31. web of lies
VINTE MINUTOS DEPOIS, Savannah estava em casa. Entrando apressada, ela quase tropeçava nos próprios pés conforme disparava degraus acima. Precisava alcançar o seu quarto para se trocar e sair de lá o mais rápido possível; eram mais trinta minutos de sua casa até o local da venda, então ela tinha de se apressar.
Entretanto, estava no meio do caminho quando Kyle surgiu no topo da escadaria, os braços cruzados sobre o peito e uma expressão nada amigável adornando o rosto. A garota estacou de repente, agarrando-se ao corrimão para não cair. Demorou alguns segundos para se recompor e forçar um sorriso.
— Ky, achei que estivesse no trabalho — tentou não soar muito nervosa. — O que está fazendo aqui?
— Acho que eu que deveria estar fazendo essa pergunta — foi o que ele respondeu, o tom tão sério quanto as feições. — Não era para estar na detenção?
Savannah permitiu que o sorriso se desmanchasse, que os ombros caíssem. Tinha certeza de que o diretor havia ligado para falar a respeito de sua fuga do castigo; ela havia antecipado aquilo, apenas esperara que não teria de lidar com o irmão imediatamente.
Kyle começou a descer a escada. Ao passar pela heroína, fez um gesto para que o seguisse, e ela obedeceu, tensa. Os dois dirigiram-se para a sala de estar, Savannah sentando-se no sofá enquanto o detetive ficava de pé em frente a ela. A jovem não se intimidou com a pose altiva do irmão, muito embora tivesse o bom senso de parecer, no mínimo, culpada.
— Olha, eu posso explicar... — começou, o cérebro trabalhando a todo vapor para arranjar uma justificativa convincente para as suas ações.
— Savannah, eu sei. — Kyle a interrompeu.
Parando por um instante, a Major observou o rosto dele. Analisou o tom de voz cansado e grave, a postura e a expressão intensa. O que viu ali fez o seu corpo gelar: aquele comportamento, aquelas palavras, aquele olhar... De alguma forma, ele havia descoberto o seu segredo.
Kyle sabia. Sabia e estava ali para confrontá-la, e provavelmente a trancaria em seu quarto até segunda ordem, porque, para ele, virar uma vigilante era insano e estúpido. E, ah, quando ele contasse para a mãe deles... O surto do irmão não seria nada comparado ao da mãe.
O coração de Savannah começou a bater rápido dentro do peito. Ela, porém, não falou nada. Deixou que o irmão prosseguisse, aguardando a bomba que ele estava prestes a despejar em seu colo. Ele estava calmo por enquanto, mas ela previa que logo o sermão começaria.
— Sei que não estou por perto na maior parte do tempo, mas pensa que eu não reparei? — dizia o homem. — Pensa que não reparei como você anda avoada, como anda chegando tarde? A princípio, achei que fosse por causa do trabalho, mas logo percebi que não era só isso. E, agora, você vai parar na detenção! Francamente...
De repente, o toque do celular de Savannah invadiu a cada vez mais tensa atmosfera da sala. Kyle comprimiu os lábios, desgostoso com a bronca interrompida, ao passo que, com as mãos atrapalhando-se, a adolescente pescou o aparelho no bolso do casaco; o visor exibiu o nome e a foto de Maddie, que provavelmente ficara sabendo de sua fuga do castigo e agora ligava para saber onde diabos ela havia se metido, embora o ônibus ainda não estivesse próximo de partir. Com o coração ainda mais pesado, ela recusou a chamada e guardou novamente o telefone. Em seguida, voltou o olhar para o irmão.
— Kyle, eu sei o que isso parece, mas...
— Não precisa explicar, Savannah. Eu sei. — Ele soltou um suspiro cansado antes de largar-se no sofá ao seu lado. — E eu entendo. Também já fiz isso na sua idade, é coisa de adolescente... Mas não quero que você cometa os mesmos erros que eu, então, não posso deixar isso passar.
A heroína franziu a testa. Aquilo havia tomado um rumo inesperado.
— Do que você está falando?
— Não precisa se fazer de desentendida — ele bufou uma risada. — Eu já sei.
— Tá, sabe o quê? — Ela já estava perdendo a paciência.
