você.

Talvez, algumas semanas atrás, aquilo tivesse afetado Savannah. Ela sempre se importou com o que falavam de seu alter-ego, afinal. Chateava-se quando os civis que tanto buscava proteger a consideravam mais um incômodo, uma ameaça, do que a heroína que tentava ser. Ela sabia que não podia agradar a todos e ainda estava tentando conviver com aquilo, mas ter pessoas como J. Jonah Jameson diluindo seu ódio por ela aberta e gratuitamente a incomodava mais do que ela gostaria. Todavia, agora, ela simplesmente achou irritante. Nos últimos tempos, ela vinha aprendendo a acreditar mais em si mesma, e já tinha o apoio de quem mais importava para ela. O que a opinião de uma pessoa amarga e sem empatia como aquela mudaria em sua vida? Ela quase quis rir.

Oh, não, o que eu farei agora?

Dito isso, ela se virou e começou a se afastar, diversas injúrias dirigidas às suas costas. Savannah não ligou conforme se aproximava da entrada das docas; logo, tudo ficou para trás, e suas preocupações voltaram em uma torrente. Ela pensava em Lia, na armadilha, em Kyle. Se ele não tivesse estado ocupado na noite anterior, poderia muito bem ter sido ele a deparar-se com aquela armadilha, e ele, decerto, não recorreria à violência e enganações, como Savannah, para se salvar. Ele seria morto pelos homens que haviam estado de prontidão, aguardando nas sombras para dar cabo em quem quer que aparecesse por lá.

Savannah se perguntava se a culpa de tudo aquilo recaía no tal informante de Josie, a mãe de Theo e Chefe do Departamento de Polícia de Nova York. Será que ele havia sido enganado, levado a acreditar que um descarregamento de armas ocorreria naquela noite em questão, ou será que havia mentido deliberadamente? Ela não duvidava de nada, honestamente.

Existia também uma terceira opção, uma que Savannah não queria nem ao menos considerar. Poderia ter sido a própria Josie a armar aquilo? A garota não era estranha ao fato de haver corrupção dentro da Polícia de Nova York, e não seria impossível terem infiltrados na alta patente... mas Josie era uma conhecida da família. Ela não teria guiado Kyle para uma armação como aquela, teria? Kyle confiava nela, em sua índole, e aquilo tinha que significar alguma coisa, certo? Além do mais, Theo havia sido atacado pouco tempo atrás pelos tais policiais corruptos. Ela não poderia compactuar com as pessoas que haviam tentado matar o seu próprio filho. Aquela era uma opção praticamente improvável, não? Savannah estava apenas sendo paranoica.

Ainda assim, ela não conseguia deixar de imaginar se aquele era o caso. Quem mais saberia da investigação em paralelo de Kyle? Ele estava trabalhando sozinho no próprio caso para desvendar os mistérios por trás do crime organizado, e havia pedido ajuda a Josie e Josie apenas. Não era impossível Montgomery ter usado os ferimentos de Theo para chegar na mulher e forçá-la a trabalhar para ele... Afinal, aquela armadilha estava, provavelmente, ligada a ele. Tráfico de armas, mesmo as que não faziam parte do lote produzido pelo Abutre anteriormente, era parte de suas operações. Era muito possível que Josie o tivesse alertado sobre Kyle, e ele tivesse preparado uma armação para tirá-lo da jogada...

Perdida em pensamentos, Savannah somente reparou que estava chegando ao ponto de encontro do dia anterior quando o GPS de seu celular a alertou que estava próxima de seu destino. A partir daí, a menina ficou em alerta: ela duvidava que, após ter surpreendido os bandidos previamente, eles ainda estivessem ali. Como Kyle não havia aparecido na noite anterior, também não havia como repetir a desculpa de um descarregamento de armas para dar continuidade à armadilha sem que levantasse suspeitas. Savannah havia apagado o e-mail da caixa de mensagens do irmão, de forma que não havia chances de ele aparecer por lá para investigar, mesmo que tardiamente. Assim, a Major acreditava que a barra estava limpa, mas todo cuidado era pouco.

Estava na hora de investigar de verdade agora. Depender de achismos não a levaria a nada, e ela precisava de provas decentes para poder sustentar suas teorias. Sendo assim, Savannah observou o local com atenção: parecia igual à noite anterior, vazio e mal iluminado. Portas e mais portas se estendiam mais à frente, metros e mais metros de armazéns escuros. Não havia movimento por perto, e, naquele momento mais do que nunca, Savannah desejou ter a tecnologia Stark consigo para identificar movimentos suspeitos com mais facilidade. Entretanto, ainda teria de aguardar um bom tempo até ganhar seus novos equipamentos, e teria de fazer as coisas da maneira que sempre fazia.

— Vamos ao trabalho — ela sussurrou para si mesma antes de começar a se mover.

