49. down at the docks

— VOCÊ ACHA QUE eu sou uma irmã muito ruim?

Peter mal havia atendido a ligação quando Savannah falou, as palavras se atropelando devido à sua dicção duvidosa naquele momento de ansiedade. Apenas por um milagre o amigo entenderia o que ela havia dito, e ela até podia imaginar a expressão dele do outro lado da linha, com direito ao cenho franzido enquanto tentava decifrar o que havia ouvido.

Esse é um jeito estranho de começar uma conversa — ele observou por fim, sem nem titubear. Porque, claro, ele a havia entendido. Ele sempre entendia, de alguma forma. — Você está mexendo no computador do Kyle de novo?

Sim, ela estava. Sentada à mesa no canto do quarto do irmão, Savannah se debruçava sobre o laptop dele. Ela balançava as pernas contra o chão e mordia a cutícula distraidamente, os olhos voltados para a tela diante de si e a atenção no telefone que segurava contra a orelha. Parcialmente, pelo menos, pois parte de seu foco se encontrava na porta aberta a apenas alguns metros de onde ela estava; depois do fiasco de quatro dias atrás, quando a menina quase fora pega no flagra por Kyle e Josie, ela havia tentado ficar longe do computador e de suas informações sigilosas. Porém, hoje ela estava em casa, e estava tão entediada que havia cedido aos seus desejos de xeretagem, embora estivesse atenta a qualquer chegada inesperada.

Apesar de estar tudo tranquilo até então, Savannah sentia-se inquieta. Nervosa. Não era apenas medo de ser apanhada no flagra — alojado em seu peito, surpreendentemente, havia uma culpa que nunca esteve lá antes. Ela jamais se sentira mal de verdade por invadir os assuntos policiais do irmão, pois era tudo por uma causa maior, não? Mas, agora, sentia um certo mal estar por fazê-lo. Que tipo de pessoa ela era, abusando da confiança de Kyle daquela forma? Seu coração ficava apertado ao imaginar a reação do irmão caso ele descobrisse sobre sua façanha, em especial quando ela discutia tanto com ele sobre sua própria privacidade. Hipócrita, ela sussurrava para si mesma, não conseguindo evitar achar que era a pior irmã do mundo.

Assim, ela havia aproveitado para ligar para Peter. Não só por que a voz dele a acalmaria e faria com que ela se sentisse melhor instantaneamente, como era de praxe, mas porque ela precisava de uma bússola moral. Peter era a pessoa mais correta e justa que ela conhecia, e ele certamente lhe diria se pensava que ela estava tão errada quanto se achava nos últimos tempos. Aquilo valeria de alguma coisa, visto que Savannah se importava com o que o rapaz pensava, valorizava a opinião dele mais do que de qualquer outra pessoa.

— Você me conhece tão bem — foi o que ela respondeu, uma nota de sarcasmo na voz.

Peter soltou uma risada baixa, cujo som pareceu reverberar pelo peito de Savannah. Ela comprimiu os lábios em um sorriso, seus dilemas esquecidos por um breve momento.

Respondendo à sua pergunta, não, não acho. — Ele disse. Apesar da certeza em sua voz, Savannah ainda não se sentia totalmente convencida de sua inocência. — Não é como se estivesse fazendo isso por maldade, não é? Você só quer descobrir mais sobre o caso.

A menina soltou um suspiro e deixou com que o corpo caísse contra o estofado gasto da cadeira. Esta girou para trás, suas rodinhas rangendo conforme se moviam contra o carpete velho, e Savannah ficou alguns segundos inerte, ocupada apenas em observar o mundo rodopiar diante de seus olhos. Em seguida, ela murmurou distraidamente:

— Talvez a sua bússola moral esteja pior do que a minha.

Acho difícil — a provocação de Peter a puxou de volta à realidade, e então a fez bufar uma risada. — Mas, se você está se sentindo mal por invadir o computador, por que não para?

Era uma pergunta válida. Afinal, não era como se alguém estivesse obrigando Savannah a fazer aquilo; talvez, se houvesse alguém por trás daquilo, puxando os cordões de suas ações, seria mais fácil justificá-las. Mas a verdade era que ela estava ali, no computador do irmão, invadindo sua privacidade e traindo sua confiança, porque queria, e era por isso que se sentia tão mal. Ao enfim perceber aquilo e a gravidade do que fazia, como aquilo poderia afetar Kyle, uma culpa esmagadora havia passado a pressionar o seu peito. E pior ainda era o fato de ela não querer parar. Sempre que invadia a base de dados da polícia, deparava-se com coisas pertinentes ao caso — fossem provas que haviam deixado passar, relatórios ou fichas de criminosos, sempre havia algo pelo que valia a pena procurar, e era por isso que ela precisava fazer aquilo. Por pior que estivesse se sentindo no momento.

Savannah provavelmente resmungou para o telefone algo sobre a importância do que fazia, pois Peter continuou:

Viu só? Você sabe que está fazendo isso por um bom motivo, então, não se preocupe. Tenho certeza de que Kyle faria o mesmo no seu lugar.

A Major torceu o nariz para afirmação, pois ela tinha quase certeza de que aquilo não era verdade. Kyle era tão... certinho. Ele acreditava nas regras e no código de conduta e os seguia à risca, certo de que todos o fariam também. Savannah, por outro lado, acreditava que as tais regras podiam ser flexíveis — e quebradas, até, por uma boa causa. E era aquilo que vivia fazendo, não? Óbvio que havia limites que ela não ousava cruzar, mas, pelo bem comum, a menina dobrava o código ao seu favor. Ainda assim, ainda era estranho pensar que, ao invadir o computador do irmão, estava fazendo algo ilegal. Entretanto, para quem já era procurada pela polícia, o que seria um crime a mais? Entre invasão domiciliar, agressão e desacato à autoridade, roubo de dados era o menor de seus problemas.

— É pelo bem maior. — Ela ecoou seus pensamentos, mais para si mesma do que para Peter. Então, ela voltou a atenção para a ligação. — Não sou uma pessoa tão terrível assim, sou?

Você jamais poderia ser terrível. Terrivelmente assustadora, terrivelmente linda, mas não uma pessoa terrível.

