32. wanted
APOIANDO AS COSTAS nos armários, Savannah permitiu-se deslizar até o chão. Conseguia sentir o frio do metal através de suas roupas, e o piso da escola não estava muito diferente. Porém, ela estava cansada demais para se dignar a arranjar um lugar decente para recostar-se. O peso de toda a noite anterior, somado a aulas exaustivas, havia drenado a garota.
Para a sua sorte, o Sr. Harrington havia liberado a sua classe, o que significava que tinha um período vago naquela sexta-feira. Os corredores estavam vazios àquela hora, visto que a maior parte dos alunos ainda estava em aula, então a heroína somente colocou os fones de ouvido e tentou relaxar um pouco enquanto esperava Ned e Peter para o almoço.
Kiwi, de Harry Styles, estourava nos ouvidos de Savannah quando, repentinamente, a canção foi substituída pelo toque insistente do celular. A adolescente abriu os olhos apenas para enxergar que Lia estava solicitando uma chamada de vídeo, a qual ela aceitou com um sorriso.
— Ei! — cumprimentou, animada. — Como vai Boston?
A tela, por um instante, foi uma confusão de pixels e cores, mas logo a conexão se estabilizou e revelou o rosto de Amelia. O sorriso de Savannah pareceu se alargar ao vê-la encolhida em uma posição engraçada, a cabeça perto demais da câmera; conversar com a melhor amiga sempre conseguia elevar os seus ânimos, e ela, honestamente, precisava daquilo.
— Frio. Viva o outono — Lia respondeu, a voz desprovida de humor. O vento soprava os seus cabelos e assobiava no áudio, como se para exemplificar o motivo da irritação da jovem. — Acabei de escapar de um exercício de confraternização entre equipes, tô com fome demais para ser legal com os outros. E aí?
— Aula vaga — revelou. — Acho que o Sr. Harrington precisou resolver alguns assuntos com a esposa.
Amelia fez uma careta que dizia explicitamente "De novo?!", ao passo que a Major preferiu apenas dar de ombros, só podendo torcer para os problemas do professor se resolverem o quanto antes. A partir disso, as duas começaram a conversar; elas haviam se falado um pouco na noite anterior depois de Lia chegar ao hotel, e na ocasião Savannah revelara à amiga sobre tudo o que havia acontecido durante a sua missão. Agora, elas conversavam sobre o campeonato e Boston, a líder de torcida contando tanto quanto possível para a outra.
Em dado momento, ao terminar os relatos sobre a excursão, Amelia inquiriu:
— Aliás, como está o Theo?
O seu tom era cuidadoso, como se temesse desencadear uma reação sombria na amiga. No intervalo de um piscar de olhos, todos os pensamentos que a vigilante lutara a manhã inteira para manter afastados ressurgiram. A confusão quanto ao ocorrido, a preocupação, a angústia. Kyle coberto de sangue, Kyle culpado, Kyle, que odiava a Major e o Homem-Aranha, dizendo que eles eram os responsáveis pelo estado do parceiro. As palavras ainda queimavam em sua cabeça, como se marcadas a ferro quente. Foi graças àqueles dois vigilantes... a Major e o Homem-Aranha são tão culpados quanto eu.
Lia pareceu tentar analisar a sua expressão através da má qualidade do vídeo. Savannah, por sua vez, manteve-se tão impassível quanto pôde. Não queria que a amiga se preocupasse com ela mais do que já fazia, portanto, se podia fingir que não sentia aquela culpa esmagadora, fingiria. Amelia jamais saberia.
— Melhorando — foi o que respondeu. — Vou visitá-lo depois da aula.
Lia anuiu, aí mordeu os lábios.
— Algumas meninas nos escutaram falando sobre ele ontem à noite. Pensaram que alguém que você conhece foi parar no hospital, e por isso você faltou. — Revelou. Savannah sentiu o peito apertar; pensar em usar a condição de Theo como uma desculpa para os seus próprios erros a deixava incomodada. — Mas eu disse que, na verdade, o seu cachorro fugiu e foi atropelado.
