32. Mystery Of Love//Fears

"Hold your hands upon my head
Till I breathe my last breath"
— Mystery Of Love; Sufjan Stevens.

Carter

Chequei pela milionésima vez os bolsos da mochila, eu queria ter certeza de que não estava esquecendo nada para trás. Eu sabia que minha cabeça de vento podia ser um tanto traiçoeira, não foram poucas as vezes em que fui viajar e acabei me esquecendo de levar alguma coisa importante, como a escova de dentes ou roupas de baixo, também não foram poucas as vezes em que eu perdi ou esqueci de guardar algum item e voltei para casa com camisetas faltando, meias sem pares e fones de ouvido que não eram os meus.

Todo acampamento em família era sinônimo de chinelos novos para mim, assim como todas as vezes em que eu ia dormir na casa do Ethan um pacote de escovas de dentes era aberto só porque eu tinha esquecido de levar a minha, isso até a tia Liz colocar uma escova de dentes com o meu nome no banheiro do quarto do Ethan.

Mas, daquela vez, por mais que eu estivesse checando tudo para ter certeza de não largar algo para trás, tudo o que eu mais queria era uma desculpa esfarrapada para que meu pai desse meia-volta no caminho e eu precisasse procurar por algo que esqueci, porque eu queria perder o meu voo.

Brookline era muito mais do que a minha casa, muito mais do que o lugar que eu conhecia como a palma da minha mão, ou o lugar onde fiz os meus primeiros e melhores amigos. Brookline era a cidade onde eu tinha aprendido o que era o amor, era o palco e a plateia do meu coração, e mesmo que eu gostasse de Ann Arbor e amasse a minha vida no Michigan, saber que quando eu saísse do avião eu nunca mais seria capaz de ver Allison Cooper me deixava angustiado.

Eu sentia meu peito se contorcer todas as vezes em que eu lembrava do que tinha acontecido. Era pior quando eu me dava conta de que a perdi de novo, mesmo prometendo para mim mesmo que eu nunca mais a perderia novamente. Já tinha visto ela partir de tantas formas e tantas vezes que, talvez, eu devesse ter me acostumado com a dor de perdê-la, mas não, eu não me acostumava, e cada vez que a perdi, a dor aumentava. Estava praticamente insuportável.

Respirei fundo, fechando o zíper maior da mochila e a puxando pela alça, a posicionando sobre o ombro. Dei uma boa olhada no meu antigo quarto, ele ainda se mantinha do jeito que eu o deixara aos dezenove anos, antes de pegar o meu primeiro voo para Ann Arbor.

As paredes cinzas ainda seguravam os vários pôsteres de bandas que Ethan e eu venerávamos quando mais novos, acima da cabeceira da minha cama, três prateleiras sustentavam todos os meus troféus e medalhas, a escrivaninha não estava mais desorganizada como costumava ser e não tinha nenhuma camiseta suja abandonada por ali, mas eu tinha certeza que se abrisse uma das gavetas, encontraria alguma prova de matemática ou de inglês.

Na porta do armário ainda tinha uma cesta de basquete pequena e de plástico, eu costumava colocar o cesto de roupa suja embaixo e arremessar os bolos de meias usadas na cesta, e os bolos caíam certeiramente dentro do cesto.

Olhei para a porta do quarto, minhas marcas de crescimento ainda estavam lá, dos meus quatro até os meus treze anos, intercaladas com as marcas de altura do Ethan, que até os quinze anos fora bem mais alto que eu. O quarto ainda era o mesmo, e provavelmente permaneceria daquele jeito até que meus pais decidissem se mudar misteriosamente para qualquer outro lugar do mundo — o que eu, particularmente, achava difícil, já que meu pai e o pai do Ethan sempre estavam juntos, enquanto Leight Mullins estivesse em Brookline, meu pai também estaria.

— Pegou tudo? — Minha mãe apareceu na porta, segurando-a na beirada.

— Acho que peguei — Enfiei as mãos nos bolsos laterais da mochila, me certificando de que meu fone de ouvido e meu carregador estavam por lá.