Tudo era silencioso conforme Savannah adentrava a região dos armazéns. A lua brilhava acima de sua cabeça contra o céu noturno, sua claridade nem de perto o suficiente para iluminar o caminho que Savannah traçava. Os poucos postes de luz presentes no ambiente ou estavam apagados ou piscavam, de modo que a jovem precisou ligar a lanterna do celular — na potência mínima, mas ainda assim — a fim de enxergar propriamente. Ela andou pelo armazém com cuidado, procurando por qualquer coisa que pudesse parecer suspeita.

Por fim, após alguns minutos de busca infrutífera, ela seguiu em direção ao armazém de número 21, que fora descrito no e-mail da mãe de Theo como o local de armazenamento das armas. Logo que o alcançou, Savannah reparou que a porta estava com a tranca aberta. Estourada, na verdade, como se tivesse sido aberta à força. Aquilo definitivamente era interessante, não? Savannah aproximou-se da porta e colou o ouvido nela na tentativa de tentar captar algum som que pudesse vir do outro lado, mas havia apenas quietude. Por fim, ela puxou o trinco e ergueu a porta, a qual rolou para cima com um estrondo nada discreto. A menina encolheu os ombros com uma careta diante do barulho súbito.

— Bem — ela pensou alto —, agora já era.

Savannah aumentou a intensidade de sua lanterna antes de saltar para dentro do armazém. Ela apalpou as paredes em busca de um interruptor, para então o espaço ser iluminado por uma lâmpada amarela e fraca. Guardando o celular, a Major observou o local: ele era comprido e estreito, e, com exceção de uma mesa rodeada por cadeiras, encontrava-se completamente vazio. Apoiado contra a parede, estava um pé de cabra, provavelmente utilizado para arrombar a porta. Savannah o apanhou com as mãos enluvadas, sentindo seu peso de forma reconfortante à medida que rondava o espaço. Não havia nada de especial nele, nada que dissesse que havia tido um descarregamento de armas ali. Nem ao menos havia estantes para armazená-las, apenas cadeiras em que os bandidos se sentaram enquanto aguardavam Kyle aparecer. Dava para ver que não haviam feito o mínimo para encobrir aquela armadilha, para tentar fazer parecer algo mais genuíno.

Savannah estava certa, no final das contas. Não que fosse uma surpresa, considerando tudo que havia descoberto até então. Agora, cabia a ela descobrir quem estava por trás daquilo, embora fosse ser difícil, talvez até impossível, encontrar o seu principal suspeito, o tal informante de Josie, e...

— Olha só quem temos aqui.

Savannah girou mais do que imediatamente ao ouvir a voz às suas costas, o pé de cabra em riste para se defender. Entretanto, a figura apoiada contra a entrada não fez menção de atacá-la; a Gata Negra somente a observava com os braços cruzados no que deveria ser uma pose relaxada, apesar de seus ombros retesados denunciarem a tensão de seus músculos. Pelo jeito, ela não estava tão confiante quanto tentava aparentar, e Savannah tinha quase certeza de que isso tinha a ver com a Major. Apenas um mês havia se passado desde seu último encontro na joalheria, mas ambas haviam estado muito ocupadas desde então. A reputação da Major estava crescendo e ela ganhava cada vez mais reconhecimento, enquanto a Gata Negra agia cada vez mais estranhamente. De liderar quadrilhas até se esgueirar pelas docas à noite, aquele não era o comportamento típico para um gatuno.

Por um momento, elas se encararam, como se imaginando quem faria o primeiro movimento. Por fim, a ladra deu de ombros e se afastou da porta, andando com uma lentidão deliberada em direção à Major. Apesar da postura casual dela, Savannah não abaixou a guarda. A Gata Negra até poderia não parecer que estava prestes a atacar, mas a Major havia aprendido a não subestimá-la, e queria estar pronta para o caso de um confronto se iniciar.

— Depois da sua façanha de ontem, eu estava me perguntando quando você iria aparecer de novo.

Um calafrio percorreu o corpo de Savannah com as palavras, sua mente imediatamente voltando para o ataque a Lia. Para sua luta com o criminoso que tentara machucar a amiga. Suas juntas latejaram em um lembrete do que havia feito na noite passada, e ela apertou mais o pé de cabra em um reflexo. Entretanto, foi apenas após alguns segundos que a menina percebeu que não era àquilo que a Gata Negra se referia; ela falava da única coisa que poderia saber a respeito, que seria Savannah ter interrompido a armadilha. E, se a Gata Negra sabia sobre o acontecimento, significava que a vigilante estivera certa. Aquilo era obra de Montgomery. Somente assim para a ladra estar ciente do que ocorrera: provavelmente, após ela estragar o ardil, os criminosos se reportaram ao seu chefe, e ele mandara a mulher... o quê, apagar evidências? Provas do que haviam tentado fazer? Ela não duvidava de nada, embora fosse um serviço um tanto quanto estranho para dar para uma ladra de joias. Qual era o motivo por trás da vinda da Gata Negra até as docas naquela noite?

