26. inner storm

QUANDO SAVANNAH ACORDOU naquela manhã de segunda-feira, encontrava-se exausta. A cabeça latejava, o corpo estava pesado e dolorido e o rosto, inchado. Sentindo-se péssima, ela somente encarou o teto do quarto por um bom tempo enquanto ponderava se deveria levantar ou ficar ali pelo resto da vida. A última opção era muito tentadora.

Estava sozinha. Kyle, que havia ficado com ela na madrugada até que conseguisse voltar a dormir, não se encontrava mais lá. Eram só ela e seus pensamentos, ela e seus sentimentos — um redemoinho de emoções que girava no interior dela de maneira caótica e sufocante.

A vigilante tinha vontade de enrolar-se no edredom e nunca mais sair da cama. Ela não sabia que horas eram, tampouco se importava. Ela não ligava se tinha classes às quais comparecer. Não queria ir para a escola, não queria ser obrigada a assistir a diversas aulas enquanto tudo que passava por sua cabeça eram lembranças dolorosas. Não queria ter que fingir estar bem. A menina não queria simplesmente sair de seu quarto, de sua casa, e pronto.

Ela só queria esquecer. Tudo sobre a noite passada, tudo sobre aquela noite de três anos atrás. Depois de tanto tempo, Savannah realmente acreditara que não teria mais ataques de pânico por causa daquilo. Ela até já conseguia entrar em carros, coisa contra a qual batalhou durante muito tempo depois do acidente. Mas, então, a noite anterior aconteceu, e somente pensar em entrar em qualquer automóvel bastava para deixá-la nervosa agora.

De fato, as coisas agora estavam uma merda.

Por um instante, Savannah realmente considerou voltar a dormir, só que seus olhos doíam. Não somente por ter passado a madrugada chorando, mas também porque ela não tirara as lentes de contato ao voltar de patrulha. Então, a simples tarefa de piscar incomodava sua vista.

Assim, a garota levantou-se da cama e, após gastar alguns segundos para tirar as lentes de contato — em frente ao espelho, Savannah constatou que parecia tão terrível quanto se sentia —, arrastou-se para fora do quarto. Andou feito um zumbi até a cozinha, onde encontrou Kyle. O homem mexia no fogão, no entanto, olhou por cima do ombro assim que escutou seus passos.

— Bom dia — falou.

Não tinha nada de bom naquele dia. Ainda assim, Savannah fez um esforço para replicar:

— Oi.

Ao escutar sua voz arranhada, o irmão lhe lançou um olhar de pena, o qual ela preferiu ignorar enquanto largava-se em um dos bancos que circundavam a ilha da cozinha. O mundo ao seu redor estava ligeiramente embaçado agora que ela não usava nem suas lentes nem seus óculos, de modo que a adolescente precisou fazer um certo esforço para enxergar o horário que o relógio digital na parede marcava; eram dez e quarenta da manhã, o que significava que Savannah já havia perdido uma boa parte das aulas matutinas. Que bom.

— Achei melhor deixar você descansar — Kyle comentou depois de reparar no que ela observava. A menina murmurou um agradecimento. — Aqui, fiz panquecas!

Logo que disse aquilo, o detetive virou-se para o fogão, de onde pegou um prato com uma torre de panquecas, e depositou-o em frente à irmã. Em seguida, despejou uma quantidade considerável de mel na comida, exatamente como Savannah gostava. Com outro agradecimento — e, dessa vez, a tentativa de um sorriso —, ela apanhou talheres e começou a comer.

— Como está se sentindo? — Kyle inquiriu.

Ela deu de ombros. Não sabia o que dizer. Não queria preocupar mais o irmão, então contar a verdade, tentar explicar os sentimentos que borbulhavam dentro dela, estava fora de questão. Também não desejava mentir, pois não achava que podia sustentar uma máscara naquele dia. Então, simplesmente não disse nada.

O homem, por outro lado, anuiu lentamente com a cabeça, como se compreendesse.

— Quer falar sobre o que sonhou?

— Não.