Uma risada escapou dos lábios de Savannah, incapaz de contê-la enquanto sentia as bochechas esquentarem. Todas as suas preocupações se foram naquele momento com aquelas simples palavras, esquecidas à medida que borboletas batiam as asas no estômago da menina. Ela adorava quando Peter flertava com ela. Geralmente ele era tímido, mais atrapalhado e engraçado do que um mestre da sedução, mas ela gostava dessa sutileza dele — ainda assim, não conseguia evitar sentir-se boba todas as vezes em que ele lhe lançava alguma cantada, por pior que fosse. Não que ela fosse admitir aquilo em voz alta, pois seu orgulho não lhe permitia.

Savannah pigarreou, tentando recuperar a compostura, mas havia um sorriso gigante em seu rosto, e ela tinha certeza de que Peter conseguia ouvi-lo em sua voz quando tornou a falar.

— Bem, obrigada — ela falou, soando enamorada demais para que fosse um simples agradecimento. Peter pareceu reparar naquilo, e ela o escutou rir de leve. O som foi como música para seus ouvidos, tanto que Savannah precisou reprimir outro sorriso antes de continuar. — Na verdade, acabei descobrindo umas coisas interessantes hoje. Quer vir aqui em casa para discutirmos isso?

E talvez fazer outras coisas, seu cérebro adicionou, e ela tentou calá-lo.

Não posso — Peter pareceu genuinamente frustrado ao responder. — Tenho uma reunião do decatlo hoje e depois preciso verificar aquela possível venda que ouvi os traficantes falando ontem, lembra?

Savannah emitiu um ruído de concordância, pensativa enquanto recordava-se da noite anterior: o rapaz lhe contara sobre a conversa que havia ouvido de alguns bandidos durante sua vigília do dia, na qual eles falaram sobre uma grande venda de drogas. O Homem-Aranha havia plantado um rastreador nos criminosos, para então encontrá-los no dia seguinte e frustrar sua operação, além de, quem sabe, descobrir algo pertinente para o caso. A Major precisou morder a própria língua para impedir-se de dizer que iria com ele — porque não, ela não podia. Era verdade que, mais cedo naquela tarde, logo após sair da escola, Savannah havia passado na Torre dos Vingadores para ter uma consulta com Helen Cho. Nela, a médica havia finalmente tirado os pontos de suas pernas, e agora Savannah era capaz de andar sem sentir a pele repuxar em um lembrete constante de que estava ferida. Mesmo assim, como tanto a doutora quanto Tony haviam reforçado, ela não deveria fazer muito esforço por enquanto, e ainda havia os pontos nas costelas com os quais se preocupar.

Então não, ela não poderia sair em vigília, a não ser que quisesse colocar em risco sua recuperação e despertar a fúria de pelo menos cinco pessoas diferentes. E, embora Savannah não fosse o tipo de pessoa que seguia ordens, seria mais cômodo não ter que escutar sermões constantes em seus ouvidos.

Mas estou livre amanhã, caso você queira sair — Peter completou, então pigarreou. — Para falar do caso, quer dizer.

Um sorriso enorme abriu-se no rosto de Savannah.

— Eu adoraria sair — ela fez uma pausa, para adicionar em seguida: — Para investigar, claro.

Peter soltou uma risada.

Combinado então. — Era possível ouvir um burburinho de seu lado da linha, provavelmente o time de decatlo acadêmico se preparando para o início da reunião. — Tenho que ir agora. Nos vemos depois?

— Com certeza.

Eles se despediram, então encerraram a ligação. Por alguns segundos, Savannah apenas olhou para a tela agora apagada de seu celular, um sorriso bobo crescendo em seus lábios. Conversar com Peter, de fato, havia feito com que ela se sentisse melhor; ainda havia um certo incômodo em seu âmago, mas agora seus dilemas estavam enterrados no fundo da mente, uma mera lembrança quando comparados ao restante de seus pensamentos — todos voltados para o rapaz e em como ela estava animada para sair com ele. Peter Parker tinha aquele efeito nela: ele era capaz de acalmá-la e distraí-la quando tudo parecia estar errado, talvez porque ele era uma das únicas coisas que eram certas ultimamente na vida dela.

A menina balançou a cabeça, tentando afastar os pensamentos antes que entrasse mais profundamente neles e na natureza de seus sentimentos, coisa que ela não estava nem um pouco pronta para encarar. Sendo assim, Savannah deixou de lado o celular e voltou a atenção para o computador. Antes de ligar para Peter e se distrair, a menina estivera terminando de ver os registros existentes dos casos de roubos, assaltos e ataques que aconteceram em Nova York desde que as armas do Abutre haviam voltado a circular. De um lado da mesa, ela possuía uma caderneta em que escrevia tudo que achava pertinente à investigação; do outro, havia um mapa da cidade, no qual ela fazia anotações ocasionais de onde cada crime ocorrera na tentativa de traçar um padrão entre eles. Entretanto, aquilo estava se provando uma perda de tempo, uma vez que cada acontecimento parecia aleatório e ao bel-prazer dos criminosos, sem correlação alguma.

Sabendo que aquilo não daria em nada, Savannah fechou o caderno com um suspiro, largando-o em cima do mapa e de suas canetas antes de voltar-se novamente para a tela do laptop. Sem um objetivo exato em mente, a adolescente somente vagou pelo sistema à procura de algo interessante o bastante para despertar sua curiosidade. Após alguns minutos de busca infrutífera, ela estava prestes a desistir quando algo, de fato, chamou sua atenção: uma pasta que remetia à investigação conjunta da polícia com os federais. O grande caso do roubo das armas, o caso designado a Kyle quase três meses atrás.

Savannah empertigou o corpo, de repente mais desperta do que nunca. Ela nunca tinha visto aquela pasta como um todo, apenas documentos desconexos sobre armas e fichas de criminosos — mas aquilo, uma ponte direta para arquivos compartilhados pelo próprio FBI... Aquilo sim era algo que valia a pena olhar. Sem nem hesitar, Savannah abriu a pasta, deparando-se com uma série de subpastas e outras diversas informações. Estava tudo meticulosamente organizado, e a menina analisou cada dado cuidadosamente, sempre atenta a qualquer barulho que pudesse denunciar a chegada do irmão em casa.

