Sufocados
Piiii! Piiiii! Piiii! Esse é o barulho do monitor, que apita alto, indicando que algo definitivamente não está bem. Estou correndo em um corredor branco vazio, indo na direção do som estridente, com medo de olhar para trás e ver a criatura me perseguindo.
Não posso parar, se eu parar, ela vai me pegar. Mas aí eu paro, cansada, suada e com a respiração ofegante, olho para trás, ela está se aproximando. Não! Não quero ser pega! Preciso sobreviver! Ando mais um pouco, um passo de cada vez, devagar, quase parando. Não tenho forças para correr.
Consegui chegar numa sala tão branca quanto o corredor, e quase vazia, exceto por uma pequena menina deitada numa maca, conectada por tubos e um monitor do lado. A menina dorme tranquilamente, mesmo com o som do monitor. Sua pele está pálida, parece que não vê o sol há meses, tem cabelos loiros ondulados um pouco abaixo dos ombros, está vestida com uma camisola leve.
Não! Não pode ser ela!
Olho para uma pulseira de identificação em seu pulso para conferir se realmente é quem eu penso que é. "Letícia Oliveira Rocha". É ela!
Caio no chão, assustada. Minha irmãzinha está ali, e pelo que o monitor indica, não está nada bem. Me encolho, em posição fetal, e com os braços segurando minhas pernas deixo as lágrimas caírem.
Até que ouço algo. Na verdade, não ouço nada. O apito parou e tudo o que resta agora é o completo silêncio. Levanto do chão.
A criatura havia chegado à sala, e tinha retirado os tubos que estavam conectados ao corpo de Letícia. Não tem como escapar dessa criatura, eu já tentei muitas vezes, mas ela me segue.
Qual é o nome da criatura que tanto me atormenta?
Seu nome é morte.
Sinto uma sensação de sufocamento, meus joelhos se dobram, e eu caio no chão sem ar. Meus olhos se fecham aos poucos, logo vejo apenas a escuridão.
— Melissa! Acorde, daqui a dez minutos precisamos de você na UTI pediátrica — Acordei um pouco assustada, Fernando estava me chamando.
Para o meu alívio, tudo aquilo tinha sido apenas um pesadelo. Imediatamente me levanto da cadeira. Como assim, só tenho dez minutos? Não posso ter ficado tanto tempo dormindo!
Nossa, que dor nas costas estou sentindo. Havia dormido numa cadeira desconfortável, por isso começo a me alongar, mas Fernando continuava me encarando e esse olhar me deixa tímida.
— Ah, sim. Já estou indo, desculpe se dormi demais, me desculpe mesmo! Prometo ser mais responsável na próxima, é sério — respondo, agitada.
Ai, meu deus! Ele não vai gostar se eu continuar fazendo isso, que vergonha! Bem que eu poderia ter programado meu celular para tocar um alarme e acordar na hora certa, agora ele deve estar pensando que sou uma irresponsável. Se acalme, Melissa! Você está parecendo uma adolescente dramática, lembre-se que é uma mulher e não precisa querer agradar todo mundo. Você não será demitida por algo tão pequeno, então não tem necessidade de surtar.
Sim, eu tenho a estranha mania de falar em pensamento comigo mesma. Acho que todo mundo conversa consigo mesmo em alguns momentos, principalmente naquelas situações de nervosismo. Mas eu faço isso com bastante frequência, tanta que chega a ser uma compulsão.
Ouço uma risada. Fernando está rindo? Como assim? Quando terminou de rir, ele disse:
— Melissa, você é a enfermeira mais responsável que conheço. Parece até piada prometer pra mim que terá mais responsabilidade na próxima.
Parece que surtei sem motivo, fico aliviada que ele me ache responsável. Agora chega de conversa, precisam de mim na UTI pediátrica e não tenho muito tempo.
Vou ao banheiro, retiro a máscara, a touca e a luva, jogando essas coisas na lixeira em que está escrito "resíduos hospitalares". Me pergunto como consegui dormir utilizando tudo isso, lavo o rosto e observo meu reflexo no espelho. Queria que essa imagem fosse uma distorção, e não a realidade.