— A passagem e os documentos estão aí? — Ela levantou uma das sobrancelhas, duvidosa.

Por um instante, senti meu corpo inteiro congelar. Eu não me lembrava de ter guardado minha passagem. Eu tinha a memória bem nítida de colocar meus documentos no bolso da frente da mochila, assim eles ficariam fáceis de alcançar, mas não fazia ideia de onde eu tinha colocado a passagem.

Espera...

— Eu fiz o check-in online — Estreitei os olhos na direção dela. — A passagem é digital!

Ela abriu um sorriso largo e orgulhoso.

— Queria saber se você lembraria!

Ela sempre fazia aquele tipo de joguinho, era o jeito que ela tinha encontrado pra fazer com que eu colocasse meus neurônios para funcionar e acabasse me lembrando de onde eu tinha perdido algo, porque nem sempre ela conseguia encontrar.

A mágica de que todas as coisas apareciam automaticamente quando as mães quem procuram não se aplicava à minha família, especialmente porque minhas coisas sumiam em lugares inusitados por falta de atenção — as coisas do meu pai também, uma vez, encontrei os óculos de leitura dele na geladeira.

— Quer ajuda com as malas? — Perguntou, o sorriso diminuiu sem que ela percebesse.

Neguei com a cabeça, abaixando a alça da mala e a virando de lado para que eu pudesse a carregar pela alça de mão.

— Posso fazer isso sozinho. O pai já quer ir pro aeroporto?

— Não falta muito tempo pro seu voo, na verdade, é melhor chegar um pouco antes...

Levei as malas até o lado de fora e antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, meu pai as tirou das minhas mãos e as organizou no porta-malas do carro. Ele não teve tempo de fechar a porta quando um carro estacionou logo atrás.

Eu conhecia o veículo bem, era a caminhonete do pai do Ethan. Abri um sorriso largo instantaneamente, que aumentou quando o loiro saiu da caminhonete, batendo a porta e colocando a chave no bolso da calça.

Ele parou de frente para mim e ergueu as sobrancelhas, suspirando lentamente antes de colocar as mãos na frente do peito como se me pedisse calma.

— Sei que disse que não me despediria, porque você é meu melhor amigo e isso não é um adeus, mas, nossa — disse rapidamente, quase se embolando com as palavras —, se aquele avião caísse e eu não tivesse te visto uma última vez antes de você entrar nele, eu nunca me perdoaria!

Meu sorriso desapareceu, dando lugar a uma carranca crítica que fez os lábios dele se curvarem em um sorriso culpado.

— É por isso que você não tem muitos amigos — Revirei os olhos. — Se eu fosse levar a sério tudo o que você fala, eu nunca mais sairia de casa!

Ele confirmou, abaixando com a cabeça. Ethan sabia que não era sério, mesmo que, por vezes, eu sentia medo de que ele levasse a sério todas as provocações que eu fazia. Ele também costumava me provocar, e eu sabia que era brincadeira, mas depois de tudo o que aconteceu entre mim e Allison, tentei sempre tomar muito mais cuidado com o que falava.

Ethan não era um cara chato e irritante, mesmo que ele falasse coisas como "se aquele avião caísse", ou "se você morresse em um acidente de carro", eu amava passar meu tempo livre com ele. Não precisávamos conversar o tempo inteiro, estarmos juntos era suficiente.

Várias vezes passamos dias inteiros sem trocar mais de três palavras, apenas jogando, assistindo filme, ou só encarando o teto. O silêncio não era constrangedor, ele só nos deixava mais confiantes de sermos nós mesmos um com o outro, e isso fortalecia nossa amizade também.

Ethan conhecia todas as minhas vulnerabilidades e eu conhecia as dele. Sabia que, por muito tempo, ele se sentiu pressionado para ser como todos os outros garotos, para ser mais como eu e menos como ele, e era algo que o fazia surtar de vez em quando.