Algumas das coisas lá ela já tinha visto, tais quais a lista de armas roubadas, os crimes cometidos com elas e os compradores conhecidos. Porém, algo novo chamou sua atenção: havia um relatório sobre o dia em que os aparelhos do Abutre foram roubados. Curiosa, Savannah começou a ler, descobrindo que, na madrugada do dia dezesseis de setembro de 2017, um armazém federal nas redondezas de Newark, Nova Jersey, foi invadido. Era lá que as armas construídas por Adrian Toomes e seus comparsas estavam, muitas das quais eram feitas com tecnologia alienígena proveniente da Batalha de Nova York, em 2012. Alguns dos aparatos haviam sido apreendidos da oficina do Abutre; outros, aqueles que foram vendidos previamente à captura dos vilões, haviam sido rastreados até os novos donos, que também acabaram presos.

Simplesmente todas as armas presentes no armazém foram levadas. Desde uma manopla mecânica cujo intuito era dar choques, a qual Savannah sabia ter sido utilizada por Herman Schultz contra Peter no dia do baile de boas-vindas, até um aparelho de anti-gravidade — aquele contra o qual a Major e o Homem-Aranha lutaram na noite do assalto à loja de eletrônicos —, além de muitos outros objetos estranhos e peculiares. Para isso, houve uma invasão completa ao armazém, pelo menos uma dúzia de homens armados contra um grupo de seguranças desprevenidos. Muitos deles foram feridos e alguns, até mesmo mortos.

Acreditava-se que aquilo havia sido um trabalho interno, pois os criminosos sabiam o melhor horário e área para atacar. Além disso, havia tido uma falha na segurança do local mais cedo naquele dia, de modo que as cercas eletrificadas e as câmeras estivessem desligadas. Era algo específico demais para ser apenas coincidência, e agora os federais suspeitavam de um agente chamado Edward James, que havia começado a trabalhar na base três semanas antes do ataque e desaparecera logo após, sem estar entre os feridos ou mortos.

— Hm, interessante — Savannah pensou alto.

Ela procurou pelo homem no sistema, descobrindo que, embora houvesse um mandado de busca em seu nome, ele continuava foragido. Pensativa, a menina mandou imprimir a ficha de Edward James, mas mal o havia feito quando uma notificação surgiu no canto da tela do computador. Franzindo o cenho, Savannah inclinou-se para ler, descobrindo que era um e-mail de Josie para Kyle: a mensagem falava que, segundo um informante confidencial, um descarregamento de armas para seu armazenamento aconteceria em breve nas docas, às sete da noite. Havia também um endereço e fotos para a identificação do local.

Savannah comprimiu os lábios, sentindo o sangue vibrar. Aquela era uma grande, grande pista, e ocorreria em uma hora. A garota sabia que Kyle estaria ocupado naquela noite, então não era como se ele fosse realmente conferir do que aquilo se tratava — o que significava que a heroína poderia...

Não, Savannah cortou o fluxo de pensamentos. Ela não podia ir investigar. Da última vez em que saíra quando deveria ter ficado em casa descansando, havia chamado atenção demais, sido atacada por um cachorro chamado Thor e seu dono, além de ter aberto os pontos nas costelas antes de o Homem-Aranha aparecer para ajudá-la... Contudo, olhando pelo lado positivo, ela tinha descoberto pistas importantes, não tinha? E também tinha feito as pazes com Peter naquele mesmo dia, então não diria que havia sido um esforço em vão...

Mas aquilo não importava! Não importava que o Homem-Aranha estivesse ocupado, que Kyle não apareceria e que ela estava imensamente tentada a vestir o uniforme e sair para as docas. Ela havia prometido para algumas pessoas que não sairia em vigília até estar totalmente recuperada, e, portanto, deveria ficar em casa. Se bem que, naquela tarde, ela havia tirado os pontos da perna, o que certamente contava como recuperação, não? Embora o ferimento das costelas ainda doesse, não era como se ela fosse lutar de fato. Ela só iria dar uma olhadinha, permanecer na surdina para saber o que estavam tramando. Então, contaria para Peter o que havia descoberto e deixaria que ele lidasse com aquilo mais tarde.

Seria prudente? Provavelmente não. Mas já estava decidido.

A Major foi colocar o uniforme.

Em menos de dez minutos, a garota estava descendo a escada. Com o uniforme militar escuro e o bastão de alumínio preso às costas, ela sentia-se eletrizada. Depois de duas semanas praticamente parada, ela havia sentido falta de sair em vigília. Por mais que tivesse descoberto coisas importantes para o caso durante seu tempo de repouso, por mais que soubesse que deveria tirar tempo para se curar, nada se comparava à adrenalina de se esgueirar e lutar. Com um sorriso no rosto, Savannah estava prestes a abaixar a máscara de esqui quando ouviu o barulho de um molho de chaves ecoar pela casa — seu sorriso se transformou em uma careta de pânico, e ela teve tempo apenas de pular atrás do sofá antes que a porta fosse aberta.

Por um momento, houve silêncio. E então:

— Savannah, eu consigo ver o seu bastão despontando atrás do sofá — a voz de Amelia a alcançou em seu esconderijo. Aliviada apenas em parte, Savannah ergueu-se lentamente de onde estava para encontrar a amiga a poucos metros de si, os braços cruzados e uma expressão descontente na face. — O que você está fazendo?

— O que você está fazendo?

— Eu perguntei primeiro.

— A casa é minha.

Lia bufou, finalmente se movendo para fechar a porta atrás de si. Sem olhar para Savannah, ela cedeu:

— Certo. Vim aqui escapar da minha mãe. E você?

Savannah anuiu; ela havia imaginado que fosse algo do tipo. Após seu pequeno desaparecimento ao tomar o tiro, a Major havia presenteado a amiga com uma chave reserva de sua própria casa para ser usada em emergências, somente para o caso de Savannah se acidentar gravemente e precisar de ajuda. A menina não sabia se escapar de Maia Bennett se categorizava como uma emergência exatamente, mas não se oporia se Amelia quisesse usar sua casa como refúgio temporário. Mesmo que aquilo significasse flagrar Savannah se esgueirando para caçar problemas quando deveria estar fazendo tudo, menos isso. Sabendo que a amiga estava esperando por uma resposta, Savannah arriscou, mesmo que fosse óbvio o que ela fazia:

— Tenho três explicações. Escolha uma.