E o silêncio instalou-se na cozinha. Kyle, apoiado do outro lado do balcão, encarou Savannah por um bom tempo, observando-a como se ela pudesse quebrar com um simples movimento. A adolescente entendia a preocupação do irmão, entendia mesmo, mas a última coisa que queria era falar sobre aquilo, reviver o seu pesadelo e, consequentemente, as recordações do acidente.

Por fim, o detetive soltou um suspiro pesado.

— Savy, como eu posso ajudá-la se não sei nem o que aconteceu?

— Ky, eu não quero falar sobre isso. Foi só um sonho ruim. — Ela não encarou o irmão ao falar, somente brincou com as panquecas com o garfo. — Quero esquecer que aconteceu, tudo bem?

Kyle demorou alguns segundos para responder.

— Tudo bem. Mas eu estou aqui se você quiser conversar, ok?

— Eu sei — seus lábios repuxaram-se em um sorriso bem fraco. — Obrigada.

O irmão devolveu o sorriso antes de dar a volta no balcão para bagunçar seus cabelos já embaraçados.

Kyle, surpreendentemente, havia tirado o dia de folga do serviço para cuidar de Savannah. Ele cumpriu o combinado e não a questionou mais sobre o pesadelo nem o que poderia tê-lo provocado — entretanto, ficou ao lado dela pelo resto da tarde, dando-lhe apoio, o que era exatamente do que a menina precisava. Daquilo, e de distrações.

Assim, os dois jogaram-se no sofá após comerem e passaram o restante do dia vendo os filmes de Shrek, a franquia animada favorita de Savannah. Foi bom tirar aquele tempo para tentar espairecer e relaxar, ainda mais com o irmão. A agenda dos dois nunca parecia coincidir, de modo que quase não passavam mais um tempo juntos de verdade. Porém, naquela tarde foi diferente, o que alegrou um pouco a vigilante.

Claro, ela ainda se sentia pesada feito chumbo, com o peito ardendo devido a uma sensação incômoda. A angústia estava sempre à espreita; não importava se ela conseguisse se distrair, o sentimento conseguia retornar de qualquer maneira, esmorecendo toda e qualquer leveza que ela pudesse estar sentindo. A adolescente empurrava aquilo para baixo, ocupava-se em se concentrar no filme e na voz do irmão. Era tudo que podia fazer, afinal.

Foi somente por volta das quatro da tarde, quando haviam terminado de ver Shrek Terceiro, que decidiram por fim desligar a televisão. Kyle foi lavar a louça do almoço ao passo que Savannah subia para tomar um banho. Ela permitiu-se ficar um bom tempo debaixo do chuveiro, a água quente como uma bênção para o seu corpo dolorido, mas com os pensamentos a mil.

Ao finalmente sair do banho, não se sentia muito melhor do que antes. O silêncio no banheiro não lhe servira de nada que não piorar a situação. Mas ela respirou fundo; só precisava distrair-se de novo, afastar-se de tudo.

Savannah até conseguia imaginar o que sua antiga psicóloga diria se pudesse ouvi-la agora: que ela não deveria suprimir as emoções, que deveria confrontar as lembranças e conversar sobre elas. Bem, a Major odiava confrontar suas emoções a respeito do acidente. Fosse com a psicóloga, com Lia ou a mãe e o irmão, nunca era fácil conversar sobre aquilo.

Com um suspiro derrotado, a jovem, já vestida e de cabelos penteados, apanhou seus óculos e encaminhou-se para o andar debaixo, pronta para ver Shrek Para Sempre com Kyle. Entretanto, à medida que descia os degraus, começou a ouvir resmungos vindos do detetive.

— ...posso ir, não agora. Você acha que tem como esperar?

Ele fez uma pausa. Neste interim, Savannah alcançou a base da escada, de onde espiou o irmão na cozinha: ele estava de costas para ela mais uma vez, sua postura denunciava cansaço e tensão. Sua voz, por outro lado, estava carregada com ansiedade.

— Que inferno — bufou, passando a mão pelos cabelos. — Eu não posso deixar a Savy sozinha agora.

Escorada no corrimão, observando o irmão deixar seu trabalho de lado por conta dela, Savannah não pôde evitar sentir-se culpada. E, por mais que odiasse a ideia de ficar sozinha, por mais que quisesse passar mais tempo com Kyle, não desejava ser um estorvo para ele. Portanto, sem nem pestanejar, ela fez sua decisão.