Eu não me importava se ele gostava mais de teatros e musicais do que de futebol e garotas, até porque ele nem gostava de garotas, e também não me importava de passar horas a fio ouvindo pela milionésima vez sobre o musical favorito dele, especialmente porque ele também não se importava de me ouvir falando sobre todas as coisas que eu gostava.

Mas, na escola, não era como se ele fosse totalmente livre para falar de Hamilton, ou sobre O Fantasma da Ópera, porque tinha gente que não entendia ele e nem fazia questão de entender. Ethan dizia que não precisava de proteção ou que eu tentasse o proteger dos caras que enchiam seu saco, mas nem sempre eu conseguia cumprir com aquele "combinado" de não me meter nos problemas dele.

Até nós sairmos do primeiro ano de High School, Ethan era mais alto que eu e, não só isso, o mais alto da turma. Aos quinze anos, Ethan esbanjava um metro e setenta e sete de altura e eu, por outro lado, tinha nove centímetros a menos, sendo o mais baixo da nossa turma. Como ele sempre foi muito magro, o fato de ele ser o mais alto junto da magreza era a porta de entrada perfeita para caras como Trevor Evans fazerem dele o novo bobo da corte.

E mesmo que eu fosse o mais baixo da turma na época, não conseguia admitir que ninguém o fizesse de otário. Mexer com Ethan era como mexer com meus irmãos, eu não mediria esforços e não pensaria em consequências.

Por isso eu sempre estava na diretoria e na detenção depois da aula.

As coisas mudaram bastante depois que eu me tornei o segundo mais alto da nossa turma, ultrapassando a altura do Ethan quando fomos para o segundo ano, e perpetuei aquilo até nos formarmos. Eles não tinham mais quem encher o saco, o único cara mais alto que eu era jogador de basquete e eu, como capitão do time de futebol americano, tinha findado o reinado de Trevor como o importunador oficial de Ethan, já que tínhamos a mesma altura agora e eu poderia amassar a cara dele se ele tentasse encher o saco do meu amigo.

Nós dois éramos como unha e carne, mesmo que parecêssemos água e óleo.

— Como você tá? — Ele perguntou, levantando os olhos em minha direção.

— Eu tô bem, eu acho — Encarei meu pai rapidamente, enquanto ele conferia o porta-malas e parava ao lado do carro, me esperando. — Ainda bem que você veio... Tinha ficado meio chateado quando disse que não se despediria!

— Eu imaginei que ficaria — Ele riu, levando as mãos à cintura. — Mas e quanto a, você sabe...?

— Eu queria ter me despedido dela, pelo menos... Sei lá. Já foi, né? — Ri fraco, desanimado, sentindo o peito dolorido. — Não tem mais o que fazer... Mas e você? Quando volta pra Nova York?

— Depois de amanhã, na verdade — Ele abriu um sorriso empolgado. — Vão fazer uma segunda edição de Hamilton e eu fui chamado pra interpretar o Rei George III!

Estreitei os olhos para ele. Tínhamos apresentado Hamilton na escola, no último ano, ele me obrigou a participar e, confesso, foi mais legal do que eu pensei que seria.

— Não era o meu papel no musical da escola? — Levantei uma das sobrancelhas.

— Na mosca — Ele deu um tapinha nas minhas costas. — Você mandou bem como o rei doido!

— Pensei que você fosse começar a surtar por não ter conseguido o papel, você sabe, do Hamilton — Comentei, me lembrando de quando ele não foi nomeado como Teseu em uma das peças da escola.

— O Rei George III se parece muito mais comigo que o Hamilton — Ele deu de ombros.

Ethan era um ator incrível, ele conseguia mudar por completo quando interpretava algum personagem, e era tão convincente que assustava. Ele se daria muito bem como "o rei doido", como costumávamos chamar o Rei George III.

Eu dificilmente conseguia captar quando ele estava mentindo, simplesmente porque ele conseguia ser tão convincente na atuação que eu nunca realmente sabia se ele estava falando sério ou brincando, e aquilo já tinha me rendido tantos problemas e encrencas que faltariam dedos nas mãos de umas trinta e cinco pessoas.