— O motivo de tudo isso. — Disse como se fosse óbvio. — Você está namorando, não está?
Savannah demorou um pouco para responder, tamanha era a sua incredulidade. Ela esperou, talvez para saber se havia ouvido direito, para ver se o irmão se corrigiria, se diria que estava brincando com a cara dela. Mas ele não fez nada disso.
— Você acha que eu estou agindo dessa maneira — começou, lentamente — por que estou namorando?
— Só o amor para tornar alguém tão idiota assim, não é?
A mais nova preferiu ignorar a alfinetada e forçou uma risada culpada — dançando de acordo com a música, é claro. Por falta de alternativa melhor, acataria a desculpa do irmão e usaria a seu favor, por mais absurda que fosse. Por um momento, a menina até mesmo precisou reprimir a vontade de rir de verdade, atônita com aquelas suposições... Isso até perceber que as palavras do detetive eram mais verdadeiras do que havia imaginado a princípio.
Para ele, aquilo era plausível exatamente por conta de seu amor por Savannah. Por conta da confiança que havia depositado nela. Embora Kyle fosse inteligente e versátil, era cego em relação a ela: como a garota que ele lutava para proteger, sua irmãzinha, poderia ser a Major, que se envolvia em tantos perigos? Era inconcebível. Ele preferia teorizar sobre um possível relacionamento a admitir aquela realidade.
Para quem conhecia sua rotina, como Amelia, seria fácil detectar as pequenas mentiras do dia a dia e conectá-las à verdade. Todavia, Kyle não ficava muito tempo em casa, então estava totalmente alheio aos hábitos de Savannah. Ela sempre poderia colocar a culpa de chegar tarde no trabalho, colocar a culpa dos machucados nas falsas aulas de kung fu. Ele acreditaria. Afinal, que motivo havia para desconfiar? O irmão não fazia ideia de como eram as suas aulas — até onde sabia, podiam ser brutais.
Savannah havia tecido uma teia de mentiras que qualquer um poderia engolir. Para Kyle, ou até mesmo Peter e Ned ou qualquer outro amigo seu, ela nunca seria uma vigilante. Era surreal demais. Suas feridas vinham de suas aulas de luta, seu cansaço vinha de sua rotina puxada. Ninguém suspeitava da verdade, pois suas palavras eram dignas de confiança. Ela era digna de confiança.
Se pensasse bem, aquilo era horrível. Mesmo que por um bom motivo, ela estava mentindo para todos com quem se importava. Porém, uma parte sua suplantava a culpa com alívio. Que bom que as pessoas acreditavam nela. Que bom que ela não dava motivos para suspeitar. Talvez ela estivesse sendo uma péssima pessoa por se aproveitar da confiança depositada nela, mas... era por uma boa causa. Não era como se ela estivesse fazendo algo errado, era?
Percebendo que sua faceta estava sendo substituída por uma expressão soturna, afastou aqueles pensamentos. Sua boca estava seca de repente, mas ela somente soltou outro risinho.
— Não diria exatamente "namoro"...
Pensando bem... Talvez tivesse sido melhor negar, de modo que não precisaria sustentar aquela teoria do irmão. Bem, agora já foi.
— Por que não me contou? — Kyle havia perdido por completo a postura séria e agora estava até animado. — Qual é o nome do seu amor?
A Major não conseguiu evitar soltar uma risada diante daquilo, uma que Kyle mal reparou conforme continuava:
— É aquele garoto, não é? — ele franziu a testa, confuso. — Ah, qual é mesmo o nome dele? É, hm...
— O Peter?! — Savannah ignorou como o nome do amigo pipocou em sua cabeça logo de cara, sem hesitação alguma. Quando o detetive aquiesceu, ela soltou um ruído exasperado. — Não seja ridículo, Ky, não estou namorando o Peter! Será que podemos, por favor, não falar da minha vida amorosa?
O homem ergueu as mãos em um sinal de rendição, como se dissesse que não insistiria mais no assunto. Depois, sua postura séria retornou, e ele a observou por alguns segundos antes de deixar o sofá com um suspiro.
— Certo. Estou feliz por você. Mas está de castigo.
A menina abriu a boca, indignada, e levantou-se também.