— A verdadeira.

— Essa não está entre as opções.

Amelia grunhiu, tão irritada que parecia capaz de pegar o objeto mais próximo para jogar na amiga. Savannah entendia, ou pelo menos tentava. Quando Lia descobriu sobre o tiro, ficou tão abalada que acabou chorando, preocupada com o bem-estar da vigilante; depois disso, as duas tiveram uma longa conversa a respeito do acontecimento, na qual Lia fez a Major prometer se cuidar mais e não se arriscar desnecessariamente... Mas aquilo não era um risco desnecessário, era? Ela só queria investigar e não, lutar. Neste caso, Savannah não estava descumprindo a promessa, estava? Ela apenas não aguentava mais a monotonia e desejava fazer algo a respeito. 

— Eu não posso acreditar! — Amelia esbravejou. — O que você tem na cabeça para sair em vigília?! Você está machucada!

— Na verdade, eu tirei os pontos da perna hoje...

— Ah, que ótimo. Menos um ferimento, agora só faltam um milhão!

Os cantos dos lábios de Savannah se elevaram com diversão.

— Não seja exagerada.

Pela expressão de ultraje de Amelia, ela não estava achando tanta graça assim quanto Savannah. Ela agarrava a alça da bolsa em seu ombro com força aparente, o maxilar tensionado conforme olhava em um misto de descrença e irritação para a outra.

Exagerada? Savannah, você quase morreu — ela disse, a voz grave. — E agora está agindo como se nada tivesse acontecido! Eu não quero crer que você tem tanto desprezo pelo seu próprio bem-estar a ponto de se arriscar novamente, quando mal se curou dos ferimentos antigos!

— Eu não vou me arriscar — Savannah tentou explicar. — Eu só quero investigar uma pista...

Mas Amelia não desejava escutá-la.

— Sempre começa assim, não é? Apenas uma investigação, apenas uma briga, até que você está mancando e sangrando e morrendo...

— Lia, você não está me ouvindo. Não há ninguém mais para conferir isso além de mim, só eu posso...

— Não, é você quem não está ouvindo! — A garota gritou, exasperada. — Sabe como é para alguém que ama você vê-la não levar a própria vida a sério?!

A intensidade de suas palavras fez Savannah recuar um passo instintivamente, um tanto atônita com a ferocidade da amiga. Entretanto, o choque logo se transformou em raiva, e sua expressão endureceu. Ela sabia que Amelia estava brava, mas o que dizia não era justo; sim, Savannah, muitas vezes, priorizava os deveres da Major mais do que a si mesma: quando deixava de sair para se divertir, quando deixava de estudar, quando deixava de dormir. Mas ela havia tentado, de verdade. Havia tentado ficar na sua, sem sair para patrulhar ou investigar a fundo — e aquilo acabava com ela.

Em algum momento dos últimos meses, a vigília havia se tornado uma parte tão intrínseca de sua vida que era estranho passar tantos momentos sem realizá-la, e era aquilo que seus amigos pareciam não compreender. Savannah se importava, sim, com a própria vida. Claro que se importava! Ainda assim, havia pessoas que dependiam dela. A cidade dependia dela. Ela precisava se colocar mundo afora, desvendar os mistérios do submundo do crime e salvar Nova York. Não apenas porque queria, mas porque precisava. Se não ela, quem? Os Vingadores estavam fragmentados e o que restara cuidava somente de ameaças globais; o Homem-Aranha era um só e não podia estar em dois lugares ao mesmo tempo. Portanto, cabia à Major ajudar os outros quando ninguém mais o faria — e a revoltava que Amelia não enxergasse isso. A revoltava que a amiga achasse que ela apenas ignorava as preocupações e considerações dos outros apenas para jogar a própria saúde fora. 

— Você não sabe do que está falando. — A voz de Savannah soou dura.

— Mesmo? Porque é o que está parecendo. Você prometeu que iria parar com isso até melhorar...

— Lia, eu passei duas semanas sem fazer nada, e isso está acabando comigo! — Foi a vez de Savannah exclamar, nervosa. — Os perigos não param só porque eu parei. Eu preciso fazer algo a respeito disso. Acredite, eu sei os riscos, e sei os cuidados que vou tomar. Se não fosse importante, eu não estaria indo. E, acredite, eu vou.

Savannah e Amelia se encararam por alguns instantes, o ar entre elas quase eletrizado. Com um olhar afiado, a Major cruzou os braços sobre o peito, como se desafiasse a amiga a contrariá-la. Lia, por sua vez, parecia tentada a fazê-lo; a expressão em seu rosto dava a entender que ela estava disposta a colocar-se entre Savannah e a porta somente para impedi-la de sair, embora ambas soubessem que aquilo seria inútil. Amelia não era páreo para um confronto físico contra Savannah, mesmo que esta estivesse debilitada por seus machucados. Provavelmente sabendo disso, Lia deu-se por vencida.

— Você já tomou sua decisão, não é?

Savannah comprimiu os lábios.

— Sim.

Amelia suspirou. Em seguida, ela aprumou a postura e ajeitou a bolsa no ombro, dando meia volta em direção à porta de entrada.

— Eu vou junto. Sabe, para garantir que você volte viva.

Savannah bufou uma risada incrédula. Definitivamente, aquilo não estava em seus planos; ela não aceitaria levar a amiga consigo, não quando havia a possibilidade de perigo nas docas. Parecendo sentir a resistência dela, Lia espiou por cima do ombro, um olhar autoritário no rosto que dizia que, daquela vez, não se deixaria convencer do contrário.

— Sem chance.

— Quer dizer que você pode se arriscar, mas eu não?

— Exatamente.

Amelia revirou os olhos.

— Tá bom. Eu sei me cuidar, ok? 