— Vai lá, Ky.

O homem deu um sobressalto antes de virar-se e se deparar com a irmã. Pela expressão que tinha no rosto, era óbvio que não era para a adolescente estar ouvindo aquela conversa. Contudo, já era tarde demais, e ela logo se desencostou da pequena viga na base da escada a fim de se aproximar do irmão.

— Pode ir, é importante. Eu vou ficar bem. — Ela usou de todas as suas forças para abrir um sorriso. — Estou melhor. Juro.

Savannah estava errada, no final das contas. Ela conseguia sustentar uma máscara naquele dia.

Apesar de suas palavras, uma parte de Savannah não queria que Kyle fosse. Uma parte dela queria que ele descartasse o que tinha que fazer e fosse assistir a mais filmes com ela. Mas ela somente ignorou aqueles sentimentos egoísta e se focou em manter a expressão imperturbável. Ela não cedeu enquanto Kyle a observava bem — não permitiu que sua fachada desmoronasse nem por um minuto sequer. Doía ter que abrir um sorriso, mesmo que ínfimo, mas ela pareceu ser convincente o suficiente.

— Vou tentar não demorar muito — o detetive disse. — Por que você não chama a Lia para ficar aqui?

A garota acenou em concordância, ainda sem tirar o sorriso do rosto e sufocando a tristeza que veio daquela sua parte egoísta. Ela permaneceu daquele jeito até que Kyle saísse de casa, não muito tempo depois, para encontrar Theo e resolver o que quer que fosse preciso. Foi um alívio, assim, poder deixar os ombros caírem, não precisar mais fingir nada.

No meio tempo em que o homem se havia se aprontado para partir, Savannah por fim pegara o celular e viu as suas notificações. Havia dezenas de mensagens, mas ela só se havia se preocupado em responder aquelas que realmente importavam, como as de Amelia. Inclusive, uma delas questionava se a vigilante gostaria da companhia de seus amigos naquela tarde.

A jovem via o início de Shrek Para Sempre quando eles chegaram.

Savannah franziu o cenho quando escutou o tilintar de chaves por cima do áudio do filme. Virou-se bem a tempo de ver Lia irromper pela porta de entrada sem cerimônias, com Ned logo atrás. Com a incredulidade estampada no rosto — ela e Kyle não tinham mais uma chave reserva escondida na varanda, então como diabos Amelia havia entrado? —, ela pausou o filme e lançou um olhar significativo para a amiga.

Esta, ao vê-la, simplesmente disse:

— Acabei ficando com as suas chaves ontem.

Lia chacoalhou-as com um pequeno sorriso antes de trancar a porta atrás de si. Em seguida, ela, guiando o namorado pela mão, encaminhou-se até a sala. Savannah recolheu os pés no sofá para abrir espaço para os amigos se sentarem, e observou Amelia e Ned depositarem o molho de chaves e uma sacola na mesa de centro, respectivamente.

— Você tá melhor? — Leeds inquiriu enquanto se sentava ao seu lado.

Savannah comprimiu os lábios — não estava certa do que sua amiga havia dito aos meninos quando questionaram o motivo da falta dela, mas respondeu mesmo assim.

— Hm... mais ou menos. — Não era mentira completa.

— Ah, que ótimo! Cólicas são péssimas! — Lia exclamou, e aí piscou um olho para a Evans. Esta, por sua vez, entendeu rapidamente o truque da amiga, por isso meneou a cabeça. — Ah, bem, a gente trouxe uns lanches da Padaria do Delmar!

Conforme se sentava do outro lado de Savannah, ela apontou para a sacola que Ned havia deixado em cima da mesa.

— Foi ideia do Peter — o rapaz contou. — Aliás, ele disse que vai tentar vir para cá depois do estágio.

Ali, diante de seus amigos, era quase como se a heroína pudesse sentir o coração esquentar. Do mesmo modo como sentiu-se grata por Kyle ter tirado o dia para ficar com ela, sentiu-se igualmente contente por Ned e Lia terem ido ali animá-la e por Peter ter se lembrado do quanto ela gostara do lanche do Delmar.