Percebendo que a jovem ainda esperava uma resposta, Savannah ergueu o queixo.

— O quê, sentiu saudades?

Ela não podia deixar transparecer o quanto queria informações. Do contrário, a Gata Negra iria se aproveitar daquilo, e Savannah se recusava a lhe dar vantagem. Felizmente, a ladra pareceu comprar sua atuação, e tornou a falar.

— De você? Sempre. Quem mais me deixaria entretida durante os meus roubos?

— Justo. Eu bem que senti falta de te acertar com o meu bastão.

Quando a Gata Negra sorriu, Savannah não pode deixar de notar seu maxilar tensionado. Pelo jeito, a ladra não estava tão no controle quanto aparentava estar, e as investidas da Major haviam ferido seu orgulho mais do que ela desejava. Com os cantos dos lábios erguidos, Savannah girou o pé de cabra nas mãos em uma ameaça clara.

— Por favor, não precisamos disso. — Por fim, após alguns segundos em inércia, a ladra inclinou a cabeça para o lado, então apontou para a arma da menina. — Somos todos amigos aqui, não?

Savannah pensou em todas as interações que elas haviam tido até então. Entre a luta na fábrica clandestina e, depois, na loja de joias, ambas as quais deixaram a Major um pouco mais ferida do que ela havia esperado, ela não diria que as duas estavam sequer em bons termos, embora o fato de não estarem se atracando no momento fosse, de fato, curioso. Se a Gata Negra estava mesmo disposta a conversar, quem sabe Savannah realmente não conseguisse arrancar algo dela?

— Somos? — Ela respondeu, ainda sem abaixar o pé de cabra.

O sorriso da Gata Negra tornou-se ferino, como se Savannah tivesse dito exatamente o que ela deseja ouvir.

— Se você quiser. Eu posso ser uma amiga valiosa, sabe? Tenho informações que você pode considerar muito interessantes.

A vigilante fez de tudo para manter o rosto impassível, ainda que ele estivesse coberto por uma máscara que impossibilitava que vissem a expressão por trás. Ela receava que sua linguagem corporal pudesse denunciar o quanto ela ansiava por tais informações, e lutou para manter a voz neutra quando replicou:

— Que tipo de informações?

— Ah, não vai ser assim tão fácil, Majorzinha. — Ela disse com malícia, os olhos parecendo cintilar quando notou os ombros de Savannah tensionarem diante do apelido que tanto odiava. Ele sempre era utilizado pelos bandidos para diminuirem-na, afinal, e, enquanto não ligava para o que os criminosos diziam dela, ainda era difícil manter-se impassível diante do desprezo que a palavra carregava. — Eu faço algo por você, e você faz algo por mim em troca.

— Não estou interessada em joguinhos.

Era mentira, claro. Savannah sabia que aquilo, no final das contas, seria apenas um jogo para a Gata Negra — tudo parecia ser um jogo para ela —, e estava disposta a jogar. Ainda assim, ela estava representando o papel ali da heroína relutante apenas para tentar ter um pouco de controle sobre a situação. Dessa forma, ela fez menção de se mover, e, exatamente como previra, a ladra se colocou em sua frente.

— Você nem ouviu meus termos ainda!

Quando o tom modulado de sua voz soou um pouco mais instável do que o normal, Savannah soube que havia ganhado aquela partida. Normalmente, ela não recorria a diálogos para conseguir o que queria como vigilante, e certamente não utilizava de manipulações em praticamente nenhuma instância de sua vida. Porém, se queria ficar à frente da Gata Negra naquele jogo, ela precisava estar disposta a ir além do convencional; daquela vez, não seria com lutas que ela resolveria as coisas — não, ela já havia lutado o bastante no dia anterior para uma semana inteira —, mas, sim, explorando as camadas emocionais da ladra à sua frente. Se ela incomodasse a Gata Negra o bastante a ponto de conseguir o que queria, se a provocasse o suficiente para descobrir o que precisava... Sim, Savannah se considerava uma pessoa mais direta do que ardilosa, porém, se havia aprendido alguma coisa naqueles últimos meses de mentiras e acrobacias para manter sua identidade secreta e arrancar informações tanto de seu irmão quanto de bandidos, era que ela precisava ser engenhosa com o que tinha à sua disposição. E, naquele momento, era a Gata Negra e sua arrogância que ela precisava explorar.

Para ela, era nítido o fato de a Gata Negra estar desesperada para se livrar das amarras que a prendiam, tanto que estava disposta a ir até a Major, de todas as pessoas, para ajudá-la. Não que Savannah acreditasse que a mulher fosse uma vítima da sociedade — estava claro que ela era uma ladra porque gostava, mas havia perdido sua independência para o esquema de crimes de Montgomery, e agora buscava os heróis que tanto desprezava para se livrar de seu novo chefe.