Savannah não duvidava daquilo. Ela havia levado a amiga em vigílias o bastante para saber que ela conseguia passar despercebida, sem contar nos golpes que havia lhe ensinado e no spray de pimenta que sempre deixava ao seu dispor. Ainda assim, porém, aquele não era um risco que valia a pena correr. Savannah estava disposta a colocar-se em perigo, mas se recusava a fazer o mesmo com Lia. Dessa forma, ela somente cruzou os braços e balançou a cabeça.

— Não, Lia. Você não sabe o que pode estar nos esperando lá. Não vou permitir que você...

— Só cale a boca, Savannah — Amelia cortou, sem paciência. — Ou eu vou, ou você não vai. Isso não é negociável.

E, naquele momento, Savannah soube que, caso não concordasse com aqueles termos, a amiga daria algum jeito de amarrá-la em uma cadeira para fazê-la ficar em casa, ou pelo menos tentaria. Sabendo que prolongar aquela discussão apenas a faria perder o prazo de seu compromisso nas docas, a Major cedeu, ainda que não devesse. 

— Certo. Mas você fica no carro.

A noite já havia caído quando as duas chegaram às docas. Os faróis do carro se apagaram quando Amelia estacionou, bem como o vibrar reconfortante do motor cessou. Assim, eram apenas Savannah e Amelia no breu das ruas; o céu encontrava-se apagado, e os únicos resquícios de luz vinham dos postes das redondezas, cujas lâmpadas oscilavam hora ou outra. Isso, somado à quietude do ambiente, tornava as docas um cenário digno de filme de terror. Era quase fácil demais imaginar um monstro surgindo de trás de um dos prédios para aterrorizá-las.

Contudo, não era com monstros fictícios que Savannah estava preocupada no momento.

— Certo — ela começou, soltando o cinto de segurança e abaixando a máscara de esqui —, tome cuidado, ok?

— Acho que eu quem deveria dizer isso. — Amelia murmurou, mas aceitou o spray de pimenta que lhe foi entregue. Quando a Major fez menção de abrir a porta, a amiga colocou a mão em seu braço. — Só... não se arrisque demais.

— Eu? Me arriscar? — A garota colocou a mão no peito, fingindo surpresa. — Você não confia em mim?

A expressão cética que tomou conta do rosto de Lia fez com que Savannah risse. Então, antes que a amiga pudesse tentar persuadi-la a desistir, ela apanhou o bastão que havia deixado embaixo do banco e impulsionou-se para fora do carro, saindo para a escuridão fantasmagórica da rua. O carro estava estacionado a alguns metros da entrada principal das docas; àquela altura, os vendedores já haviam ido embora e não havia nenhum movimento no horizonte. No máximo, devia haver alguns trabalhadores de navios cargueiros rondando os píeres — e, claro, os criminosos que Savannah viera espiar.

A vigilante adentrou as docas com passos rápidos, misturando-se às sombras como se fosse parte delas. As luzes eram ainda mais escassas daquele lado, a única fonte de claridade sendo a lua que desaparecia ocasionalmente por trás de nuvens carregadas. Dessa forma, Savannah não teve problema em passar despercebida das poucas pessoas que restavam no lugar. Ninguém a perturbou e ela não perturbou ninguém, ocupada em seguir as orientações de seu GPS até chegar onde Josie dissera que aconteceria o descarregamento das armas.

Com os olhos e ouvidos atentos, Savannah andou mais alguns metros até chegar a um dos muitos armazéns das docas. Segundo as indicações da mãe de Theo, ali seria o ponto de armazenamento dos criminosos. Entretanto, não parecia haver ninguém por ali. Savannah não via nem escutava ninguém, e ela imaginava que um descarregamento fosse barulhento, não? A menos que o informante de Josie estivesse errado, era ali que os criminosos deveriam estar. Talvez somente não tivessem chegado ainda? Deviam ser alguns minutos além das sete, então ela supunha que atrasos não estavam fora dos limites.

Ela estava disposta a esperar para ver o que fariam com as armas. Precisava de um lugar de boa visão e escondido; havia uma escada na lateral da construção dos armazéns, e quem sabe Savannah não pudesse subir para o telhado e observar...

— Ora, ora — a voz, baixa e ácida, interrompeu seu fluxo de pensamentos. — Veja só tem temos aqui.

Antes que a menina pudesse reagir, algo duro e frio encostou na parte de trás de sua cabeça, o som de algo sendo engatilhado soando próximo demais de seus ouvidos. Aquilo fez com que Savannah prendesse a respiração por um instante: seu estômago pesou e o sangue de repente pareceu gelado com uma cautela maior do que a de costume. Sabia que, caso desse qualquer passo em falso, seus miolos seriam explodidos. Estranhamente, ela não estava assustada. Nervosa, claro, mas não com medo; na verdade, ela conseguia sentir o coração palpitando em antecipação da luta que se seguiria.

Aquilo era, no mínimo, estranho. Era de se esperar que, após levar um tiro, ela estivesse mais zelosa, mas tudo que ela sentia era vontade de brigar. Havia ficado tantos dias confinada em sua casa que sentia falta da adrenalina, e nem mesmo uma arma em sua cabeça poderia fazê-la recuar. Aquilo estava mais para... um incômodo. Era um obstáculo em seu caminho, um do qual ela acabaria conseguindo escapar eventualmente. Ela sempre o fazia, não?

Lia havia lhe dito para tomar cuidado, e lá estava ela, ansiando por um combate, a preocupação que deveria estar sentindo ofuscada pelo desejo da adrenalina e dos golpes. Ela quase riu. Quase.

Sem querer arriscar movimentos precipitados, porém, Savannah ergueu os braços em um sinal de rendição, não ousando fazer nada além daquilo. Ela afastou aquelas sensações e focou no nervosismo que deveria estar sentindo em maior quantidade: havia uma arma em sua cabeça, e ela não poderia cometer erros. A vigilante varreu os arredores com os olhos, buscando qualquer coisa que pudesse ajudá-la a sair daquela situação.

— Ande, pequena Major — o homem atrás de si demandou, empurrando o cano da arma contra o tipo de sua cabeça em uma indicação de que ela deveria se mover.