— Obrigada — ela esticou os braços, puxando os dois para um abraço de lado. Quando se afastou, limpou a garganta. — Podem ficar à vontade, vou pegar um refrigerante para a gente.

— Vou com você — Lia anunciou rapidamente.

As duas não demoraram para se distanciarem até a cozinha; Ned — para quem o aviso de "ficar à vontade" fora direcionado, pois, verdade fosse dita, Amelia estava tão bem familiarizada com aquela casa quanto a própria Savannah — recostou-se no sofá. Aproveitando que ele começava a mexer no celular, as garotas começaram a cochichar entre si:

— Eu disse para os meninos que você faltou porque estava com muita cólica, achei que você não fosse querer falar sobre... — vendo que Savannah concordava com a cabeça, ela deixou a frase morrer aos poucos. Aí, colocou a mão no braço da menina e olhou bem em seus olhos. — Como você está?

A Major pensou em como poderia se esquivar da pergunta. Diferentemente de Kyle, Amelia tinha uma visão ampla do tabuleiro: não só sabia sobre o acidente, como tinha conhecimento do que desencadeara a sua crise de pânico. Além do mais, ela conhecia a amiga bem o suficiente para saber quando mentia.

Ao Savannah demorar para responder, Lia mordeu os lábios em arrependimento.

— Me desculpa, Savy...

Não foi sua culpa. — Cortou mais do que imediatamente. A simples ideia de sua parceira considerar que o que acontecera fora por conta dela era inaceitável.

— Foi sim. Eu devia ter sabido que você ficaria mal. Eu...

— Você fez o que pôde para me ajudar. Eu queria seguir aquela van...

Ela interrompeu-se de repente. Pela primeira vez desde a noite anterior, a menina pensou no furgão que estiveram seguindo. E em como ela havia deixado que fugisse. Ela estivera tão ocupada com suas recordações que mal lembrara dos criminosos, muito menos da chance de ir até a base que tinha deixado escapar.

Savannah descobriu que não estava cansada demais para ligar para qualquer outra coisa. De repente, havia um novo peso em seus ombros, puxando-a para baixo junto com todo o resto.

Suprima isso, sibilou a si mesma.

Ela deu o seu melhor para obedecer. Pigarreou e, antes que Lia pudesse descobrir o que aquele momento de distração significava, mudou de assunto.

— Como eu cheguei em casa?

Amelia piscou, como se não esperasse a pergunta. Em seguida, ela afastou-se um pouco, escorando-se no balcão.

— Eu levei você a pé. Depois, voltei para buscar meu carro. — Ela abriu um pequeno sorriso ao ver os olhos arregalados de Savannah. — Não surte. Eu tinha um guarda-chuva no porta-malas, e estávamos perto da sua casa, não demorou nem dez minutos.

Por isso ela estava com as suas chaves, Savannah deduziu. Porque havia se aventurado pelas ruas chuvosas e escuras do Queens, tudo apenas para levá-la para casa. As jovens encararam-se por um instante, quietas, mas com tantas coisas não ditas.

E, então, Evans tomou a mão da outra para puxá-la para um abraço; ela apertou a amiga, contendo-se ao máximo para não chorar, tal qual vinha fazendo o dia todo.

— Você não deveria ter se arriscado desse jeito. — Murmurou, a voz embargada.

— De que outra maneira eu levaria você para casa? Colocá-la de volta no carro estava fora de questão. — Replicou, apertando-a de volta. — Você teria feito o mesmo por mim.

Sim, Savannah teria. Apenas podia ser grata pelo fato de Lia nunca ter estado em perigo, mas o Universo sabia que a heroína faria de tudo por sua companheira. Amelia era uma amiga incrível que já colocava tanto em jogo por ela... A Major não sabia como um dia poderia agradecer por todas as coisas nas quais a ajudava.

— Obrigada — disse. — Por tudo, Lia.

Antes que a jovem pudesse responder, a risada de Ned ecoou pelo ambiente, despertando-as. Assim, elas separaram-se para pegar os refrescos. E Savannah, por mais contente que estivesse por ter os amigos ali para distraí-la, ainda precisou empurrar o furacão de sentimentos para dentro de si.