Savannah franziu o cenho.
— Eu não tenho um cachorro.
— É, não mais. — Amelia deu de ombros. — Da próxima vez em que vir as meninas, trate de agir triste por conta da morte do Arlo. Foi esse o nome que eu inventei para ele.
A heroína soltou uma risada, meio incrédula, meio impressionada.
— Isso é horrível!
Lia pareceu ponderar.
— Verdade. Vou só dizer que ele quebrou a pata, é menos sombrio.
Savannah riu mais uma vez, sentindo-se bem mais leve do que antes. Ela balançou a cabeça em concordância, mais para si mesma do que para a amiga — precisaria recordar-se do nome Arlo para não acabar esquecendo-se de seu novo cachorro fictício —, mas logo acabou suspirando.
— Eles estão muito bravos comigo?
Não era preciso perguntar mais do que aquilo: era óbvio a quem ela se referia. Os poucos segundos que se decorreram entre o questionamento e a resposta pareceram uma eternidade, embora Savannah já imaginasse o que ouviria. E sabia que não poderia culpar seus ex-colegas de time nem se quisesse — eles tinham todo o direito de estarem furiosos com ela. A jovem merecia aquela raiva, e só lamentava que nunca seria capaz de explicar o motivo de ter pisado na bola sem revelar o seu segredo mais profundo.
— A maioria se acalmou depois que eu contei sobre o seu cachorro — a voz de Lia soou gentil. — Ainda assim... Não acho que seja uma boa ideia você aparecer por aqui. Maddie provavelmente vai tentar estrangulá-la se a vir. Dê a ela esses dias para que se tranquilize.
A Major, que já esperava aquilo, concordou tristemente com a cabeça. Ela havia pensado em pegar um ônibus para Boston a fim de prestigiar a amiga e o time. A fim de se desculpar com os torcedores. Não sabia se seria bem recebida, mas queria poder estar lá para mostrar que os apoiava, que se importava. Porém, considerando que Maddie queria o seu sangue, era melhor deixar para lá.
— Tudo bem — por fim disse. Depois, arriscou: — Você está irritada?
O olhar de Lia dava a impressão de que, se ela estivesse lá, teria dado um tapa em Savannah.
— Claro que não — respondeu. — Um pouco triste por você não estar aqui, sim, mas de jeito nenhum brava.
— Queria poder estar aí, de verdade. Sinto muito mesmo. — Antes que Amelia pudesse repreendê-la por estar se desculpando novamente, prosseguiu: — Mas prometo que vou compensar isso. Você vai ficar até de saco cheio de tanto que vai ver o meu rosto.
A risada da amiga ficou cortada devido à conexão da chamada de vídeo e sua tela congelou. Logo voltou, porém, não dando tempo a Savannah de capturar a careta comprometedora.
— Vou ver se arranjo um tempo para você. Com o meu aniversário chegando, estou ficando cada vez mais requisitada — ela brincou, o áudio ainda meio ruidoso. — E pare de se desculpar, chega disso. Vamos falar de uma coisa mais séria. — Lia fez uma pausa dramática, tão longa que Savannah achou que a amiga tivesse travado novamente. (Infelizmente, não em uma pose engraçada.) — Acho que a Ava está a fim de você.
— Ava Ayala? — A garota arqueou as sobrancelhas, um pouco cética.
— Quem mais seria? — rebateu. — Estamos dividindo o quarto aqui no hotel, e ela estava perguntado sobre você hoje mais cedo. Sondando, sabe? Queria saber se você e Peter estavam juntos.
— Por que todos acham isso? — Savannah murmurou, mais para si mesma do que para a outra. Então, balançou a cabeça. — Deve ser só curiosidade, sei lá. Somos apenas amigas.
Lia revirou os olhos, como se não pudesse acreditar no que estava escutando. A Major, em um gesto muito maduro, mostrou-lhe a língua.