Olheiras escuras se destacam em minha face branca, meus olhos estão vermelhos, tenho marcas na testa e na região do nariz e bochecha. As máscaras modelo N95 apertam bastante, e ao utilizar por muito tempo junto com touca e protetor facial, deixam essas marcas. Meus cabelos castanhos claros estão presos num coque, e com certeza estão embaraçados após dias sem lavar. As mãos estão suadas e grudentas por conta das luvas de látex. Estou num péssimo estado, faz dois dias que não volto para casa e tenho dormido por poucas horas numa cadeira do hospital. Me sinto horrível.
Saio do banheiro, pego uma nova máscara, touca e luvas na recepção, colocando em mim mesma, também passo álcool no protetor facial. Não posso utilizar os mesmos equipamentos por muito tempo, tenho que descartar no lugar certo, trocar ou higienizar para evitar a contaminação. Antes as coisas eram muito mais fáceis e simples, mas desde que o Covid 19 apareceu, as medidas sanitárias do hospital ficaram bem rígidas.
Será que dá tempo de comer antes de ir para a UTI pediátrica? Olho a hora em um relógio de parede, percebo que tenho cinco minutos, é pouco tempo. Em um canto da recepção tem uma mesa com um pote de bolachas, pego algumas e começo a comer rapidamente.
Novamente dou uma olhada no relógio, já deu a hora. Me apresso, andando na direção de um corredor, depois viro à direita e entro por uma sala de porta dupla. Cheguei em cima da hora, mas pelo menos não atrasei.
Quase todos os leitos daquele quarto estão ocupados, tem apenas um leito vazio lá no fundo, do lado da janela. O paciente que irá ocupar o último leito chegou, deitado numa maca, sendo empurrado por um técnico em enfermagem. Uma enfermeira estava do lado, arrastando um suporte com algum medicamento que estava sendo aplicado por uma agulha em seu braço direito.
A enfermeira disse, olhando para mim:
— Esse é Yan, ele tem oito anos de idade, fizemos o teste, deu positivo para Covid. Segundo sua mãe, estava tossindo muito, com pouco apetite, febre e cansaço. Poderia cuidar dele? Tenho que fazer outro atendimento agora.
Confirmei com a cabeça, não recusaria um serviço. A enfermeira foi embora rapidamente, o técnico em enfermagem transfere o novo paciente da maca para o leito, e logo sai dali. Entram outros profissionais e começam os cuidados com as outras crianças.
Observo a janela com suas persianas brancas, depois desvio o olhar na direção de cada paciente, suspiro e inicio uma reflexão solitária em minha mente. Mais uma criança entre tantas outras dessa UTI. Doze leitos, seis de um lado e seis do outro, todos ocupados. Se estivessem acordadas, teríamos praticamente uma classe de pré-escola agitada e alegre. Quantas crianças no mundo estão sofrendo por essa doença? Devem ter milhares, e pelos pensamentos da sociedade até parece que são completamente imunes ao vírus.
Lembro de quando fui ao supermercado fazer compras, e tinha uma criança dentro do carrinho, sem máscara, enquanto a mãe escolhia um produto na seção de frios. Me entristeci, talvez porque a criança parecia ter uns quatro anos, e ainda não tinha consciência do que estava acontecendo, ela era inocente, a culpa não era dela por não se proteger.
É dever da mãe proteger, mas ela também não é culpada porque ninguém tem informação sobre tudo, é difícil separar a verdade da mentira, e a mídia pouco divulga sobre as crianças afetadas. Será que a culpa é da mídia? Esse vírus se espalhou pelo mundo todo em um tempo de poucos meses, ele é novo, praticamente desconhecido, e muitas coisas ainda estão sendo pesquisadas. A mídia não é onisciente, não sabe tudo e não pode informar aquilo que não tem conhecimento. Então de quem é a culpa? As pessoas estão morrendo todos os dias, pais perdem seus filhos, filhos perdem seus pais, corações são partidos, e lágrimas são derramadas.