Respirou fundo. Depois da tempestade, vem a calmaria, lembrou a si mesma. Mas quanto tempo aquela tempestade iria durar?

Peter foi tão rápido quanto seus lançadores de teias lhe permitiram. Abaixo dele, a cidade não passava de um borrão enquanto ele se balançava rumo à casa de Savannah Evans. Àquela altura, depois de ir e voltar de lá tantas vezes por conta das aulas de Química que vinha dando à amiga, ele já estava até familiarizado com o caminho.

Naquele dia, o rapaz não havia saído em vigília; depois da escola, na verdade, ele fora até a Torre dos Vingadores conversar com o Sr. Stark. Eles não haviam se visto desde o sábado anterior, quando o Homem-Aranha saíra correndo para encontrar Savannah, e portanto Peter não tinha colocado o mentor a par de tudo que havia acontecido até então. Ele estivera ocupado com as aulas de Química, a própria escola e as patrulhas, e aquele era o único dia em que Tony estava disponível. Assim, unindo o útil ao agradável, eles combinaram de se encontrarem.

Ainda era um pouco estranho — mas de uma maneira boa — para o rapaz. Ele fora discutir assuntos de herói com o Homem de Ferro. O quão surreal aquilo era? Sr. Stark vinha se tornando uma figura cada vez mais importante na vida de Parker, e aquilo ia além do que ele já havia imaginado.

Bem, de qualquer maneira, a reunião havia acabado, e agora ele se encontrava indo visitar Savannah, que havia passado mal na manhã e por isso não fora para escola. Peter até mesmo comprara um pacote de chocolate para ela no caminho; o rapaz adorava comer doces para se sentir melhor, e talvez fosse ajudá-la também.

O vigilante, segurando o tablete de chocolate com mais força entre os dedos, somente para garantir que ele não fosse cair em algum cidadão alheio lá embaixo, não pôde deixar de pensar no quão rápido as coisas podiam mudar. Até um mês atrás, ele e Savy só haviam se falado para comentar algo sobre lições na sala de aula. Hoje em dia, porém, eles sentavam-se juntos nos almoços e nas classes que tinham em comum, além de se acompanharem algumas vezes para casa. Era curioso como uma pessoa podia passar a se importar com outra tão de repente.

Por fim, Peter aterrissou um quarteirão antes da residência dos Evans. Depois de se certificar de que não havia nenhum olhar curioso por perto, ele retirou a máscara do rosto, enfiou-a no bolso interno do casaco e pôs-se a andar. Poucos minutos decorreram-se até ele estar subindo os degraus para varanda da casa de sua amiga. Antes, todavia, que ele pudesse tocar a campainha, alguém falou:

— Não faz isso.

O herói tomou um pequeno susto com as palavras subitamente proferidas na quietude. Mas ele reconheceu a voz de imediato — ao olhar para o lado, deparou-se Savannah sentada na extremidade da varanda. Ela, encolhida contra um banco, tinha uma manta cobrindo as pernas e óculos emoldurando o rosto.

Peter piscou. Embora soubesse que a garota tinha miopia, ela sempre estava de lentes de contato. Ele nunca a tinha visto usando óculos... e por que diabos estava reparando naquilo?

— Ned e Lia caíram no sono enquanto víamos um filme — Savannah prosseguiu diante de sua confusão. — Não quero acordá-los.

Parker meneou a cabeça, aproximando-se a passos lentos, os olhos presos nela, e ela com os olhos presos nele. Era impressão dele ou a jovem parecia amuada? Bem, ela está com dor, gênio, claro que vai estar para baixo.

— O que você tá fazendo aqui fora?

Savannah deu de ombros e revelou de maneira sucinta:

— Precisava de ar.

— Bem... — O rapaz apoiou-se na mureta de madeira no limite da varanda, que rangeu sob seu peso. Ele afastou-se com um pulo, uma careta tomando conta do resto. Ele voltou-se para a amiga, que havia aberto um pequeno sorriso diante de sua reação, e pigarreou. — Quer companhia?