— Confia no meu radar. E se acontecer de ela chamar você para sair... — Deu de ombros, o restante da frase pairando no ar. — Faz tempo que você não dá umas bitocas, não faz?
Savannah engasgou em uma risada.
— Primeiro de tudo, bitocas? — Foi a vez de a amiga de lhe mostrar a língua, uma falsa ofensa estampada na face. — Segundo, estou muito ocupada ultimamente. Sem tempo para relacionamentos.
Dizer aquilo foi o que bastou para que Amelia começasse a tagarelar que, antes de tudo, bitocar não significava namorar; ela lhe deu um sermão sobre como a vida amorosa dela não devia morrer em detrimento de suas patrulhas. Ela estava certa, é claro, embora Savannah não fosse admitir aquilo. Porque, mesmo que sua vida social estivesse um pouco parada nos últimos tempos, não era como se ela tivesse se isolado do mundo. Ainda que não fosse para festas ou encontros em grupos grandes, ela ainda saía com Lia, Peter e Ned — e aquilo realmente bastava para ela.
Além do mais, ela estava mesmo ocupada. Entre as suas vigílias, o trabalho, a escola e a surpresa que preparava para o aniversário da melhor amiga, em onze de novembro, não dispunha de muito tempo nas mãos. E também não era como se ela realmente quisesse sair com Ava. Quer dizer, ela era incrível, mas Savannah não estava interessada, e...
Estranhamente, ela pensava em Peter.
Ela estava prestes a cortar o discurso de Lia quando a própria menina se interrompeu, uma torrente de xingamentos substituindo a bronca que dava.
— Merda, me encontraram. — Ela resmungou mais alguns palavrões. — Preciso ir, beijos!
Com um último sorriso, Savannah despediu-se, e a chamada de vídeo foi encerrada. A voz de Harry Styles voltou a soar nos fones de ouvido da garota, agora sozinha no corredor mais uma vez. Ela, aos suspiros, permitiu-se recostar a cabeça de volta nos armários e fechar os olhos, embalada pela melodia e pelo frio do metal às suas costas.
Ela mal percebeu o tempo passar. Quando se deu conta, o sinal do almoço estava tocando e ela, dando um pulo de susto em seu lugar. Savannah piscou algumas vezes, os olhos ainda meio pesados do cochilo que havia dado. O seu pescoço doía um pouco e provavelmente era melhor ela se levantar, visto que alunos ávidos por comida já deixavam as salas e seria um infortúnio alguém tropeçar nela.
Ela havia acabado de pausar a música que rodava em seu celular quando alguém surgiu em frente a ela com a mão estendida. Savannah aceitou a ajuda de Peter para se erguer, seus membros protestando em preguiça.
— Tô sem forças — ela resmungou para o amigo depois de murmurar um agradecimento.
O rapaz sorriu para ela antes de voltar-se na direção de seu próprio armário. Jogando a mochila por cima do ombro, a vigilante o acompanhou vagarosamente.
— Precisa que alguém te carregue? — Alfinetou.
— É maldade propor isso se não for cumprir realmente — ela rebateu.
Peter sorriu mais uma vez — um sorriso fraco que, por algum motivo, despertou uma sensação esquisita no estômago dela —, mas não se ofereceu para carregá-la. Ao invés disso, ele somente disse enquanto abria o seu armário e colocava o seu material dentro dele:
— Quer assistir a algum filme lá em casa depois da aula? Hoje eu tô de folga do estágio. — Então, acrescentou: — Ned já disse sim.
Savannah suspirou e passou a mão pelo rosto em um gesto cansado.
— Agradeço o convite, mas não posso. Vou ao hospital — respondeu.
Peter lhe lançou um olhar preocupado. Entretanto, foi Ned, que havia se aproximado dos dois no corredor, que perguntou se ela estava bem. A adolescente aquiesceu e, depois de hesitar por um instante, aqueles sentimentos pegajosos de culpa revirando-se em seu interior, contou que ia visitar um amigo da família que havia se machucado.