— Dani, o voo! — Meu pai alertou, levantando a mão para chamar minha atenção.

— Droga — Encarei meus pés, desconcertado. — Acho que eu tenho que ir, né?

— Anda logo, senhor melodrama! — Ele me empurrou na direção do carro.

Dei os primeiros passos na direção do carro. Não, não tá certo!

Voltei rapidamente na direção do Ethan, o puxando pelos ombros pra um abraço apertado. Eu não queria ficar longe do meu irmão de coração, se eu pudesse, passaria todos os dias ouvindo-o falar sobre todos os musicais que ele apresentou, sobre as ideias estranhas que ele tinha e sobre o quanto o Nathan tava ficando um adulto cada vez mais chato.

— Vê se não arruma outro namorado maluco, não quero precisar pegar um avião pra ter que te livrar de um cara procurado pela polícia — Tensionei o maxilar, tentando controlar a respiração.

— E você... Vê se não fica depressivo e chorando que nem uma garotinha porque tá com saudade — Ele riu, suprimindo um soluço. — Não tenho dinheiro pra pegar um avião a qualquer instante pra resolver todos os seus problemas por você!

— Tá chorando? — Perguntei, estreitando os olhos.

Senti meu nariz arder instantaneamente. Ethan nunca chorava, esse era o meu trabalho na nossa amizade, ele era o cérebro, eu era o coração.

— Não — A voz embargada me confirmou tudo. — É você que tá, seu idiota!

Apertei-o um pouco mais, prolongando o abraço o máximo que eu podia. Não era um adeus, eu o veria no fim do ano, porque era sempre assim, ele fazia parte da família e isso era ótimo, mas eu nunca fui muito bom com despedidas.

— Anda logo, seu pai vai me culpar pelo resto da vida se você perder o voo! — Ele deu um tapinha nas minhas costas.

Confesso que foi duro olhar para trás e vê-lo entrando no carro novamente, esperando que o carro do meu pai desaparecesse na rua antes de conseguir ligar a caminhonete e sair, mas não era como se fôssemos capazes de voltar no tempo para sermos adolescentes para sempre.

Aquele clima estranho que cercava nós três me deixava um tanto desconfortável. Meu pai não era um cara silencioso, muito pelo contrário, às vezes, ele parecia uma vitrola descontrolada e não calava a boca, gostava de barulho, de festa, de farra, então o seu silêncio era difícil de aceitar e de computar como algo normal e usual.

Sabia que ele nunca ficava quieto quando estava com a minha mãe que, diferente dele, apreciava seus momentos sozinha, então era ainda pior vê-los sem trocar uma palavra.

Ele me ajudou a tirar as malas de dentro do carro e levantou a alça de puxar da mala maior, entregando-a para mim assim que se certificou de ter trancado tudo. Sem dizer qualquer palavra, nós três caminhamos lado a lado para dentro do complexo do aeroporto.

Muitos anos antes, quando eu era mais novo, entrar em um aeroporto com meus pais era sinônimo de muita diversão, especialmente porque eu sabia que pegaria um voo para algum lugar legal onde passaríamos as férias de verão comendo até explodir, dormindo até não poder mais e fazendo um monte de passeios turísticos, conhecendo de praias de águas cristalinas à montanhas nevadas.

Mas ali, eu não estava muito contente de entrar num aeroporto acompanhado dos meus pais. Eu não os veria pelos próximos meses, tudo o que eu teria deles eram as suas imagens na tela do meu celular, conversas curtas e rasas sobre como foi o meu dia, e que teriam de ser encerradas às pressas por algum compromisso.

Engoli em seco, olhando para a entrada da área de embarque. Senti um calafrio percorrer todo o meu corpo, eles não poderiam seguir comigo até o portão do meu voo, eu teria que os deixar para trás e eles sabiam bem daquilo.

Me virei para eles, deixando minha mochila no chão, junto com minha mala de mão. Minha mãe abriu um sorriso dolorido, dando o primeiro passo na minha direção. Ela levou as mãos até o meu rosto, afastando a franja comprida para trás da orelha. Eu tenho que cortar esse cabelo.