— Você realmente não aguenta mais, não é? — Savannah começou, então, a voz propositalmente preguiçosa, como se não estivesse nem um pouco interessada.

A criminosa piscou os olhos claros em um sinal de confusão, e foi estranho ver uma expressão genuína tomar conta de seu rosto mascarado.

— O quê?

— O seu acordo com Montgomery, o que quer que seja. Ele está te coagindo a trabalhar para ele, correto?

Os ombros da Gata Negra se retesaram de maneira visível, o que devia significar que Savannah estava tocando em um assunto sensível; qualquer que fosse a verdade, ela estava chegando perto de descobrir. A vigilante não esperava que a criminosa fosse lhe revelar as motivações por trás de suas ações, mas, caso ela conseguisse pressionar os pontos certos, esperava que seus maneirismos a denunciassem.

— Você não sabe do que está falando. — A Gata Negra respondeu entredentes.

— Não? — Savannah colocou a mão na cintura em uma pose que dizia que não estava acreditando nem um pouco na ladra. Ela queria provocar a Gata Negra, atacar seu ego para fazê-la se revelar. — Talvez eu esteja errada, mas reparei como seu comportamento mudou de uns tempos para cá. Antes, você atacava joalherias na calada da noite, e agora está liderando quadrilhas em plena luz do dia. A julgar pelo modo como Montgomery a controlou naquele dia na fábrica, você está trabalhando para ele, e provavelmente não quer mais. Afinal, se você está disposta a trocar informações comigo, está realmente desesperada. É o que acontece quando se coloca uma gata em uma coleira. — Savannah, então, inclinou a cabeça para o lado com prepotência. — Acertei?

Àquela altura, a menina estava lançando suas suposições, baseadas em nada além de poucas interações e observações minuciosas ao longo das últimas semanas, sobre a ladra, mas estava surtindo o efeito desejado: a Gata Negra, em silêncio, ficava cada vez mais tensa, olhando para Savannah com tamanho ódio que ela só podia presumir que seus palpites estavam corretos. Satisfação se espalhava pelo peito da heroína a cada segundo que se passava — não que ela sentisse prazer em ver o desconforto da Gata Negra, mas era bom saber que estava certa. E, ok, se fosse ser sincera... era bom também dar o troco na criminosa, que uma vez já a humilhara. Agora, era a vez dela de se sentir impotente, e Savannah estava aproveitando aquilo um pouco mais do que deveria.

Quando não houve resposta, Savannah deu alguns passos em sua direção, o sorriso que despontava de seus lábios oculto pela máscara. Ela ficou cara a cara com a Gata Negra, então inclinou-se ligeiramente e sussurrou:

— O que foi? O gato comeu sua língua, foi?

E ela não pôde evitar soltar um risinho — um risinho! — enquanto se afastava e seguia para fora do armazém, deixando a Gata Negra plantada em seu lugar, sem fala diante das suposições certeiras da Major. Uma vez de volta ao pátio e à noite de poucas estrelas, Savannah andou vagarosamente, como se estivesse pronta para tomar seu próprio rumo quando, na verdade, contava em sua própria cabeça os segundos até a reação da Gata Negra. Se fosse um ataque ou uma resposta propriamente dita, ela não sabia dizer, mas estaria preparada de qualquer forma.

Ela já estava no segundo nove quando ouviu a jovem às suas costas dizer amargamente:

— Suponho que você goste de ouvir que está certa, não?

Savannah parou de andar, agradecendo infinitamente por sua expressão estar encoberta pela máscara de esqui e pela criminosa não poder ver, assim, a pura satisfação que adornava seu rosto. Ela respirou fundo na tentativa de controlar a animação que zumbia por seu sangue, que clamava por respostas. A menina se obrigou a manter a fachada arrogante que havia adotado até então, a que usava para parecer que estava no controle quando, na verdade, ela estava tão contente que quase dava pulinhos. Ainda assim, ela se manteve impassível ao olhar por cima do ombro. 

— É sempre bom, sim.

A Gata Negra suspirou, contrariada, e saltou para fora do armazém. Ela cruzou os braços, os olhos presos na Major como se debatasse se pedir ajuda, especialmente depois de como fora tratada, era uma boa ideia. Por fim, dando-se por vencida, ela voltou a adotar a expressão dissimulada de sempre, e foi como se aquele momento de farpas jamais tivesse existido, quanto mais a afetado.

— Então, o que vai ser?

— Por que acha que eu confiaria em você?

— Porque você quer informações, e eu... — Por um momento nada característico, a mulher hesitou. Aquilo era apenas mais uma prova de que Savannah estava certa: Montgomery tinha algo contra a Gata Negra e usava aquilo para controlá-la.

— O quê? — A Major instigou. Àquela altura, ela estava provocando a ladra deliberadamente. Aquilo lhe dava uma satisfação maior do que ela estava disposta a admitir.  — Você quer se livrar dele, obviamente. Mas por quê? Tem medo dele, é isso?