Alguma coisa em sua expressão, ou talvez em sua voz, fez Peter fechar a porta metálica entre eles e lhe lançar mais um olhar solidário.
— Posso te acompanhar, se não quiser ir sozinha.
Ao seu lado, Leeds endossou a sugestão com um aceno enfático de cabeça.
— Podemos ver o filme depois, de qualquer maneira. Se você quiser.
Com gratidão aquecendo o peito, Savannah abriu a boca para recusar. Afinal, não queria atrapalhar os planos de ninguém. Todavia, as palavras odiosas de Kyle voltaram à sua cabeça, fazendo com que sua garganta fechasse. A Major precisava ir ver Theo, certificar-se de que ele estava bem, desculpar-se por tê-lo colocado ali. Sabia que sim, mas, em seu âmago, desejava intensamente que não estivesse lá sozinha. Porque talvez assim seria mais fácil de lidar com a angústia que sentia.
A garota pegou-se concordando com a cabeça.
✶
No elevador do hospital, Peter conseguia sentir Savannah tremendo ao seu lado. Não era de frio; apesar do clima gélido, ela estava usando um moletom. Não, claramente era de nervosismo. O rosto dela não deixava dúvidas: parecia que estava prestes a vomitar, tanto que o Homem-Aranha já havia verificado pelo menos duas vezes se ela estava bem.
Toda vez, ela respondia que estava. A garota ao seu lado podia estar nervosa até o talo, mas também estava determinada a ir até o fim com aquilo. Aquela visita a abalava terrivelmente e, ainda assim, ela se recusava a dar meia volta e ir embora. Peter sentiu grande admiração, mas também uma forte vontade de abraçá-la.
Quando as portas do elevador se abriram para revelar um novo piso do hospital, Savannah saiu com a cabeça erguida. Ned e Peter trocaram um olhar rápido antes de seguirem-na para fora. Os três somente pararam ao chegarem em frente ao quarto de número 297. Na parede, bem ao lado da porta, havia um vidro que permitia a visualização do interior do cômodo.
Parado ao lado da amiga, Peter percebeu quando ela prendeu a respiração, os olhos cravados no jovem ruivo deitado na cama. Ao lado dele, havia uma mulher. Mais cedo no metrô a caminho do hospital, Savannah havia explicado quem eles estavam indo visitar, então o herói sabia se tratar de Theodore Hathaway, o melhor amigo de Kyle, e sua noiva, Megan Hutton.
De repente, os dedos de Savy fecharam-se em torno dos seus. Surpreso, Peter desviou o olhar para ela, mas a amiga mal parecia notar o que fazia. Ela continuava encarando Theo, preocupação estampada em cada centímetro de sua face. Ele queria abraçá-la naquele instante.
Em vez disso, ele acariciou as costas da mão dela de leve com o polegar, os dedos ainda entrelaçados, para lhe conceder um conforto silencioso. Aquilo chamou atenção da menina, que enfim voltou os olhos para ele. Mas não soltou sua mão.
— O que aconteceu com ele? — Ned perguntou.
Savannah hesitou antes de responder baixinho:
— Uma operação policial deu errado. Ele foi prender uns traficantes e acabou levando dois tiros.
Mais uma vez, Peter e Ned olharam-se de esguelha por cima dos ombros de Savannah. Porém, agora por um motivo totalmente diferente: ambos se perguntavam se havia sido a operação que o Homem-Aranha e a Major haviam invadido, ou seria apenas uma coincidência? O vigilante não sabia o que pensar. Torcia para que fosse apenas especulação deles, porque aquilo significaria que teria acontecido durante o confronto e nenhum dos vigilantes reparara...