O culpado é invisível aos nossos olhos, alguns percebem tarde demais sua presença, porque ele se fantasia de gripe, nos engana, sufoca, e nos arrasta rapidamente em direção ao abismo do desespero e da morte.
Quando todos mais precisam se unir contra o verdadeiro culpado, que é esse vírus, o mundo decide se dividir em ideologia, política e religião. Ah, debates cada vez mais divergentes que acabam levando a discussões, discussões que posteriormente levam a protestos, protestos que logo se transformam em aglomerações, e aglomerações que são o tipo de cenário perfeito para esse terrível atormentador.
Pena que no final de tudo isso, perdemos parte de nosso futuro, pois as crianças são o futuro da humanidade.
Paro de ficar divagando, o meu trabalho é importante, tenho que cumprir minha obrigação, e pensar demais nesse assunto não vai ajudar em nada. Vejo como está Yan.
O garotinho abre seus olhos lentamente, olha para a agulha em seu braço esquerdo, depois para o tubo transparente que conduzia gota por gota do medicamento, até que finalmente olha para mim. Seus olhos me amedrontam.
São olhos de um verde profundo, cheios de vida, com uma cor que lembra a grama bem cortada do parque, as copas das árvores e o musgo que cresce nas raízes e troncos, lindos e brilhantes olhos. Mas me causam medo. Seus olhos são exatamente iguais aos de Letícia. É como se ele tivesse pegado os olhos da minha irmã e colocado em si mesmo.
Ele se mexe um pouco no leito, e eu vejo algo embaixo de seu lençol. Asas? Devo estar vendo coisas, é só uma ilusão.
— Eu...difícil...respirar. Tô...sufocado — Yan sussurrou, numa voz rouca, e com pausas por conta da respiração ofegante.
Você não viu asas, é impossível um menino ter asas! E não olhe para os olhos dele, Melissa! Não pense em Letícia! Faça seu trabalho. Comecei a discutir comigo mesma em minha mente, sabia que havia ficado nervosa. Consigo dizer com muito esforço para o garotinho:
— Vai ficar tudo bem.
Talvez essa tenha sido uma das frases mais difíceis que eu já disse na vida, porque depois que eu falei, meu estômago começou a revirar, surgiu um nó em minha garganta, e uma sensação de sufocamento.
Saí da UTI para pegar sedativos, mas no caminho lembrei daqueles olhos. Me sinto ainda mais sufocada, minha visão começa a embaçar, lágrimas saem dos meus olhos, e eu decidi me sentar no chão. Talvez se eu sentar e respirar fundo, consiga sentir um pouco de calma.
Começo a relembrar, escapar da realidade, logo não estou mais sentada no chão gélido de um hospital muito branco. Estou em um parque, empurrando um balanço.
Letícia está ali, se divertindo, gritando de alegria e dizendo:
— Mais alto, Mel! Mais alto! Acho que vou voar e alcançar as nuvens do céu!
Eu estou rindo, como é divertido brincar com minha irmãzinha.
Mas aí as coisas mudam e de repente ficam estranhas, as lembranças foram alteradas, parecem quase um delírio. Estou ficando louca? Asas surgem nas costas dela, e ela começa a voar literalmente. Seus olhos verdes me encaram, suas expressões são de tristeza, e voando bem acima de minha cabeça, ela diz:
— Todas as crianças são anjos, não se esqueça disso, Melissa. Alguns são iguais a mim, anjinhos atormentados que sofrem, são sufocados e logo vão embora. Outras crianças são anjos cheios de luz, alegres e agitados. Você tem o dever de salvar e proteger todos esses anjinhos, assim como tentou cuidar de mim.
Letícia vai embora, e eu sei que ela nunca mais retornará, porque está morta. Fiquei sozinha no parque, chorando.
A criatura chamada morte surge do meu lado, a sensação de sufocamento vem, e depois não vejo mais nada.
— Melissa! Acorde! — ouço uma voz me chamar.