— Claro que não — a jovem falou um pouco rápido demais, o que Savannah considerou como um sim. — Mas talvez você devesse ter. Montgomery é mais perigoso do que aparenta.

— Se você acha que eu vou ter medo de um homem com problemas capilares, está muito enganada.

Apesar da fala presunçosa, Savannah sabia que não deveria subestimar o homem, e realmente não o fazia. Ela não o temia, claro, mas também não ignorava o risco que ele representava à cidade e aos seus habitantes. Afinal, Montgomery era um sociopata mafioso desesperado por poder e controle, e pessoas assim sempre eram uma ameaça aos outros.

A Major não sabia se a Gata Negra havia visto as entrelinhas de suas palavras, mas ela exibiu um sorriso diante da piada, talvez uma das primeiras emoções genuínas que Savannah já a vira demonstrar. No final das contas, as duas tinham algo em comum: seu desprezo por Montgomery.

— Certo. Digamos que eu resolva confiar em você. E então?

— Como um gesto de bom grado pela sua decisão prudente, irei responder a uma pergunta sua.

— E eu deveria simplesmente acreditar na resposta?

— Assim você me magoa — a Gata Negra pôs a mão no peito com dramaticidade, então fez um floreio para que a Major prosseguisse. — Escolha com sabedoria.

Savannah hesitou por um instante. Havia tantas coisas que ela desejava saber, tantas coisas que poderiam ajudá-la a dar um passo adiante naquele caso... Coisas que a Gata Negra poderia ou não saber. A menina não queria arriscar fazer a pergunta errada somente para receber um simples "não sei" e perder a sua chance — porque, naquele jogo, ela não duvidava que a ladra diante de si pudesse enganá-la daquela forma. Portanto, ela tinha que escolher, como a própria Gata Negra dissera, com sabedoria. Sabia que havia coisas naquele esquema às quais a criminosa não tinha acesso, e, mesmo que tivesse, Savannah nem saberia por onde começar a perguntar... Ela tinha que ir com calma. Quem sabe, se pudesse amolar a Gata Negra, poderia descobrir mais do que pretendia.

— Eu não tenho a noite inteira, sabia? — A ladra alfinetou com acidez.

Savannah revirou os olhos, mas fez sua pergunta.

— Quem deu as informações para vocês montarem a armadilha de ontem?

Era um questionamento simples, ela sabia. Mas estava cumprindo o que havia ido fazer lá, no final das contas: descobrir sobre a armadilha. Se ela pudesse obter informações pertinentes, poderia não apenas concluir o que havia acontecido na noite passada a partir das ordens da Gata Negra, mas também entender o tipo de acordo que a ladra tinha com Montgomery, e então explorá-lo a seu favor.

Cumprindo sua palavra, por mais incrível que pudesse parecer, a Gata Negra começou a falar.

— Não sei — ela deu de ombros, para a decepção de Savannah. — Não me deram um nome quando passaram o trabalho. Mas não era você que estavam esperando surpreender, se é isto que está pensando. Era outra pessoa, mas não sei quem nem porquê. Tudo o que sei é que deveríamos eliminar uma ameaça ontem, só que você meio que arruinou o elemento surpresa, e nunca chegamos a fazer o que precisava ser feito. Estou aqui apenas para garantir que não haja provas da noite passada.

Apesar de decepcionante, a resposta pareceu verídica o suficiente, pelo menos. Muito batia com o que Savannah vinha supondo até então — e ela tinha certeza absoluta de que a ameaça da qual eles haviam planejado se livrar era seu irmão e sua investigação à parte. Mas o que aquilo significava, então? Que havia sido Josie a delatar Kyle? Ou o informante havia enganado os dois? Ou era outra coisa, algo que ela ainda não havia considerado?

— Nunca houve um descarregamento de armas, claro — Savannah murmurou consigo mesma, e a Gata Negra não disse nada. — Foi Montgomery que ordenou a armadilha diretamente? Ele ficou sabendo por meio de informantes na polícia?

A ladra abriu um sorriso malicioso.

— Ah, não, isso é mais de uma pergunta. — Ela examinou as próprias unhas com um desinteresse maior do que realmente possuía. — Eu disse que ia responder apenas uma.

Savannah comprimiu os lábios por um breve momento, reprimindo a vontade de grunhir nada elegantemente. Ela sabia que não poderia parecer desesperada por respostas, ou então a Gata Negra ganharia o controle daquele jogo de mentiras. Era tudo o que aquilo era, no final das contas: a Gata Negra mentia a respeito dos conhecimentos que possuía, e a Major mentia sobre não estar ansiosa para descobri-los. Era uma linha tênue a se andar, entre a verdade e a enganação, e era difícil manter as aparências quando se estava tão próxima da verdade. A menina sabia que a Gata Negra possuía mais informações, e se pudesse enganá-la a fim de fazê-la revelá-las...