— Você não pode me deixar de castigo!
— Claro que posso! — ele arqueou as sobrancelhas com diversão. — Eu disse ao seu diretor que uma emergência familiar havia surgido, por isso você estava no celular na aula de Francês e depois fugiu da detenção... Livrei a sua cara na escola, mas aqui você não tem esse privilégio — deu de ombros. — Você faz merda, você arca com as consequências.
Kyle passou por ela, que ainda estava boquiaberta. Savannah, por sua vez, seguiu-o até a cozinha, ainda protestando. Ela viu o irmão revirar os olhos.
— Para de reclamar, vai. Ou quer que eu ligue para a mamãe e conte tudo?
Savannah hesitou.
— Você não ousaria.
— Tenta a sorte.
Ela fechou a cara, mas não falou mais nada. Ainda que a um oceano de distância, as broncas de Angeline Evans eram uma força a ser temida. Kyle soltou um sorriso vitorioso antes de pegar duas mochilas largadas ao pé do balcão.
— Sinto muito em acabar com os seus planos, mas é só por hoje — ele falou. De fato, Kyle nunca conseguira ser muito pulso firme com a irmã. — Escute, eu tenho umas coisas para resolver. Quero muito confiar que você não vai fugir de novo. Posso fazer isso?
Savannah soltou um bufo e, contrariada, disse:
— Pode.
Mais uma mentira para a sua teia.
O irmão sorriu, e aquilo fez com que ela se sentisse horrível. Mesmo assim, ela sustentou a atuação, e logo o detetive saía de casa; a jovem não esperou nem um minuto sequer para disparar na direção do quarto a fim de se trocar. Ela o fez em questão de minutos, tudo isso enquanto ouvia o toque incansável de seu celular.
Savannah estava prestes a sair de casa quando o telefone tocou de novo. Daquela vez, era a foto de Amelia no visor, e por isso ela atendeu.
— Maddie está muito puta — Lia disse à guisa de um cumprimento. — Felicia também deu bolo na gente. Só mandou uma mensagem dizendo que não ia mais, e agora... Bem, a situação tá feia.
— Merda. O ônibus já vai partir?
— Em alguns minutos. Quiseram adiantar o horário uma vez que todos os torcedores já estão aqui... Quer dizer, quase todos. — Explicou. — Estão perguntando sobre você. O que eu...
Subitamente, a amiga interrompeu-se. Não houve tempo nem mesmo para a heroína franzir o cenho antes que, alguns segundos depois, a voz irada de Maddie preenchesse a linha.
— Engraçado que você fugiu da detenção — sua irritação era palpável —, mas não estou vendo você em lugar nenhum. Pode me explicar isso?
A Major sentiu o peito pesar.
— Uma emergência apareceu...
— Já reparou que tem sempre uma emergência? — a capitã a cortou, cética. — Você está sempre dando desculpas para faltar aos ensaios, e agora vai fazer o mesmo com a viagem?! É inacreditável!
— Eu sei como tudo isso soa. Me desculpa, de verdade — cada palavra era sincera, embora aquilo não fosse o suficiente. — Mas uma coisa aconteceu...
— O ônibus parte em dez minutos, Savannah — Maddie disse com secura. — Você vai estar aqui a tempo?
A vigilante, escapando para o quintal através da porta dos fundos, admitiu, a voz falhada com o peso da culpa que sentia:
— Não. Mas, olha, não se preocupa! Eu juro que vou comprar uma passagem de ônibus ainda hoje para ir aí, eu só preciso resolver...
— Nem se incomode. — Maddie grunhiu. — Você não nos leva mais a sério. Não tem mais comprometimento, não está nem aí para o time.
— Isso não é verdade — Savannah sussurrou, ainda que talvez fosse.
Quer dizer, ela nunca tivera a intenção de magoar ninguém. Apesar de não se estar mais tão interessada em ser uma torcedora, ela nunca deixara de se importar com seus companheiros de time. Quando faltava nos treinos, tinha um bom motivo, fosse algum machucado ou os seus estudos — com exceção do treino extra daquela tarde, perdido por conta da detenção —, e ela sempre se empenhava duas vezes mais no encontro seguinte.