Abri os olhos, parece que voltei para a realidade. Sentada no chão de um hospital, o rosto úmido por conta das lágrimas derramadas, e Fernando ali do lado.
— Você está bem? Estava dormindo, e chorando ao mesmo tempo. Posso chamar a psicóloga do hospital se quiser — ele parece estar muito preocupado comigo.
Respiro fundo e tomo a decisão de dizer a verdade:
— Não, eu não estou bem. Perdi minha irmãzinha Letícia, não consegui salvá-la, isso aconteceu há quase um ano. Achei que tinha superado, mas agora durante essa pandemia, com tantas pessoas morrendo, os pesadelos retornaram. E aquele garoto na UTI...aquele menino...
Não consegui terminar minha fala, porque de repente tive uma crise de choro. Preciso de um abraço cheio de consolo, mas isso não é possível ser realizado, arriscado demais, o medo da contaminação me leva a fugir de qualquer tipo de contato próximo.
— Eu entendo. Aquele garoto, ele tem asas, não tem? Vi elas também.
Fiquei surpresa. Então não era uma ilusão? Fernando havia visto. Olhei para ele e perguntei:
— Mais alguém viu isso?
— Você observou bem todas aquelas crianças? Todas têm asas, todas são anjinhos atormentados que logo serão sufocadas de vez pela morte se não fizermos alguma coisa. Ah, e eu acho que apenas nós dois vemos, perdi um sobrinho, e você perdeu sua irmã, talvez isso faça a gente ver essas coisas.
Tínhamos coisas em comum, e isso fazia com que eu não me achasse louca em dizer cada coisa que estou sentindo, fiz mais perguntas:
— Também tem tido pesadelos?
— Eu não vejo bem como se fossem pesadelos. Eles são mais avisos realistas, do tipo "Faça alguma coisa, ajude essas crianças, derrote a morte. Se ficar parado, o vírus e a morte vencem". Entende? Temos que nos levantar e fazer nossa parte, porque senão o futuro da humanidade falecerá.
Nossa, como ele vê isso de um ponto de vista incrível. Enquanto eu sou sufocada pelo medo, e fico encolhida no canto chorando, Fernando é fortalecido e trabalha ainda mais arduamente, tentando libertar esses anjinhos atormentados dessa prisão de tubos. Ao mesmo tempo em que somos muito parecidos, também temos diferenças enormes.
Eu sorri por trás da máscara, um sorriso que permaneceu escondido, porque agora as emoções precisam ser faladas e não vistas. Fiquei em pé, olhei para ele e falei:
— Obrigada.
— Pelo quê? — ele perguntou.
— Por abrir meus olhos e me fazer enxergar do modo que você vê, por me ajudar, por me fortalecer. Tenho um trabalho importante e não devo desistir.
Por impulso lhe dei um abraço, mas logo me afastei. O que você fez, Melissa? Não pode sair abraçando pessoas, esqueceu?
Ele afastou um pouco mais, até ficar a uma distância segura, retirou a máscara e sorriu para mim. Seu rosto estava com as mesmas marcas que o meu, marcas de batalha por uma luta real contra um inimigo que mesmo sendo invisível, é real.
Com aquele sorriso que fez meu coração acelerar, ele disse:
— Agora vá salvar aqueles anjinhos, eles irão sobreviver, tenho certeza. Não deixe o medo te sufocar, Melissa.
Nunca mais serei sufocada pelo medo, não com você ao meu lado, pensei.
Peguei os sedativos e fui cuidar de Yan.
Agora eu estava respirando perfeitamente bem, e logo aqueles anjinhos também iriam conseguir respirar.
Ah, Melissa. Lembre-se, guarde na memória o que Fernando disse. Não deixe o medo te sufocar. Falei para mim mesma, disposta a obedecer, ser forte e vencer a morte.
Não consegui salvar Letícia, mas tinha esperanças de que conseguiria libertar cada anjinho daquela UTI, só precisava fazer uma coisa para conseguir isso.
Não ser sufocada.
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