Savannah o fez, dando passos cuidadosos à medida que sua mente frenética pensava no que fazer. Ela se recordou das muitas aulas que tivera de autodefesa sobre como se esquivar de uma arma; ela sabia exatamente o que precisava fazer, na verdade, e precisava apenas de uma abertura para executar os golpes. Era isso pelo que ela procurava quando, de repente, como se o universo estivesse escutando seus pensamentos, seu telefone começou a tocar. O som inesperado irrompeu pela tensão e causou um sobressalto tanto nela quanto no bandido, mas aquilo foi tudo do que ela precisou. Em um movimento rápido, a Major abaixou-se e girou enquanto levava as mãos às de seu oponente e as empurrava para cima. Após chutar a virilha do homem, ela torceu seu pulso para poder virar a pistola contra ele, lançando-a contra sua barriga antes de puxá-la para si.

Agora que Savannah estava com a arma, não demorou para que tirasse sua munição e a jogasse longe. Em seguida, ela caminhou até o homem que a ameaçava apenas alguns segundos atrás, que ainda se recuperava do chute na virilha e do golpe no estômago. Antes que ele pudesse voltar a atenção a ela, a menina descreveu um chute em arco que atingiu seu rosto e o mandou para o chão; o ataque lançou uma fisgada de dor tanto pela sua perna recém-curada quanto por sua costela ainda muito machucada, coisa que Savannah fez questão de ignorar à medida que se aproximava do homem.

Ela abaixou-se e puxou seus braços para trás, torcendo um deles no sentido contrário da articulação. A dor, por si só, era um problema, mas o fato de que a qualquer momento ela poderia quebrar seu braço o manteria incapacitado pelo tempo que ela quisesse. E, fosse sensato ou não, Savannah estava muito tentada a realizar aquele golpe para fazê-lo se arrepender de apontar uma arma para sua cabeça. Em vez disso, porém, ela contentou-se em forçá-lo contra o chão, uma mão em seu pulso, a outra apertando sua nuca com a pistola. Suas pernas entrelaçaram-se nas dele, mantendo-o preso e incapaz de se levantar.

Embora seu celular ainda tocasse, Savannah mal conseguia escutá-lo por cima do pulsar do sangue em seus ouvidos. O ferimento nas costelas latejava, mas a adrenalina que preenchia suas veias ofuscava o incômodo.

— Não é tão durão agora, não é? — Ela ironizou, um sorriso zombeteiro formando-se por baixo da máscara.

Ah, como ela havia sentido falta daquilo.

O criminoso debateu-se em uma tentativa de livrar-se dela. Em resposta, a Major aumentou a pressão contra o braço dele. Era um aviso: um movimento, e ela poderia quebrá-lo.

— Onde estão as armas? — Ela inquiriu sem rodeios. Não queria passar mais tempo ali do que o necessário. — Estão dentro do armazém?

— Que armas?

— Não estou com paciência, e não vou perguntar de novo. Onde estão as armas?

Como se para demonstrar que falava sério, Savannah pressionou o cano da arma contra a nuca do homem. Mesmo que a pistola estivesse vazia, ele não sabia daquilo. E funcionou: a vigilante sentiu o criminoso retesar-se por inteiro, amedrontado.

— Você não faria isso — ele deixou escapar uma respiração trêmula.

Em resposta, Savannah engatilhou a arma. Aquilo bastou para que ele abrisse a boca.

— Eu não faço ideia do que você esteja falando — ele replicou. Não convencida o bastante, a menina forçou o braço dele mais para trás, forçando a articulação ao seu limite. — É sério! É sério! Eu não sei de nenhuma arma!

Não que ela confiasse nas palavras dele, mas o desespero em sua voz parecia legítimo.

— Não vai haver um descarregamento de armas aqui?

— Eu não sei! — ele respondeu, e choramingou quando Savannah aplicou mais pressão sobre seu pescoço. — Só mandaram a gente ficar de plantão perto dos armazéns e matar quem aparecesse, só isso!

Só isso, disse ele, como se aquilo por si só não fosse terrível. A revelação, porém, levou alguns segundos para atingir Savannah, e o que ela percebeu fez seu sangue gelar. Teoricamente, não era para ela estar ali. Fora Kyle quem havia recebido a mensagem que dizia para ir ao armazém. Se ela não estivesse ido para lá, seria Kyle a ser emboscado. Se Kyle não estivesse ocupado naquela noite, seria ele naquela situação, e ele não faria as coisas que Savannah estava fazendo para se defender, pois ele não acreditava em machucar os outros para se proteger. Ele teria caído diretamente na armadilha.

Ele poderia ter morrido.

O pensamento fez o estômago da menina afundar. Porém, em vez de concentrar-se no próprio pânico crescente, ela se focou no homem que mantinha preso abaixo de si.

— Quantos outros estão aqui?

Ela nem ao menos precisou ameaçá-lo para falar; as palavras derramaram-se da boca dele em uma cascata de informações.

— Só eu e mais cinco caras, mas eles estão dentro do armazém, eu juro!

Savannah lançou um olhar de esguelha para cima, em direção à fila de portas mais adiante. Os outros criminosos estavam ali em algum lugar, e ela sabia que seria prudente ir embora dali antes que eles fossem em busca de seu companheiro perdido com suas armas e más intenções. Afinal, havia prometido não se arriscar demais, e lutar sozinha contra cinco outras pessoas armadas não era a coisa mais sensata a se fazer para quem ainda estava ferida. Entretanto, ela não conseguia se mexer, a mente a mil: a Major pensava na armadilha, no irmão e no fato de que um descarregamento de armas jamais aconteceria naquela noite. O que significava que alguém havia enganado o informante de Josie, ou ele havia mentido deliberadamente. Ou então...

Não, Savannah recusava-se a pensar naquela possibilidade. Josie não teria feito aquilo... teria? Ela não conhecia bem a mulher, mas Kyle a conhecia, e ela não o mandaria direto para a sua cova, certo?