— Se cuida, tá bom? — Ela afagou meu rosto com os polegares. — Nunca mais viva de hambúrguer e macarrão instantâneo, se alimenta direito, se dedique, e se precisar de alguma coisa, pode ligar! — Ela franziu o cenho. — Não tenta esconder as coisas de mim, eu sou sua mãe, eu sei das coisas!

Eu ri baixo, sabia bem do que ela tava falando. Quebrei dois dedos jogando e escondi aquilo deles dois por meses, eles só descobriram quando eu voltei pra casa e, sem querer, soltei que fiquei um tempo afastado dos treinos por ter quebrado os dedos durante um amistoso.

Ironicamente, na época em que fiquei afastado dos treinos, toda vez ela me perguntava se eu tinha certeza de que estava bem, sempre perguntava se não tinha acontecido realmente nada.

Ela me abraçou apertado, assim como eu esperava, ela não derrubou nenhuma lágrima, ela não faria aquilo na minha frente, e provavelmente também não deixaria que meu pai a visse chorar. Eu estava até impressionado com o meu autocontrole, em outras circunstâncias, eu estaria me debulhando em lágrimas como se o mundo estivesse acabando.

Minha mãe afagou meus ombros, me guiando na direção do meu pai. Ele abriu um sorriso largo e orgulhoso, ele estava tentando, eu admirava o esforço.

— Achei que você nunca mais fosse embora — Ele deu um tapinha no meu ombro, rindo.

— Ah, corta essa! — Franzi o cenho, o puxando para um abraço apertado.

Ele pareceu surpreso de início, mal se moveu, seus braços demoraram a tornear meu corpo também, até que senti seus dedos cravarem na minha camiseta e ele abaixar o rosto no meu ombro, respirando pesadamente. Seu corpo deu um pulinho quando ele tentou segurar o primeiro soluço, até que seus ombros estivessem subindo e descendo rapidamente.

— Vou sentir sua falta, pirralho irritante — Disse com a voz embargada.

— Pai... — Tensionei o maxilar, passando os dedos nos cantos dos olhos.

— Garoto, não abre a boca pra falar nada — Ele me apertou ainda mais dentro do abraço.

Ele afastou o abraço, dando dois tapinhas leves no meu rosto, passando os dedos pelos olhos. Para mim, meu pai era o cara mais incrível do mundo. Mesmo que fôssemos muito parecidos, tanto na aparência quanto na personalidade, ainda tinha muito dele que eu não sabia se conseguiria, um dia, aceitar em mim.

Meu pai não tinha medo de sentir e nem de deixar isso escapar, ele até tentava se passar por uma muralha indestrutível quando preciso, especialmente se isso fosse, de alguma forma, me proteger ou proteger meus irmãos, mas quando ele sabia que não era capaz de suportar tudo dentro do peito, ele não hesitava em deixar transbordar. Eu queria muito ter aquela habilidade, queria não engolir tudo a seco, porque quando explodia, eu me sentia afogado.

Ele deu um tapinha no meu ombro, alargando o sorriso antes de passar o braço por cima dos ombros da minha mãe, entrelaçando seus dedos aos dela.

— Tenho muito orgulho de você, Dani — Ele levantou as sobrancelhas, responsivo.

Eu tinha orgulho dele, orgulho da minha mãe e orgulho de poder dizer que era filho daqueles dois manés, mas não consegui respondê-los, as palavras sumiram da minha boca no momento em que levantei os olhos, guiando-os pelo espaço entre as cabeças dos meus pais.

Por que ela tá aqui?

Pisquei, atordoado. Não era pra ela estar aqui, porra, por que ela tá aqui? Por que ela tá tão desesperada? Porra, porra, porra!

"I won't let you ever give up
Can't you see, I want you so much
You take away all my fears"
— Fears; Twin Wild.

Cooper

Passei a manhã inteira explicando tudo o que tinha acontecido para Adalia. Tinha arrumado dentro de mim alguma força para conseguir expressar em palavras tudo o que eu estava sentindo com a situação do meu pai.