Não que eles tivessem tido muito tempo para fazê-lo, não? Antes, eles estiveram envolvidos demais pelo frenesi da luta e, depois, ocupados afastando-se da polícia antes que fossem para cima deles de vez. Os oficiais haviam apreendido os traficantes — inclusive o rapaz da festa, o qual levara o Homem-Aranha e a Major até aquela negociação graças ao rastreador que tinham plantado nele — e as drogas que haviam estado naquele armazém, e fora apenas uma questão de tempo até que se voltassem contra os heróis. Ainda assim, era difícil não se sentir angustiado pensando na possibilidade de Theodore ter se ferido justamente naquele confronto; o Aranha não conseguia deixar de imaginar se teria conseguido impedir aquilo de alguma maneira, caso fosse verdade.
Como se os tivesse percebido às suas costas, a moça dentro do quarto virou-se para eles. Ela era jovem, tinha cabelos escuros e olhos verdes. Estes estavam inchados, Peter percebeu, mas seu olhar pareceu suavizar ao enxergar Savannah do outro lado do vidro. Em poucos instantes, ela estava passando pela porta e indo em direção a eles.
Savannah soltou a mão de Peter para poder abraçá-la. Ele sentiu uma estranha sensação de vazio onde os dedos dela outrora estiveram.
— Megan — ele ouviu dizê-la em meio ao abraço, meio tensa. — Como ele está?
— Melhor — a mulher respondeu. Tinha uma voz melódica, e Parker lembrou-se de Savannah dizer que ela era professora de música.
Era estranho conhecer a noiva do detetive Hathaway, Peter pensou ao ver o anel de noivado no dedo dela — nas primeiras vezes em que ouvira a amiga, ou até mesmo Lia, falar sobre Kyle e Theo, ele deduziu que os dois fossem um casal, e não apenas melhores amigos. Ned também imaginara aquilo, e parecia recordar o fato enquanto mirava, de cenho franzido, as duas jovens abraçando-se.
Ao elas se separarem, Megan olhou com certa curiosidade para os rapazes ao lado de Savannah. A garota apressou-se em apresentá-los, e os dois expressaram suas condolências pela situação de seu noivo, embora aquilo, Peter sabia, não fosse de muita ajuda. A mulher assentiu em agradecimento ainda assim.
— Theo está descansando agora, mas eu aviso que você passou — ela falou. — Você não quer entrar?
Savannah demorou um segundo antes menear a cabeça. Ela lançou um olhar para os amigos — Peter deu um passo à frente, colocou uma mão nas costas dela, como um apoio rápido, e disse que eles iam esperar por ela nos bancos. De esguelha, percebia que Megan e Ned os miravam, mas seu foco permaneceu na jovem adiante, que anuiu e lhe ofereceu um fraco sorriso sem mostrar os dentes.
Quando os meninos alcançaram a área de espera, Peter jogou-se em um dos bancos, lançando um último olhar para o quarto 297. Voltou-se, então, para Ned e percebeu que estava sendo encarado.
— O que foi? — indagou com o cenho franzido.
— Nada — o rapaz falou.
O Homem-Aranha deu de ombros e olhou em volta. Pendurada na parede mais próxima, havia uma televisão, seu áudio baixo quebrando a quietude do ambiente. Ele acabou se distraindo com a tela, vira e mexe comentando alguma coisa com Ned. Vários minutos se passaram, e Peter conversava com o amigo sobre nada em particular quando o seu nome — ou melhor, o seu alter ego — chegou aos seus ouvidos. Leeds pareceu escutar também, e ambos viraram-se para a TV.
Uma reportagem do Clarim Diário passava. Ao lado de um jornalista, estava o Comissário da Polícia de Nova York, ou pelo menos era o que a legenda falava. Ela também dizia "Polícia se pronuncia sobre ameaça vigilante".
— Esses tais heróis — o comissário dizia — pensam que estão acima da lei. Mas, na realidade, eles não são nada além de criminosos. Desconhecem limites, e suas interferências são conhecidas por causarem danos colaterais irreparáveis. Como quando a Major — ele disse o nome como se fosse venenoso — destruiu uma joalheria em uma luta contra a Gata Negra, angariando prejuízos em milhões de dólares. Ou então no ano passado, quando o Homem-Aranha partiu uma balsa ao meio e colocou em risco a vida de centenas de pessoas.