As coisas só estavam complicadas naquele momento. Ela tivera a infelicidade de ter uma chamada do Homem-Aranha e o seu time... bem, tivera a infelicidade de tê-la como membro.
— Não importa, não é? Por que não dá para prever quando outra emergência vai rolar. E, honestamente, a gente não pode ficar contando com a sua sorte — a capitã falou. — Você está fora do time.
Savannah estacou no meio do quintal. Não foi espanto que a atingiu naquele momento — não, somente tristeza e, de forma surpreendente, alívio. Alívio por não ter que participar de algo que não mais gostava, por não ter que deixar suas companheiras na mão. E, claro, mágoa por deixar o time do qual fizera parte pelos últimos três anos. Mágoa pelas coisas terem se encerrado daquela maneira. Havia tantas coisas que ela desejava dizer, tantas desculpas que desejava pedir.
Evans passou a mão pelo rosto, sentindo-se repentinamente cansada. O tempo não estava a seu favor ali. Embora odiasse que pensassem que estava descartando o time por pura desconsideração, precisaria deixar aquela conversa para depois.
— Tudo bem — ela enfim saiu do estupor que as palavras a haviam colocado. — Eu mereço. Me desculpe, Maddie. De verdade. Não quero que pensem que não me importo, porque seria mentira. — Savannah voltou a se mover. — Desculpa mesmo. Mas... podemos nos falar depois?
— Tanto faz.
A ligação foi encerrada.
✶
Savannah enfim chegou ao endereço que o Homem-Aranha havia lhe mandado. A sua falta de fôlego não tinha nada a ver com o trajeto que percorrera para chegar até ali; somada às suas angústias e culpas, havia agora uma ansiedade inquietante. A garota tratou de desviar daqueles sentimentos à medida que aproximava-se do prédio.
O seu parceiro havia informado nas mensagens que deixaria a porta dos fundos destrancada para ela. Dito e feito, Savannah nem mesmo precisou forçar a entrada para que ela abrisse. Torcendo para não estar muito atrasada, a heroína adentrou o lugar com cuidado.
Os seus passos eram silenciosos conforme ela esgueirava-se pelas imensas estantes dispostas pelo local, algumas repletas de caixotes, outras, vazias. Sob a sombra das prateleiras, a Major manteve o bastão em riste para o caso de ouvir qualquer coisa suspeita.
Ela havia acabado de virar em um novo corredor quando sentiu uma mão em seu ombro. Alarmada, ela girou, e o taco parou a alguns centímetros do rosto do Homem-Aranha.
O coração ainda martelava no peito quando ela abaixou a arma. O herói era tão silencioso que algum dia era capaz de ela acertá-lo por acidente.
— Você não deve assustar ninguém com um bastão, sabia disso? — cochichou.
Ele não respondeu. Ao invés disso, olhou para os lados, como se ouvisse alguma coisa. Savannah, que não escutava nada, franziu o cenho. Ela estava para perguntar o que havia de errado quando o vigilante segurou o seu braço e a puxou com rapidez. Ele apontou para o espaço estreito entre as duas estantes mais próximas, e a Major imediatamente entendeu.
Mal haviam se enfiado naquele vão quando passos e vozes alcançaram os ouvidos de Evans. A jovem recostou-se na viga às suas costas, enrijecida, não ousando fazer barulho algum para não ser detectada. Havia sido um milagre terem conseguido se esconder tão rápido e sem serem vistos — duvidava que o Aranha tivesse conseguido esgueirar-se para o teto a tempo, por isso ele estava ali com ela —, ela não estragaria tudo com ruído algum.
— Eles chegaram — disse uma voz feminina, provavelmente referindo-se aos compradores. — Lembre-se, deixe que eu falo. Eles podem se tornar investidores, então precisamos ser espertos.
— Você vai falar sobre a nova droga? — Inquiriu uma segunda pessoa, a voz vagamente reconhecível: era o traficante da festa, aquele que eles vinham rastreando. — Sabe, ela vai atrair muita atenção, visto que pode... tornar os outros... bem, especiais.