Me sentia péssima por não conseguir odiá-lo, eu queria odiar meu pai com todas as forças que eu tinha, mas não conseguia. Eu sentia pena, não conseguia imaginar como era ficar em um relacionamento sem sentimento algum, mas não conseguia o perdoar pelo que ele fez com minha mãe. Quer dizer, o perdão não cabia a mim, mas também me sentia traída por ele, era como se toda a minha existência perdesse o sentido porque ele decidiu que nossa família não era suficiente para que o amor fluísse.

Coloquei a caneca sobre a mesa, tínhamos esperado os pais dela saírem para trabalhar antes de descermos para tomar o café da manhã, eles não sabiam que eu estava por lá e talvez fosse melhor que aquela informação continuasse apenas entre mim e ela.

Ela ergueu as sobrancelhas, um tanto surpresa com tudo o que eu tinha contado. Não era como se ela precisasse me responder algo ou me dizer que as coisas ficariam bem, eu sabia que, depois do que eu tinha feito, nada mais dependia só de mim, o destino dos meus pais agora estava nas mãos apenas deles dois.

— E o que você quer fazer? — Ela perguntou, encarando o resto de café no fundo da sua caneca.

Eu respirei fundo lentamente. Ainda tinha uma coisa que eu precisava resolver, uma coisa que eu só me dei conta enquanto falava com meu pai.

Precisava me colocar a prova, não era como se eu estivesse colocando a veracidade dos meus sentimentos em pauta, eu queria saber se eu seria capaz de fazer o que fosse preciso, ou se ficaria aprisionada pelo resto da minha vida nos meus sentimentos. Se eu me obrigaria a seguir em frente e fingir que nada nunca aconteceu, se eu precisaria aprisionar tudo o que eu sentia, se eu conseguiria viver com aqueles sentimentos escondidos dentro do peito.

— Eu tenho que ir atrás dele — Apertei a alça da minha caneca, sentindo a superfície quente aquecer a base das minhas mãos.

— Dele quem? — Ela estreitou os olhos.

— Do Daniel — Apertei os lábios. — Eu percebi que... Bom, eu não posso deixar o amor da minha vida escapar de novo!

Ela pareceu surpresa, mas um tanto contente em ouvir aquilo. Seus olhos passaram por cima da minha cabeça e se fixaram no relógio pendurado acima da geladeira, seu sorriso sumiu de repente.

— É melhor você se apressar, então!

— Por quê?

Ela apontou para o relógio e eu me virei para encarar o horário, quase onze da manhã.

— O voo dele é daqui a pouco! — Ela soltou, a voz baixa e quase descrente.

Senti todo o sangue do meu corpo ir para os meus pés. Quase não tínhamos tempo, se saíssemos naquele instante, era capaz de chegarmos quando o avião estivesse levantando voo.

Larguei a caneca em cima da mesa e corri para a porta da frente.

— Vai pro aeroporto correndo, Allison? — Adalia se levantou, correndo atrás de mim.

— Eu não posso esperar, eu não tenho mais tempo! — Desesperada, destranquei a porta e a escancarei para a rua.

Adalia me puxou pelo braço, apontando para o celular posicionado ao lado do seu rosto. Ela estava ligando para alguém e, de alguma forma, esperava que aquilo fosse resolver tudo.

— Ethan? — Disse assim que o loiro atendeu. — Tá onde? — Ela esperou pela resposta dele. — Vá direto ao ponto, mané. Ótimo. Passa aqui em casa, rápido, tipo, o mais rápido possível! Por quê? Bom, a gente tem uma missão impossível e você é o motorista. Sei que não gosta de dirigir, mas a gente tem que chegar antes das onze e quarenta no aeroporto! Sim. É. É o voo do Carter! Ótimo, vou te esperar aqui na frente!

Não deu mais que dois minutos e uma caminhonete estacionou na frente da casa da Adalia. Ethan abaixou o vidro do banco do passageiro e abriu um sorriso divertido em nossa direção.