Savy demorou alguns segundos antes de anuir. Peter logo afundou ao seu lado no banco acolchoado, e a garota jogou por cima das pernas dele a manta com a qual se cobria. Agora, protegido contra a brisa fria daquele fim de tarde, ele lhe estendeu o doce que tinha em mão.

— O que é? — ela murmurou com curiosidade.

— Chocolate — respondeu, não conseguindo deixar de reparar no quão bem ela ficava com as armações na face.

Savannah agradeceu enquanto aceitava o pacote, mas Peter quase não ouviu de tão concentrado que estava no rosto dela.

Evans franziu as sobrancelhas ao perceber que estava sendo encarada.

— O que foi?

— Hm? — Peter piscou, e então ruborizou. — É que é estranho vê-la de óculos. Quer dizer, estranho porque não estou acostumado. Não porque você fica estranha com eles... Porque não fica. Você fica bem. Eu... gostei.

O menino quis se dar um soco. Dava para ser mais desajeitado?

Mas amiga somente levou uma das mãos à armação e sorriu de leve.

Mais uma vez, o Homem-Aranha notou o quanto ela parecia... apagada. Ele havia se acostumado com uma Savannah zombeteira e cheia de piscadelas; Peter já havia dado mil motivos para ser provocado, e ela deixou todas as oportunidades passarem. Talvez ele estivesse equivocado, mas alguma coisa não parecia certa — e algo lhe dizia que o motivo daquilo não era dor.

— Você está bem?

— Sim — a garota replicou rapidamente, e foi assim que Peter soube que ela não estava bem. Ela pareceu perceber por seu olhar, e então suspirou. — Não. Não sei. Sei lá.

Agora, a adolescente evitava olhá-lo. O vigilante, por sua vez, não disse nada; não queria pressioná-la. Ele somente observou-a alisar a manta em seu colo nervosamente.

Enfim, ela suspirou.

— Sabe quando uma coisa acontece e você não consegue parar de pensar nela? — Savannah ergueu o olhar para o dele. Azul chocou-se contra castanho, e era quase como se ele pudesse ver uma tempestade através dos olhos dela. A menina prosseguiu, seu tom aumentando e tornando-se cada vez mais dolorido a cada palavra. — Você só quer esquecer, mas ela continua martelando na cabeça, deixando-o cada vez pior e você simplesmente não consegue deixar de lado!

Assim que terminou, ela respirou fundo, como se lutasse contra uma torrente de sentimentos dentro de si. Peter não duvidava que fosse o caso; ele conhecia bem aquela sensação para entender um pouco do que se passava na cabeça dela. Depois de tantas coisas que viu e passou, era impossível às vezes não se sentir daquele jeito.

— O que você quer esquecer? — questionou, a voz baixa.

Savannah encarou-o por um bom tempo, quieta. Era claro que ponderava se deveria se abrir ou manter seus pensamentos para si. Peter não a forçaria a falar nada que não quisesse, mas, por experiência própria, sabia que calar-se nem sempre era a melhor opção, e não duvidava que a amiga soubesse daquilo também. Guardar tantas coisas poderia, eventualmente, criar rachaduras.

Vacilante, Savannah começou:

— Três anos atrás, eu e o meu pai estávamos voltando para casa de carro — sua voz não passava de um sussurro. Pela expressão de dor no rosto dela, pela tristeza em seu tom, ele soube o que viria a seguir. — Quando viramos em uma esquina, um carro veio de encontro ao nosso. Ele era roubado. O bandido estava em uma perseguição com a polícia e tentou pegar um atalho na contramão, mas... — Lágrimas formaram-se em seus olhos, e ela continuou com dificuldade. — Quando a ajuda chegou, meu pai e o ladrão já...

Savannah interrompeu-se, parecendo incapaz de completar aquela frase, de reconhecer o peso dela. Ela fechou os olhos por um breve momento, e as lágrimas escorreram por suas bochechas. Parker sentiu o peito pesar com a história.

— Você foi a única sobrevivente.

Ela anuiu. Quando tornou a falar, a voz estava embargada, sem fôlego até. Ela claramente fazia um grande esforço para não chorar ainda mais.