Savannah arqueou as sobrancelhas, curiosa. Como assim "especiais"? Ela trocou um olhar breve com o Homem-Aranha — só então deu-se conta do quão próximos estavam. Talvez ele conseguisse sentir o seu coração disparado, porque ela certamente conseguia sentir o dele. Ambos estavam inquietos e ansiosos, e era meio que um alívio saber que ela não era a única a se sentir daquela maneira.
Ela voltou-se para o corredor, embora não tenha ousado olhar além do esconderijo.
— Ela é só uma ideia, garoto — retrucou a mulher. — Ainda nem saiu do papel.
— Exatamente por isso! Quanto mais investimentos tivermos, mais rápido ela poderá ser fabricada.
A dupla passou pelos heróis escondidos. A Major prendeu a respiração, como se ela por si só fosse denunciá-los. Ela segurou o bastão junto ao corpo, preparada para qualquer coisa, apesar de saber que, se fossem vistos, lutar ali seria impossível. Muito provavelmente não teriam chance de sair daquele espaço antes de serem alvejados por tiros.
— Eu disse que não. Hoje, vamos lidar somente com açúcar de fada, e talvez outras drogas menos importantes. Afinal, não queremos ninguém roubando os nossos projetos, não é? Nossa cientista-chefe já está ocupada o suficiente.
Os dois seguiram o seu caminho, as vozes ficando cada vez mais distantes até que Savannah não conseguisse mais escutá-las. Os vigilantes esperaram alguns segundos antes de esgueirarem-se para fora da alcova. Em seguida, refizeram os passos dos traficantes, o que levou-os até uma mureta. Havia uma pequena escada logo ao lado, esta que dava para o piso debaixo. A heroína não conseguia ver o outro andar, visto que, para isso, precisaria aproximar-se do guarda-corpo e seria vista se o fizesse. Ainda assim, ela conseguia identificar uma conversa baixa.
A compra já havia começado.
Ela e o Homem-Aranha se olharam. Um sinal de cabeça foi tudo que bastou: o rapaz saltou da mureta ao passo que Savannah disparava pela escada. Alguns gritos soaram, mas a Major mal os escutou. Seus olhos estavam presos no homem que muito provavelmente era o comprador. Ele estivera sentado à uma mesa, em frente à mulher que liderava a venda — agora ele estava de pé, a cadeira caída aos seus pés, tentando soltar a mão de uma teia.
Rapidamente, Savannah o alcançou, agarrou o braço dele e o empurrou contra as costas. O homem soltou um grito surpreso e, enquanto Savannah buscava nos bolsos as abraçadeiras de plástico que usava como algemas, ele falou:
— Eu sou da polícia!
Ela estava prestes a debochar quando reconheceu a voz.
Theo. Aquele homem era Theo.
Savannah estacou completamente onde estava. Choque tomou conta de seu rosto conforme ela congelava, confusa. Antes de invadir a negociação, ela não havia escutado sua voz, mas agora, cara a cara com ele, não havia sombra de dúvidas: era Theo. O melhor amigo de seu irmão, o homem que ela conhecia fazia anos. Ele era o comprador.
A adolescente não conseguia acreditar. O que aquilo significava? Que ele fazia parte de toda aquela corrupção? Que ele era uma das pessoas que ela estava tentando derrubar? Que ela estivera errada ao assumir que ele, justamente ele, era bom? Savannah sentia-se zonza.
Aproveitando sua distração, Theo livrou-se do aperto de Savannah. Ela cambaleou para trás, e então ouviu-o bradar:
— Agora!
No instante seguinte, uma equipe irrompeu pela porta da frente. Mal haviam adentrado o prédio quando a troca de tiros começou; a Major apenas teve tempo de lançar-se ao chão para não ser acertada. Os estampidos faziam seus ouvidos doerem, mas foram eles que a trouxeram de volta à realidade.
Ela e o Homem-Aranha, aparentemente, haviam se metido no meio de uma operação policial. E, considerando que agora ela via tiros de todos os lados perseguindo o parceiro, ninguém parecia muito feliz com aquilo.
Savannah ergueu-se em um pulo, tão logo acertando alguém com o seu bastão. Ela abriu caminho pelo fogo cruzado, usando mesas viradas como proteção contra a mira de bandidos e policiais e derrubando qualquer um que representasse uma ameaça para ela ou para o Homem-Aranha, o qual estava indo bem por si só.