— Talvez eu tenha mentido sobre estar quase chegando na casa do meu pai!

Ele destravou as portas e nós entramos rapidamente. No banco de trás, que não era lá muito espaçoso, o olhei pelo retrovisor, seus olhos azuis caíram sobre o meu rosto, curiosos.

— Então a gente vai levar você pra falar com ele, é? — Ele abriu um sorriso. — Perfeito!

Ethan acelerou o carro o máximo que pôde. Ele detestava dirigir por conta da ansiedade, era como se ver os carros, o movimento das ruas, as pessoas indo pra lá e para cá, o trânsito e tudo que compunha o ato de dirigir, o deixasse dez vezes mais ansioso e nervoso.

Ele costumava ir mais lento do que o permitido legalmente, ou muito mais rápido, quando não aguentava mais ficar atrás de um volante. Por vezes, ele xingava muito e ficava estressado, mas ali, ali ele mal piscava, pegava todos os atalhos existentes entre Brookline e Boston só para encurtar o tempo que perderíamos no trajeto.

Pela janela, eu via toda Brookline ficar para trás, eu não me importava mais com consequências, com o medo, com a insegurança, mesmo que eu soubesse que eles ainda estivessem lá no fundo, em algum lugar. Eu não podia dar ouvidos a eles todas as vezes que algo podia mudar minha vida drasticamente, caso contrário, eu viveria a mesmice de sempre, acabaria com uma vida sem graça e eu provavelmente me arrependeria quando fosse mais velha.

Não conseguia enxergar o meu futuro claramente, era como um borrão. Era tudo tão incerto que até mesmo a paisagem através da janela parecia uma mera ilusão boba. E se meu pai estivesse certo? E se nós só estivéssemos revivendo uma paixonite adolescente? Não! Não era paixonite adolescente.

Paixonite adolescente, com o tempo, se esvai, ela muda, é volátil e flexível, nem sempre faz sentido. Ela muda como as estações do ano, uma hora era Daniel, na outra, poderia ser Jesse. Mas não mudava para mim. O que eu sentia por ele era o mesmo de quando éramos mais novos. Não, não era o mesmo. Era pior, era mais intenso, fazia todo o meu interior sacudir, me fazia tremer de medo só de pensar que eu corria o risco de passar o resto da vida sem poder dizer o quanto eu o amava.

Se a minha "paixonite adolescente" fosse tão avassaladora quanto o que eu sentia por Daniel cada vez que as letras de seu nome eram desenhadas na minha mente, eu definitivamente nunca estaria pronta para sentir o que era o amor de verdade.

Ethan estacionou o carro na primeira vaga que ele encontrou e, antes que eles dois pudessem sair do carro, pulei para fora, deixando-os para trás. Eu não tinha tempo. Acho que, quando se tratava de nós dois, tempo era realmente algo que não poderíamos jogar fora, porque cada segundo em que eu pudesse estar ao lado dele sempre seriam os melhores possíveis.

Meus pés se cravavam no asfalto do estacionamento, eu desviava de carros, contornava motos estacionadas, não olhava para os dois lados antes de correr pelas travessas, eu não tinha tempo, nós não tínhamos tempo, e quem quer que estivesse dirigindo pelo estacionamento precisava entender isso.

Entrei no primeiro terminal, rodei o lobby inteiro procurando-o com os olhos. Eu sabia que, independente da circunstância, nossos olhos seriam capazes de se conectar, eu seria capaz de o encontrá-lo, mas ele não estava lá. Merda. Terminal errado!

Olhei o relógio em um totem ao lado de uma dos balcões para fazer o check-in, eu ainda tinha algum tempo. Pouco, mas tinha.

Tentei me lembrar de toda a estrutura do aeroporto, torcendo para que eu conseguisse me lembrar o caminho para o outro terminal nacional. Saí em disparada, ignorando todos os avisos de que eu não poderia correr por ali, que era perigoso.