— É daí que vem a minha cicatriz. — Na hora, Peter recordou-se da marca tinha visto decorar o seu abdômen durante o jogo de dez dias antes. Ele sentiu o coração apertar somente de imaginar o quão machucada ela havia saído do acidente. — E ontem... eu só conseguia pensar nisso. Só nisso. E agora também. Eu tentei ignorar, mas essas recordações, essa sensação horrível, simplesmente não vão embora. E eu estou cansada de fingir que estou bem quando na verdade eu só queria explodir.

Uma respiração trêmula escapou dos lábios de Savannah, mais lágrimas silenciosas escaparam por entre seus cílios. Peter realmente não sabia o que fazer, muito menos o que falar — como poderia confortá-la?

Ele somente passou o braço em volta do ombro dela; aquilo, um convite para um abraço, era tudo que podia oferecer. A garota, em resposta, aproximou-se e se aconchegou nele, a cabeça apoiada em seu ombro enquanto ele fazia leves círculos em suas costas.

O que está acontecendo, o que está acontecendo, o que está acontecendo?

Peter manteve-se impassível, dando o consolo que sua amiga precisava naquela hora.

— Sinto muito... por tudo. Você não merecia nada disso — o rapaz conseguiu dizer. — Sei que é difícil se abrir, mas, às vezes, desabafar é melhor do que empurrar tudo para baixo, não é?

Savannah fungou.

— Você parece o Kyle falando — ela bufou. — Mas sei que vocês estão certos.

— Meu Deus, você admitindo estar errada? — a frase estava encharcada de uma falsa surpresa.

Evans solto uma pequena risada rouca. Então, eles mergulharam no silêncio, ainda apoiados um no outro, olhando para a rua calma a poucos metros de distância.

— Obrigada — Savy soltou depois de alguns minutos na quietude. — Por me escutar.

Peter acenou com a cabeça em resposta. Então, meio hesitante, tomou fôlego para começar a falar — ele não sabia exatamente o porquê, mas talvez a menina ter compartilhado algo tão pessoal o instigou a fazer o mesmo.

— No ano passado, o meu tio Ben, o homem que me criou... ele foi morto em um assalto, e eu não pude fazer nada para ajudar. — A lembrança ardeu em sua cabeça feito ferro quente, tão dolorosa que o ar faltou-lhe por um momento. Foi apenas após alguns segundos que prosseguiu. — Eu entendo como você se sente. Então, se precisar conversar com alguém sobre isso, pode vir falar comigo.

Parker sentiu a cabeça de Savannah, ainda recostada no corpo dele, erguer-se ligeiramente. Ele lançou um olhar para baixo, e se encontrou sendo mirado. Mesmo que óculos dela estivessem embaçados devido às lágrimas que ainda marcavam a sua face, era possível saber que ela lhe lançava um olhar significativo.

— Sinto muito, Pete, de verdade. Você também não merecia nada disso — foi o que ela disse. — Pode falar comigo também, se quiser.

O herói anuiu, grato. Uma onda de calor espalhou-se pelo peito dele, apesar de toda a dor das recordações e seriedade do momento. Ele somente a olhou por alguns segundos, o coração parecendo acelerar um pouco.

De repente, ele sentiu os dedos dela apertarem os dele, como se conferindo-lhe apoio também. Porém, tão rapidamente quanto havia começado, o contato chegou ao fim, e a garota recolheu a mão. Mas ela não desencostou-se dele, e ele também não pediu que o fizesse.

Os sentidos de Peter pareciam a mil — o barulho de Savannah abrindo a barra de chocolate pareceu muito mais alto do que era de fato. Mas ele fingiu normalidade enquanto a observava quebrar dois gomos do tablete e lhe oferecer um deles. O rapaz aceitou, ainda com uma mesma pergunta martelando na mente sem parar.

O que está acontecendo, o que está acontecendo, o que está acontecendo?

[26/03/2020]

oi, gente, tudo bem com vocês?

confesso que travei mto nesse capítulo, mas até que gostei do resultado final. tomara que tenha ficado bom né jejenejsnsj

enfim.

espero que vocês tenham gostado! não se esqueçam de lavar bem as mãos e tomar muito cuidado, ok??? fiquem a salvo, gente, e fiquem bem!

beijos!

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