Peter sentiu o coração pesar com a menção àquilo. Ele fechou os olhos por um instante, como se aquilo conseguisse abafar o som, mas o policial prosseguiu:
— Ontem à noite, eles interviram na operação de uma força-tarefa de grande importância, fazendo com que diversos oficiais fossem feridos. Suas ações, nos foi informado, deram cobertura para diversos traficantes. — A boca do Homem-Aranha se escancarou. Ele estava praticamente dizendo que haviam ajudado os bandidos! Aquilo era mentira. — Depois disso, ficou claro que eles estão compactuando com as forças criminosas dessa cidade, não importa o quanto finjam prestar ajuda à comunidade. Eles só estão atrás de fama, prestígio e dinheiro.
Peter não conseguia acreditar. Mentiras, mentiras. Era tudo uma grande mentira. A polícia e a imprensa os estavam pintando como os vilões, como se eles não fizessem nada pela população. Quando eles faziam muito mais do que qualquer um. Raiva borbulhava sob a pele do herói, uma emoção vermelha e quente e latente.
— De agora em diante, a polícia está emitindo um mandado de prisão para o Homem-Aranha e a Major. Ajudá-los será considerado cumplicidade, e denúncias serão bem recompensadas. — Ele olhou diretamente para a câmera. — Está na hora de tratá-los como os criminosos que, de fato, são.
Os ombros de Peter estavam tão tensos que chegavam a doer. Ele queria gritar com a televisão, com os repórteres do Clarim Diário, com aquele comissário falastrão. Do jeito que o homem cuspia mentiras, não havia dúvidas que estava no bolso de Montgomery, ou de quem quer que fosse o seu chefe. Agora, a missão aparentemente era antagonizar os heróis — ele só esperava que as pessoas não acreditassem naquelas acusações absurdas.
Ned cutucou o ombro do amigo, puxando-o de seu poço de indignação de volta à realidade, e, assim que conseguiu sua atenção, indicou o outro lado da sala. O Homem-Aranha seguiu o seu olhar, para então encontrar Savannah congelada em seu lugar, os olhos presos na televisão. Ela trincava o maxilar, em um claro sinal de irritação; deu apenas uma espiada na direção do quarto de Theo, e Peter soube que ela pensava na história que o comissário tinha acabado de contar.
Ela gostava da Major. Será que realmente acreditava que a heroína pudesse ser algo como uma mercenária, inclinada a ajudar os criminosos por dinheiro? Será que pensava que ele pudesse ser assim? Aquela possibilidade o incomodava além do imaginado.
Porém, quando ele se aproximou para falar com ela — sem saber ao certo o que dizer, tudo graças às mentiras que o comissário havia cuspido —, os olhos de Savannah não revelavam nada além de uma tempestade.
✶
Savannah queria socar alguma coisa. Qualquer coisa. De preferência, a cara do Comissário da Polícia de Nova York.
Quando a vigilante estivera no quarto de hospital de Theo, ela havia sentido grande pesar — ela não conseguia evitar sentir culpa pelo estado do homem, um sentimento tão esmagador que ela se sentira sufocada. Entretanto, quando percebeu que ele estava, pelo menos, no caminho para a melhora, houve também alívio. Theo estava bem. Cada vez melhor, na verdade. Ela havia precisado ver aquilo com os próprios olhos para deixar que aquela sensação horrível abandonasse os seus ombros.
Sim, talvez ela fosse, em parte, responsável pelo que acontecera com ele. Estivera doente de preocupação no caminho inteiro até ali, mas acabou que o detetive estava bem. E ela conseguira respirar melhor, sentindo-se definitivamente mais leve, sabendo que compensaria pelo que havia acontecido.
Contudo, ao retirar-se do cômodo para ir em busca dos amigos e se deparar com aquela notícia do Clarim, sentira somente raiva. Nua, crua, pungente, ameaçando fazê-la berrar. Como ousavam falar dela e do Homem-Aranha daquela maneira? Eles buscavam apenas ajudar as pessoas, e agora estavam sendo tratados como criminosos. Havia um mandado de prisão no nome deles e recompensas a quem quer que os denunciasse. Era quase como colocar um preço em suas cabeças, só faltava um cartaz de "Procurados: vivos ou mortos".