De repente, uma bala atingiu as costas da vigilante e outra, a lateral de seu tronco. O colete barrou os projéteis, mas o impacto jogou Savannah no chão. Ela grunhiu com a dor e arrastou-se para trás de uma mesa tombada, tiros estalando no metal. Havia alguns pacotes espalhados ao seu redor; a jovem agarrou um deles e lançou por cima da barricada improvisada. Quando um disparo estourou o embrulho, ela aproveitou a distração para afastar-se o mais rápido possível.
Evans correu até o Homem-Aranha, que havia acabado de prender uma mulher à parede com suas teias.
— Isso vai sobrar para nós — ela falou assim que o alcançou.
De fato, a situação estava ficando sob o controle da força-tarefa. Havia algumas pessoas caídas no chão, mas Savannah não podia dizer quem havia sido derrubado por ela e pelo parceiro. Apenas sabia que, assim que a polícia dominasse o lugar, iria se voltar para eles. Não era prudente ficar ali.
O herói anuiu com a cabeça, e assim os dois dispararam para longe — no exato momento em que alguém gritou alguma coisa na direção deles. Savannah havia acabado de chegar ao topo da pequena escadaria quando os tiros recomeçaram, daquela vez propositalmente direcionados a eles. Ela estendeu a mão para o Homem-Aranha, que, após segurá-la, lançou uma teia no teto e içou-os para longe.
✶
Foi somente em casa, quando não havia mais adrenalina nem a tensão da luta percorrendo seu corpo, que Savannah se deu conta de que o assunto que Kyle dissera que precisava resolver era nada mais, nada menos que aquela venda falsa. Afinal, se Theo estivera participando dela, era muito provável que o irmão também estivesse.
Ela não conseguiu evitar ficar preocupada. Tendo visto em primeira mão como decorrera-se o confronto, era impossível não imaginar se o irmão fazia parte daquelas pessoas caídas no chão.
Pare com isso, disse a si mesma. É o trabalho dele. Além do mais, você nem sabe se ele realmente estava lá.
Aquilo não fez com que ela se sentisse melhor. Só para se tranquilizar, Savannah mandou uma mensagem para o irmão a fim de saber se ele estava bem.
Pelas próximas quatro horas, ela não obteve notícias.
Por quatro horas, Savannah tentou manter-se ocupada para afastar-se de suas preocupações. Tomou um banho quente e demorado. Cuidou dos hematomas que estavam surgindo em seu tronco devido ao impacto dos dois tiros que levara. Mandou mensagens para Lia, perguntando se havia chegado bem em Boston e contando como a venda havia sido apenas uma armadilha da polícia e que de nada adiantara — a única informação útil que conseguira lá eram aquelas novas supostas drogas que estavam idealizando, mas, fora isso, havia sido um desperdício total.
Em algum momento da noite, o cansaço a venceu, e, quando a jovem reparou, estava acordando com o barulho de uma porta batendo. Savannah, imersa na escuridão, apalpou o sofá em busca de seu celular. Quando o encontrou, precisou semicerrar os olhos diante da claridade repentina; o visor revelou o horário, dez horas, e algumas notificações. Havia algumas mensagens de Peter, embora nenhuma de Lia, o que significava que ainda estava na estrada, nem de Kyle. Provavelmente ele estava sem bateria.
Ou ferido, disse uma vozinha traiçoeira no fundo de sua mente.
Evans estava prestes a responder os recados do amigo quando reparou em algo se movendo no escuro. Alerta, ela levantou-se do sofá.
— Kyle? — chamou.
Ninguém respondeu.
Savannah ligou a lanterna do telefone, a qual iluminou uma figura na cozinha. Por um segundo, a heroína tomou um susto, porém isso até perceber que se tratava do irmão. Ela soltou um bufo e seguiu em sua direção.
— Por que você não res...
A frase morreu em sua garganta no momento em que ela acendeu a luz do cômodo. Havia sangue seco cobrindo as mãos, o rosto e as vestes do detetive.
O celular de Savannah escapou de seus dedos e ela correu até Kyle.
— O que aconteceu? — O seu coração trovejava no peito. — Que sangue todo é esse?