— Estou falando sério. — Ela disse com a maior indiferença que conseguiu reunir, o que foi a muito custo.

— E eu também.

— Você não disse que queria ajuda? — Savannah até tentou não parecer impaciente, mas foi impossível. Diante da expressão presunçosa da Gata Negra, a menina conseguia sentir sua vantagem escapando por entre os dedos feito areia. — Como posso fazer isso se não tenho com o que trabalhar?

— Nunca falei que queria ajuda. E, mesmo se eu quisesse, você acha que eu daria informações assim de graça, sem ganhar nada em troca? — Ela abriu um sorriso amarelo. — Se quiser saber mais, vai ter que fazer algo por mim também.

A expressão da vigilante se contorceu em uma careta diante das palavras. Nada de bom poderia vir de um favor feito à Gata Negra, e Savannah só podia imaginar o que ela iria pedir; ajuda em um roubo, talvez? Se livrar de uma pedra no sapato — uma ainda maior do que Savannah era para ela? As opções de ilegalidade iam além, e a garota não estava disposta a cooperar com crime algum somente para conseguir o que queria. Ainda assim, arriscou:

— Tipo?

Em vez de abrir o sorriso arrogante de sempre, tal qual a Major imaginava que ela faria quando conseguisse o que tanto queria, a Gata Negra ficou séria, o que devia significar, no mínimo, que era algo importante. Entretanto, antes que ela pudesse responder, sua atenção desviou-se por um segundo. Ela se retesou, e então se afastou.

— Você vai saber quando chegar a hora. — Antes de se virar, a ladra indicou com o queixo um ponto atrás de Savannah. — Aliás, lá vem o seu namorado.

A heroína não tinha dúvidas de que ela falava do Homem-Aranha, claro, e não ficou surpresa com a menção. Ela mesma havia pedido para Peter encontrá-la nas docas naquela noite. Mesmo assim, não conseguiu evitar espiar por cima do ombro, bem a tempo de ter um vislumbre de um uniforme vermelho e azul se balançando pela noite. Ele estava cada vez mais próximo, e Savannah sabia que seu tempo era escasso. A Gata Negra podia até confraternizar com um vigilante, mas dois? Era, sem dúvida, uma ameaça para ela. Se a Major quisesse arrancar mais alguma informação da criminosa, a hora era agora; ela precisava chegar ao fundo daquele jogo, descobrir pelo menos alguma outra coisa...

Contudo, quando Savannah voltou-se para frente, a Gata Negra já havia desaparecido, levando assim consigo todas as informações que ainda escondia.

— Eu patrulhei ontem. E hoje também.

Os olhos de Savannah estavam fixos em Peter conforme ela proferia as palavras, como se ela se recusasse a se esconder de seus atos. Era o que o Homem-Aranha imaginava, pelo menos, ao ser encarado tão intensamente por suas orbes azuis. Não havia orgulho em sua face, mas também não havia covardia, claro, porque aquela era Savannah — e, quando Savannah colocava algo em sua cabeça, não havia nada que poderia fazê-la mudar de ideia, por mais errado que fosse. Dessa forma, claro que ela havia desobedecido ordens médicas e saído em vigília. O rapaz não estava surpreso por ter acontecido, e, sim, por não ter acontecido antes.

Peter deu uma mordida em sua pizza antes de responder.

— Eu já imaginava.

A resposta fez Savannah comprimir os lábios em um sorriso adoravelmente culpado antes de por fim desviar os olhos dos seus e voltá-los para o horizonte que se estendia à frente. Um mar de prédios os encarava de volta, suas luzes clareando a noite escura. Não era à toa que Nova York era conhecida como a cidade que nunca dormia; sempre havia agitação por suas ruas e avenidas, buzinas ecoando pelo ambiente e luzes piscando feito faróis. Em um ambiente como aquele, sentado ao lado de Savannah no topo de um prédio qualquer enquanto comiam uma pizza gordurosa, Peter se sentia em paz. Eles haviam deixado as docas fazia bons minutos, e agora ali estavam eles, aconchegados um contra o outro naquela noite fria de outono. Apesar do vento que açoitava o rosto de Peter, ele não estava com a mínima vontade de se mexer e ir embora. Era bom poder roubar um tempo para si naqueles dias em que tudo se resumia à escola e à vigilância, pois, se a cidade nunca dormia, o Homem-Aranha também não. Ele havia passado as últimas tardes e noites prendendo bandidos e investigando a rede de crimes de Montgomery, e agora era bom relaxar ao lado da garota por quem estava apaixonado.