Antes que a garota pudesse afundar em uma espiral de dúvidas e inseguranças, seu celular voltou a tocar. Savannah bufou; ela havia esquecido de deixar o celular no silencioso, o que poderia ter lhe causado grandes problemas em qualquer outro momento. Dado onde e como estava, ela poderia — deveria, na verdade — ignorar, mas, por algum motivo, algo que lhe disse para atender a chamada. Contrariando todo o bom senso, ela afastou a arma da cabeça do homem a fim de puxar o celular do bolso, e soltou um longo suspiro ao notar que era Amelia. Provavelmente ligava para se certificar de que Savannah não estava fazendo nenhuma besteira. Assim, ela atendeu, impaciente.

— Eu estou um pouco ocupada no momento — Savannah disse à guisa de cumprimento.

Dá para se apressar? — Assim que a voz da amiga soou, baixa e apreensiva, Savannah soube que havia algo de errado.

— O que foi? — perguntou, alerta.

Amelia soltou uma respiração trêmula.

Nada, é que... tem um cara muito esquisito aqui perto.

— Esquisito como?

Sei lá, Savannah, esquisito! — Lia exclamou. — Ele estava encostado em um dos prédios fumando e não parava de encarar o carro.

O coração da Major acelerou. Embaixo dela, o homem se remexeu; ela não ligava nem um pouco se ele escutava a conversa e o que achava dela, pois, agora, seu foco inteiro estava em Amelia. Ainda assim, ela forçou a articulação dele outra vez em um aviso para que ele se aquietasse, e funcionou.

— Liga o carro e sai daí. Eu encontro você depois.

Lia não pareceu escutá-la, porém, ocupada demais com seus próprios pensamentos e medos.

Ai, meu Deus, ele sumiu. Para onde você acha que ele pode ter id...

Sua frase foi interrompida pelo barulho de algo sendo quebrado, seguido pelo grito agudo de Amelia. Ruídos ininteligíveis ecoaram pela linha, mas Savannah não tentou nem ao menos identificá-los. Sem pensar duas vezes, ela bateu com toda a sua força o cano da arma na têmpora do criminoso que matinha imobilizado, apagando-o na mesma hora. Logo que ele desmaiou, ela levantou-se aos tropeços e saiu correndo, disparando por entre as docas sem se preocupar em manter-se escondida ou quieta. Seus passos ecoavam pelo asfalto, o ferimento recém-fechado de suas pernas se repuxava a cada movimento e o coração martelava no peito com tanta força que chegava a doer, mas ela não deixou nada daquilo atrapalhá-la conforme corria de volta para Amelia. Nada mais importava agora além da segurança da amiga. Por favor, por favor, por favor, esteja bem...

Depois do que pareceu uma eternidade, a Major chegou aos limites da doca, onde havia deixado Amelia com o carro — e encontrou a melhor amiga sendo puxada para fora de seu próprio veículo pelos cabelos. Ela gritou de dor e debateu-se, conseguindo chutar para longe de si o homem que a agredia. Ele cambaleou, mas não demorou para se recuperar e sacar algo. Savannah, que não havia parado de correr nem ao se deparar com a cena, apertou o passo; ela alcançou Lia no exato momento em que o bandido investia com a faca, recebendo o golpe no lugar da amiga.

A lâmina, afiada até demais, rasgou seu uniforme e cortou a pele de seu braço, mas Savannah mal registrou a dor. Raiva pulsava em seu interior, o sangue rugia em seus ouvidos e havia promessas de violência em seus olhos quando ela se voltou para o criminoso que tentara machucar Amelia. Ele havia recuado por um instante, surpreso por ter alguém novo na briga — e o choque se transformou em algo mais quando ele reconheceu a Major. Talvez fosse medo, talvez fosse irritação, mas, fosse como fosse, não houve tempo para ele agir. Antes que ele sequer pudesse dar um passo, Savannah arrancou a faca de suas mãos com um chute violento, e então jogou o punho contra o maxilar dele. Uma, duas, três vezes, até que sua cabeça fosse lançada para trás e o corpo a seguisse em direção ao chão.

Savannah lançou-se em cima dele, guiada pelo mais puro ódio. Como ele ousava encostar um único dedo nojento em Lia? Era fúria que movia a menina conforme ela dava soco atrás de soco, um seguido do outro, sem intervalos nem momentos para recuperar o fôlego. Sua respiração estava entrecortada e o coração, palpitando tanto que parecia ameaçar sair pela boca juntamente com os grunhidos irados que deixava escapar. Ela socou e socou e socou — e não parou nem mesmo quando sentiu os ossos do nariz do homem esmagarem-se sob suas juntas, nem quando ele gorgolejou devido ao sangue que invadia sua boca.

Savannah gritou, ainda golpeando o rosto do agressor misterioso, sua visão invadida por um vermelho que poderia ser tanto de sua fúria quanto do sangue que maculava seus punhos. Havia um zumbido ensurdecedor em seus ouvidos, e nada, nem ninguém, importava naquele momento; tudo que restava em sua mente era aquele homem e o fato de que ele tentara machucar Amelia, e ela o faria pagar por aquilo. O faria se arrepender de ter aparecido ali, se aproximado do carro, encostado na amiga...

Ela não saberia dizer quanto tempo ficou daquela forma, mas sabia que não teria parado se mãos não tivessem segurado seus ombros e a puxado para trás. Por um momento, ela se debateu na tentativa de se libertar, de voltar ao que fazia, descarregar toda a sua ira naquele homem, até reparar que era Amelia quem a segurava.

— Já chega — ela disse suavemente, ainda puxando Savannah para trás. — Acabou, Savy, acabou.

Savannah parou de se contorcer e permitiu-se ser afastada por Amelia. Com o coração acelarado e a respiração ofegante, ela lançou um olhar ao homem que jazia no chão: ele, com o rosto completamente estourado, não tentou se levantar. Estava apagado, e a inércia de seu corpo, somado ao vermelho que respingava no asfalto em seu entorno, podiam passar a impressão errada a qualquer um que passasse e avistasse a cena. Havia uma leve oscilação em seu peito, mas, para qualquer um que visse seu estado, ele poderia muito bem ser nada além de um saco de ossos.

Savannah havia feito aquilo.