O chão parecia rodar sob os seus pés, a garganta fechou-se de repente. O detetive olhava somente para o balcão em que se apoiava, os olhos presos nas juntas ensanguentadas, e não respondia nenhum de seus inquéritos. Contudo, depois de examiná-lo com cuidado, a heroína percebeu que não havia nenhum machucado no irmão, só alguns arranhões. De quem quer que fosse aquele sangue, não era dele.
— Kyle — ela falou em um fio de voz.
— Theo — ele disse simplesmente.
Savannah havia considerado aquela hipótese. Ainda assim, foi como levar um murro no estômago.
Ela não sabia o que falar, então esperou o irmão prosseguir.
— Nós estávamos perseguindo uns traficantes de açúcar de fada — ele falou. — Eu dei a ideia de armar uma compra falsa para chegarmos até eles. Theo foi como o comprador enquanto uma equipe ficava do lado de fora esperando o sinal dele. — Kyle finalmente levantou o olhar para ela. — Atiraram nele.
Savannah balançou a cabeça, atônita, mais para si mesma do que para o irmão. Ela não havia visto aquilo. Não havia reparado. Do contrário, jamais teria ido embora.
— Ele... — ela se forçou a dizer.
— Já saiu da cirurgia e está sob observação no hospital agora — interrompeu-a. — Disseram que ele vai ficar bem.
Alívio além da compreensão inundou a jovem. Savannah deixou-se cair na cadeira mais próxima, ao contrário do irmão, que continuava apoiado no mármore, ainda tenso.
— Isso é bom, Ky, não é?
Mas Kyle negou.
— Você não entende, Savy. Foi por pouco. E a culpa é minha. — Ele disse, rouco. — Eu dei a ideia da operação. Eu escolhi a equipe a dedo, porque sei que não dá para confiar em qualquer um — o detetive soltou uma risada sem humor, o rosto agora contorcido de raiva. — E adivinha quem atirou nele, Savannah? Não foi nenhum dos traficantes. Foi um dos nossos. Simplesmente sacou a arma e deu dois tiros no Theo.
Havia um gosto amargo na boca da Major. Ela piscou, tentando organizar os pensamentos, vendo o quão pouco sentido aquilo fazia. Se havia sido um policial corrupto, por que havia parecido que os traficantes não sabiam que era uma emboscada? Ela imaginou que eles compartilhassem informações. E por que atirar justamente em Theo?
— A culpa não foi sua — foi o que ela murmurou após alguns segundos de silêncio.
Kyle, por fim, deu-se vencido pelo cansaço e largou-se no banco ao seu lado, as mãos ensanguentadas esfregando o rosto também manchado de vermelho.
— É, não totalmente — sua voz denunciava sua irritação. — Foi graças àqueles dois vigilantes. Se não tivessem interferido, não teria acontecido toda aquela bagunça. Theo não teria se preocupado com a fuga deles e não teria abaixado a guarda. Eu também estaria mais atento. — Ele bufou com escárnio. — Então, é, pode-se dizer que a Major e o Homem-Aranha são tão culpados quanto eu.
Teria doído menos levar um tapa.
Savannah encolheu-se perante às palavras. Ela queria se desculpar, queria se explicar, queria dizer que não fora a intenção dela. Só quisera ajudar. Todavia, no fim, não havia valido de nada. Aquele dia inteiro, um desperdício. Tinha pisado na bola com suas amigas, provocado um ferimento em Theodore... tudo por nada. Havia tantas desculpas que desejava pedir, mas não sabia como fazê-lo sem revelar a verdade.
— Sinto muito — sussurrou, porque era tudo que podia dizer. Seus olhos queimavam devido a lágrimas que lutavam para surgir. — Kyle, eu sinto muito.
— É, eu também.
✶
[14/10/2020]
oi, gente! tudo bem com vocês? há quanto tempo hein kk
perdão pela demora. não estava nos meus planos, mas não consegui terminar o cap antes........ não tá fácil pra ninguém aiai
enfim. espero que vocês tenham gostado do capítulo! eu particularmente amo a conversa que a savy e o kyle têm no início... aiai esse kyle gente
bem, até a próxima! beijos!
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