A menina sentiu a cabeça latejar. As coisas ficariam mais perigosas agora, e ela teria de tomar o dobro de cuidado. Porém, ainda assim, ela não se acovardaria. Aquele discurso fora uma tentativa de assustá-la, mas ela sentia apenas fúria e uma determinação de aço. Não desistiria.
Agora, no entanto, estava cansada demais para pensar em lutar contra o crime. Queria, sim, socar alguma coisa, mas não tinha forças para aquilo. A preocupação que a revirara o dia inteiro estava cobrando o seu preço, e ela precisava de comida e distrações. Ademais, havia aceitado a proposta de Peter no final das contas, então lá estava ela, subindo a escadaria na direção do apartamento dele.
Filmes, lanches e amigos lhe fariam bem. Ela precisava daquilo.
Logo que o trio chegou na porta da casa de Peter, um leve cheiro de queimado os alcançou. O rapaz soltou um pequeno "Ah, não" e um suspiro — Savannah logo lembrou-se do amigo contando no início da semana que May estivera tentando aprimorar suas habilidades na cozinha e não parava de tentar experimentos culinários, a maioria dos quais falhava. Ao que parecia, eles estavam diante de mais um teste.
— May, chegamos! — Parker anunciou enquanto abria a porta.
Eles adentraram o apartamento, onde, naturalmente, o odor era um pouco mais forte. Logo eles avistaram a tia de Peter na cozinha, fazendo uma careta para um prato cheio do que pareciam ser cookies. Porém, assim que os viu, ela abriu um sorriso e foi cumprimentá-los.
— Oi, crianças — exclamou afetuosamente, dando um abraço em cada um. Ela franziu as sobrancelhas. — Peter falou que vocês vinham, então tentei fazer cookies, mas... Acho que queimei um pouco. — Ela lançou um olhar duvidoso para o prato. — Quem quer ser a minha cobaia?
Rapidamente, Peter e Ned deram um passo para trás, de modo que sobrou para Savannah. A heroína lançou um olhar significativo para eles, tomando cuidado para não deixar May reparar, mas lavou as mãos e seguiu até os biscoitos; agora que estava perto, conseguia discernir o cheiro de massa e chocolate misturado ao leve odor de queimado. Não pareciam ruins, para ser sincera, então ela deu uma grande mordida.
O cookie estava terrivelmente seco, e um pouco salgado também. Além, claro, de estar tostado, muito mais do que o cheiro deixava a imaginar. Mesmo assim, Savannah sorriu sem mostrar os dentes e terminou de comer o biscoito inteiro. Sua garganta parecia arranhada depois de ela engolir o último pedaço.
— Muito bom! — mentiu.
Para sustentar a história, a Major pegou mais um cookie e o mordiscou. May sorriu com animação, e depois se retirou, dizendo que ia tomar um banho para tirar aquele cheiro do cabelo. Assim que ela fechou a porta de seu quarto, Peter falou:
— Sabe, você não precisa comer se não quiser.
— Mas eu quero. — Ela disse ainda de boca cheia. — Isso tá... gostoso.
— Então engole o biscoito.
Savannah estreitou os olhos diante do desafio na voz do amigo e engoliu a massa. Acabou que sua garganta não aguentou a secura da comida e ela começou a tossir. Após recuperar-se de sua experiência de quase morte — como ela colocou aos rapazes, que haviam rido da cara dela enquanto a adolescente bebia alguns copos d'água —, Ned foi para o quarto de Peter buscar o box da coleção Jurassic Park, enquanto os outros dois ficaram na cozinha para fazer pipoca.
— Então... Como você está se sentindo? — o amigo perguntou enquanto pegava o petisco.
Savannah apoiou-se contra a bancada.