O pensamento fez o coração de Peter acelerar. Caramba, ele estava apaixonado por Savannah Evans, que também era a Major, e os dois sabiam das identidades secretas um do outro e agora estavam comendo pizza juntos enquanto descansavam após lutar contra o crime da cidade. Se alguém contasse isso para Peter três meses atrás, ele não teria acreditado; era incrível o quanto sua vida poderia mudar em tão pouco tempo, e, honestamente, ele não poderia querer nada diferente. Era bom ter alguém que o entendia, que entendia o que ele fazia e porque o fazia, e era ainda melhor que esse alguém fosse Savannah. Não, ele não trocaria aquilo por nada.

Peter só percebeu que encarava Savannah após ela voltar-se para ele com um vinco entre as sobrancelhas. Como se tivesse sido pego no flagra — o que era ridículo, porque ele gostava de olhar para ela e não tinha vergonha alguma daquilo —, o coração bateu mais forte no peito. Era aquele o efeito que a menina tinha sobre ele, em que somente um olhar poderia fazê-lo ficar tão derretido quanto o queijo de sua pizza. Boa analogia, gênio, ele pensou enquanto lançava uma olhadela para a fatia molenga em suas mãos.

— Você está irritado? — Ela questionou, interpretando sua expressão como nervosismo pelo que ela revelara.

Peter sabia que ela não precisava da aprovação de ninguém, muito menos a dele, para fazer as coisas que queria, mas sabia também que ela ligava para sua opinião. Aquilo o fazia se sentir importante, pois, em meio a tantas pessoas, era ele quem Savannah considerava. Ainda assim, egos inflados à parte, ele tinha plena consciência que deveria, no mínimo, parecer descontente pela menina ter desobedecido ordens médicas, mas não conseguia nem sequer esboçar uma careta, não diante dela. Aquele não fora o acordo deles — ela deveria esperar melhorar de seus ferimentos antes de se lançar de volta ao perigo —, mas ela estava melhor, no final das contas, e ele podia realmente culpá-la? Ele bem entendia como podia ser torturante ficar na inércia, incapaz de ajudar enquanto a cidade corria perigo. Peter não tinha o menor direito de ficar bravo, visto que seria a maior de suas hipocrisias. Ele já não havia feito o mesmo que ela?

Além disso, verdade fosse dita, Peter já estava suspeitando que Savannah havia saído em vigília desde que ela pedira para que a encontrasse nas docas mais cedo naquele dia. Por qual outro motivo ela estaria ali, afinal? O Homem-Aranha nem ao menos ficou surpreso. Conhecendo a garota, ele sabia que não demoraria para aquilo acontecer. Embora Savannah estivesse aproveitando seu tempo de recuperação para investigar, era claro que sentia falta da adrenalina das patrulhas e que não demoraria para se esgueirar para fora de casa novamente. Pelo menos, ela era sincera quanto àquilo.

— Claro que não — foi a sua resposta, e ele viu algo como um pequeno sorriso se insinuar nos lábios dela. — Valeu a pena, pelo menos?

Quando, tão breve quanto havia surgido, o sorriso desapareceu, Peter soube que havia algo de errado. O rosto de Savannah endureceu, e ela desviou o olhar por alguns instantes, os dedos apertando tanto a borda de sua fatia de pizza que ela esfarelou. A comida caiu no telhado e a menina xingou, sacudindo os dedos para se livrar de um cordão de queijo que pendia deles.

— Isso é um não? — Peter arqueou as sobrancelhas.

— Não. Quer dizer, não é isso, é só... — A menina suspirou, então começou a narrar a vigília da noite anterior. Ela contou sobre estar em casa e ver o e-mail mandado de Josie, a mãe de Theo, para Kyle, a respeito do descarregamento de armas nas docas. Contou sobre ir para o local com Lia, sobre descobrir a armadilha para seu irmão. E, por fim, contou sobre Lia ser atacada, e sobre como ela atacara de volta o homem que havia tentado machucar sua melhor amiga. Sobre como nada mais havia importado além de sua vontade irracional de acabar com aquele criminoso. De fazê-lo pagar pelo que havia feito com Amelia.

Ao final do relato, sua face estava contorcida em uma mistura de culpa e irritação, e ela apertava as mãos com tanta força que suas juntas machucadas estavam esbranquiçadas. Peter, por sua vez, escutou tudo em silêncio, observando-a com atenção. Ele entendeu cada um de seus maneirismos, entendeu o quão envergonhada ela se sentia diante de toda a situação. Algo se contorceu dentro do peito dele: raiva por ela ter sido colocada naquela posição, raiva do homem que havia atacado Lia, raiva dos criminosos que atormentavam a cidade e seus habitantes inocentes. Porém, em vez de externar aquilo, Peter somente deixou de lado sua fatia de pizza e tomou as mãos de Savannah. Ele acariciou suas juntas arroxeadas com delicadeza para não machucá-la; havia restos de maquiagem já gasta em sua pele, não mais escondendo o hematoma.

— Está tudo bem agora — ele disse, então levou as mãos de Savannah aos lábios e plantou um beijo suave em suas juntas. — Não foi sua culpa.