Ela conseguia sentir as luvas molhadas, sujas com o sangue daquele estranho. O homem que havia atacado Lia, e que ela atacara em resposta. Ela o observou por alguns instantes, esperando sentir o remorso inundá-la com a força de um tsunami, mas não foi o que aconteceu. Savannah sentia-se anestesiada, uma parte de si não conseguindo acreditar no que havia realmente feito. No quanto havia agredido aquele cara. Suas mãos tremiam, e, de repente, toda a adrenalina sumiu de seu corpo. De repente, ela conseguia sentir a dor em suas juntas que usara para quebrar o nariz do bandido, nas pernas que havia forçado demais ao correr, no corte novo em seu braço.

A muito custo, Savannah retirou os olhos do homem no chão e se virou para a melhor amiga. Lia estava desgrenhada, mas não parecia machucada. Seu peito subia e descia com força e seu rosto estava marcado por lágrimas e por assombro, os olhos arregalados e a boca escancarada. Savannah levou alguns segundos para notar que tal expressão não era dirigida à situação em si, mas a ela. Como se Lia também não pudesse acreditar no que ela havia feito. Como se não reconhecesse a pessoa diante de si.

Foi aquilo que mais doeu. Savannah esqueceu-se da dor no peito diante do que havia feito. Esqueceu-se da dor nas juntas e do novo ferimento de faca. As feições assustadas de Amelia eram a pior parte de tudo aquilo.

Savannah ergueu as mãos para tocar na amiga, para se desculpar, mas interrompeu-se ao notar como suas luvas estavam imundas. Ela abaixou os braços e engoliu em seco, contentando-se em aproximar-se um pouco mais, bloqueando a visão da amiga da cena sangrenta que deixara atrás de si. Amelia, pelo menos, não se afastou.

— Você está bem? Ele a machucou?

Lia engoliu em seco, mas balançou a cabeça em negativa, para o alívio de Savannah. Lágrimas continuavam a escorrer por suas bochechas, porém, em uma indicação do quão abalada estava de verdade.

— Ele queria o carro. Quebrou a janela dele e me mandou dar as chaves. Fingi pegar as chaves quando, na verdade, peguei o spray de pimenta que você me deu, e então joguei nele — ela murmurou, a voz quase inaudível. — Ele ficou irritado e me puxou para fora do carro, e daí você chegou.

Savannah anuiu, ou pelo menos achou que estava anuindo. Levaram alguns segundos para que ela percebesse que, na verdade, estava tremendo por inteiro. Se de choque ou raiva, ela não saberia dizer. Só sabia que, do nada, sua visão se embaçou, e ela piscou furiosamente na tentativa que controlar as lágrimas. Não, ela não iria chorar, por mais que uma culpa esmagadora estivesse pressionando o seu peito no momento. Lia fora atacada, e era ela quem estava prestes a chorar? Savannah era patética. Com o ódio de si mesma queimando seu peito, ela engoliu a angústia que se acumulava em sua garganta.

— Eu sinto muito — ela sussurrou, e sua voz falhou por um instante.

Ela não sabia pelo quê, exatamente, estava se desculpando. Muitas coisas, na verdade. Ela sentia muito por tê-la arrastado para lá, por tê-la feito esperar no carro e ficar suscetível a ataques. Ela sentia muito pelo ataque. Ela sentia muito pelo que Lia havia acabado de presenciar. Sentia muito pelo que havia feito.

Savannah não podia evitar sentir que estava sempre estragando as coisas. Cada decisão que tomava afetava as pessoas que com quem ela se importava de uma maneira diferente. Estava mentindo para Kyle, havia colocado Lia em perigo... E havia também seu pai. Savannah não conseguia evitar deixar de pensar nele em um momento como aquele, quando sua teimosia havia afetado a segurança de mais uma pessoa que ela amava. Parecia um padrão: mesmo quando ela tentava fazer a coisa certa, ela errava e errava e errava.

— Vamos embora. — Foi o que Amelia disse, sem olhá-la.

Ok, ela estava brava. E estava certa em ficar. Savannah a havia colocado em risco, e merecia o tratamento de gelo.

Entretanto, em vez de tentar se explicar, Savannah somente assentiu. Ela não tirava a razão de a amiga estar irritada. Ela merecia aquilo. Merecia aquela raiva. Ela, então, engoliu em seco e aproximou-se do carro. O pai estava na cabeça, mas ela tentou ignorar as lembranças que ameaçavam inundar sua mente à medida que batia no banco de motorista a fim de tirar o vidro dele. Ela pagaria pelo conserto da janela mais tarde, mas, no momento, o que importava era tirar Amelia de lá. Levá-la para casa e cuidar dela, que, sem sombra de dúvidas, ainda estava muito abalada.

A Major entrou no veículo, retirando as luvas ensanguentadas e largado-as em cima do colo para não sujar nada. Amelia tomou seu lugar no banco de passageiro, quieta e soturna, fungando de leve e limpando as lágrimas que marcavam seu rosto. O peito de Savannah se comprimiu, e ela queria mais do que tudo pegar a mão da amiga e pedir mil outras desculpas pelo que havia acontecido. Mas ela não fez isso. Em vez disso, ela somente deu partida no carro; o corte na lateral de seu braço ardeu quando ela pegou no volante em um lembrete de que estava ali.

Savannah começou a dirigir, ansiosa para deixar as docas para trás. Ela tentou não pensar no pai, com quem havia falhado, e em como quase falhara com Amelia hoje. Mas uma coisa era certa: Savannah jamais se esqueceria do perigo em que havia colocado a amiga naquela noite, ou do olhar assombrado que ela lhe lançou quando percebeu do que Savannah era realmente capaz.

[10/02/2024]

boa tarde, pessoal!! tudo bem com vocês?

veio aí o primeiro capítulo do ano! a ideia era, na verdade, postar os caps 49 e 50 antes de 2023 acabar, mas acabou que o trabalho e a faculdade dificultaram a escrita e não consegui fazer nada. sinto muito pela demora, mas estou aqui agora com um cap novinho!!!

tivemos um relance da dark savannah, amamos ver? a pobi da lia também não tem paz, aiaiaiai tadinha.

enfim, espero que vocês tenham gostado! vou tentar não demorar tanto com o próximo, mas vocês me conhecem kkkkódio.

beijocas e até a próxima!

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