— Acho que preciso de mais água, mas vou sobreviver.
A risada do garoto foi breve, e logo ele continuou:
— Não foi isso que eu quis dizer.
Savannah hesitou. Ela estava bem melhor agora, entretanto, caso se permitisse voltar para o que havia acontecido no hospital, uma raiva descomunal a dominaria. Ela estava indignada, furiosa. Talvez devesse contar aquilo a Peter — talvez devesse contar tudo a ele.
A loucura daquele pensamento a fez parar, chocada. Contar a Peter, tudo? No que ela estava pensando? Quer dizer, não é como se ela não confiasse nele. E seria bom ter mais alguém com quem discutir assuntos de super-heróis. Mas ainda assim... principalmente depois daquela declaração da polícia — "Ajudá-los será considerado cumplicidade" —, havia uma trava em sua mente que lhe dizia para não fazer aquilo. Não era justo colocar mais um de seus amigos em risco.
Savannah balançou a cabeça, espantando as reflexões. Aquela não era a hora nem o lugar. Se algum dia viesse a contar a Peter... Precisava ponderar sobre aquilo ainda. Não podia vazar o segredo simplesmente daquele jeito.
Ela o olhou, considerando o quanto seria bom, sim, poder falar para ele livremente que ela era a Major, contar sobre suas aventuras, explicar por que agira daquela maneira no hospital... E então deu-se conta de que ele ainda esperava por uma resposta.
— Estou bem — disse por fim. E, embora já tivesse agradecido uma vez, ela prosseguiu. — Obrigada, de novo. Por vocês terem ido comigo. E por agora também.
Peter anuiu e sorriu para ela. No meio tempo em que ela estivera perdida em sua própria mente, ele havia colocado a pipoca no microondas, e agora dava para ouvir o barulho dos milhos estourando. O som pareceu distante enquanto eles se encaravam, até o menino pigarrear e desviar o olhar.
— Sinto muito que você tenha sido a cobaia da May. Ela não é uma cozinheira muito boa, mas tenta. — Falou.
— Bem, não posso julgar. Só sei o básico do básico, juro — a garota replicou. — Se não fosse pelo Kyle, eu estaria acabada. Mas você é praticamente um chef, não é?
O microondas apitou no instante em que o rapaz sorriu de novo. Savannah pensou em como já estava acostumada com aqueles sorrisos — parecia uma vitória pessoal toda vez que fazia Peter sorrir com uma piada besta ou algo do tipo. Era uma sensação esquisita.
— Ben me ensinou um pouco, então eu sei me virar — ele confidenciou enquanto pegava o pacote de pipoca dentro do eletrodoméstico. Ele abriu saco, despejou o conteúdo em uma vasilha e exibiu o resultado com orgulho. — Voilà! Pipoca à la Peter!
A heroína riu antes de roubar uma pipoca para si. Naquele instante, Ned voltou à sala com os DVDs e, enquanto ele se ocupava em colocar o primeiro filme para rodar a televisão, Savannah pegou um papel, usou-os para enrolar os cookies de May e colocou a comida clandestinamente dentro da bolsa, somente para parecer que eles haviam comido tudo. Afinal, a mulher ficaria feliz com aquilo.
Então, ela sentou-se no sofá com os amigos para começar a maratona. Todavia, o dia havia sido exaustivo de tantas maneiras, e ela já não havia dormido muito bem naquela noite... Embora tivesse lutado para permanecer acordada, Savannah não passou do primeiro filme. Ela logo caiu no sono, a cabeça apoiada no ombro de Peter.
✶
[04/11/2020]
oi, gente, tudo bem com vocês?
o cap não tá lá mto bom, mas eu só queria dizer que estou mto soft com a parte final desse capítulo. a amizade desse grupo é tudo pra mim, sou rendida por eles.
bem, espero que vocês tenham gostado do cap! espero voltar mais rápido com o próximo, mas não prometo nada. tá tudo muito corrido ultimamente, uma loucura totalkkkk desespero.
até logo! beijos!
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