A garota mordeu a própria bochecha com um olhar distante, mal parecendo escutá-lo.

— Acho que foi, sim. Se eu não tivesse saído...

— Se você tivesse ficado em casa, jamais teria descoberto sobre a armadilha. Jamais teria salvado Kyle dela. Isso foi importante também. Se foque nisso, tudo bem?

Savannah voltou-se para ele, uma expressão angustiada no rosto antes de, por fim, assentir. Ela não parecia muito confiante, porém, e Peter sabia que ela ainda se martirizaria pelos erros que havia cometido no dia anterior, apesar de ter tido seu lado bom também. A armadilha fora frustrada, Lia fora salva e o bandido que a atacara pensaria duas vezes antes de ferir alguém de novo. Contudo, o rapaz sabia como podia ser difícil deixar seus próprios tormentos de lado; ele mesmo sofria com as memórias das consequências de suas decisões, algumas mais inconsequentes do que outras. Aquela era a cruz que os vigilantes haviam aceitado carregar quando começaram sua jornada, e não havia como fugir dela. Ainda assim, ele desejava poder ajudar Savannah de alguma forma, porque realmente não acreditava que ela havia errado. Talvez tivesse sido melhor para sua saúde ter ficado em casa, sim, mas ela havia descoberto coisas importantes também. Ela simplesmente havia feito o que qualquer um faria no lugar dela.

— Então... encontrou algo de interessante nas docas? — Peter sabia que o melhor no momento seria distraí-la de seus pensamentos, portanto, faria com que ela focasse em outra coisa. — Se for para burlar ordens médicas, espero que tenha sido por algo bom.

Savannah fez um bico diante das palavras dele, mas seu olhar era suave, pois ela sabia o que ele estava fazendo e era grata por isso.

— Até que sim... — Ela disse, e já havia um certo brilho em seus olhos quando ela começou a contar sobre seu encontro com a Gata Negra: Savannah narrou sua volta às docas em busca de pistas sobre a noite anterior, e então o encontro com a infame ladra. Ela falou sobre a espécie de jogo de mentiras que elas haviam jogado, uma provocando a outra com alfinetadas em troca de informações. A Gata Negra acabou confirmando muito do que ele e Savannah já suspeitavam, mas não falara nada de novo, para a infelicidade da Major. — Na verdade, ela estava prestes a me dar mais informações quando alguém apareceu e a espantou.

Ela deu um cutucão na costela de Peter, olhando-o em uma falsa acusação. O rapaz, por sua vez, emitiu um ruído ultrajado do fundo da garganta.

— A culpa agora é minha? Você quem me pediu para ir para as docas! — Ele gesticulou freneticamente. — E eu ainda trouxe pizza! — Seu ultraje fez com que Savannah risse alto, e foi como música para seus ouvidos. Ouvi-la dar risada, especialmente depois de estar tão consternada com o que havia acontecido na noite anterior, era como uma vitória pessoal para ele, e seu peito inflou-se com carinho. E, embora a última coisa que ele quisesse fazer com ela no momento fosse falar sobre o caso em que trabalhavam, Peter forçou-se a reagir. — E você acha que podemos confiar nela?

— Não sei... ela me pareceu desesperada o bastante — Savannah deu de ombros. — Ela realmente devia estar disposta a dar informações para se livrar de Montgomery.

— Então, ele a está controlando de alguma forma — Peter colocou a mão engordurada no queixo em uma pose contemplativa. — Quem diria, você estava certa.

— Claro que eu estava. Deveria me sentir ofendida por você não ter pensado mais cedo nisso?

O Homem-Aranha sorriu diante da piada, grato pelo quão mais leve ela parecia agora que havia tirado a mente do que a preocupava. Ele esperava que aquilo ajudasse Savannah, genuinamente. Ele odiava pensar na garota se culpando por coisas além de seu controle, quando tudo que ela tentava fazer era ajudar as pessoas. Agora que eles trabalhavam juntos, ele faria de tudo para que ela enxergasse aquilo. Para que ela enxergasse o quão incrível era. Sendo assim, ele disse com a maior sinceridade que conseguia reunir:

— Eu jamais duvidei de você.

[10/09/2024]

oi, pessoal! tudo bem?

quem é vivo sempre aparece, né? k

primeiro, sinto muitíssimo pela demora. sei que falo isso todo capítulo, mas não deixa de ser verdade!!! acontece que estou em um trabalho novo e em ano de tcc, então meu tempo já escasso ficou ainda menor aaaaaaa mas estou dando o meu melhor, e pelo menos veio aí atualização!

aliás, vocês viram a capa maravilhosa que a dressadsgwttp fez???? tô simplesmente APAIXONADAAAAA, ela arrasou demais!!! muito obrigada, dressa

enfim, espero que o próximo cap venha logo! até o final do ano eu atualizo (queria que fosse em tom de piada mas eu não duvido nada.

beijocas e até!

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