Atravessei a porta automática e, novamente, desviando de pessoas que passavam com seus carrinhos cheios de malas, eu cravava os pés sobre a calçada que me guiaria até o outro terminal. Eu queria estar certa quanto ao terminal, porque não queria jogar minha última chance no lixo, eu precisava me agarrar a ela com todas as forças.

Eu não fazia ideia do que aconteceria depois, eu só precisava que ele soubesse como eu me sentia, como eu o amava, e como eu não queria perdê-lo novamente. Eu precisava que ele soubesse que, se fosse preciso, eu iria com ele, que eu me desdobraria para estar com ele, porque eu sabia que ele se desdobraria por inteiro para estar comigo.

Meus pulmões ameaçaram falhar, sentia meu corpo inteiro queimar de dentro para fora, eu nunca fui muito chegada em esportes e correr daquele jeito fazia com que meus órgãos internos, principalmente o meu sistema respiratório inteiro, entrasse em um colapso maluco, como se eles se recusassem a se esforçar.

Todo o meu corpo me pedia por um pouco mais de calma, mas eu não podia, de jeito nenhum. Me recusava a desacelerar, reduzir a velocidade significava perder o voo, perder a chance de vê-lo novamente, perdê-lo para sempre, e aquilo definitivamente não estava nos meus planos.

Atravessei a porta automática, praticamente não conseguia mais respirar. Esperava ainda ser capaz de dizer alguma coisa. Ele estava lá. Ele definitivamente estava lá. Eu sentia na minha pele, nos meus ossos, no fundo do meu peito, e senti no exato momento em que seus olhos tocaram os meus.

— Daniel — Soltei seu nome, talvez mais alto do que eu deveria.

Seus pais se viraram em minha direção. Sebastian soltou a esposa e abriu passagem para o filho, deixando que ele passasse entre os dois.

Daniel estava estático, mal piscava, seus olhos estavam vidrados em mim, ele estava praticamente tremendo de medo. Mas eu estava em pura frenesi, pela primeira vez, me sentia corajosa o suficiente para não me intimidar com as minhas inseguranças e guerras internas, elas não importavam ali.

Por que eu não consigo dizer nada?

Minha respiração falhou. Estávamos a poucos passos de distância, ele não ousava se aproximar mais, e eu, por outro lado, mal conseguia me mover.

O mundo era apenas nós dois, mas o espaço que existia entre nossos corpos ainda me deixava tão frágil quanto um prato de porcelana. Eu tinha poucos minutos e precisava fazer com que cada um deles valesse a pena.

O que ele vai fazer? O que eu vou fazer? O que vem depois disso? É agora ou nunca!

— Daniel... — Senti meu queixo tremer. Não, não, não. Agora não! — Eu... Eu pensei muito e... — Coloquei as mãos sobre o peito, sentindo uma dor insuportável. — Esquece essa droga de pensar muito, porra, eu não quero te perder nunca mais!

Ouvi os pés esganiçados dos tênis de Adalia e Ethan rasgarem o lobby daquele terminal. Mesmo com o incômodo sonoro, nossos olhos não se desprendiam um do outro. Os dele, por outro lado, se tornaram oceanos vastos e turbulentos de um segundo para o outro, com as nuances vermelhas dos vasinhos de seus olhos se mesclando com o verde assombroso e cristalino.

— Eu não quero passar mais nenhum dia da minha vida sem você — Completei, espremendo os dedos no tecido da minha camiseta, sentindo a dor se alastrar ainda mais. Que porra de dor é essa? — E eu não faço ideia do que fazer, mas... Mas, dessa vez, é pra valer. É de verdade. Eu não vou te perder, não de novo, nunca mais!

Atônito, ele olhou para o pai. Os dedos trêmulos, os olhos cheios, a respiração cortada. Tudo se tornou tão tenso que eu mal conseguia sentir meu corpo, era como se eu estivesse morrendo, como se toda a minha vida estivesse se retorcendo dentro de mim.

Não. Eu não estava morrendo. Merda... O meu coração. Era a morte das minhas incertezas, das minhas dúvidas. Doía tanto, porque era tudo o que eu tive por muito tempo, mas eu não precisava mais delas, eu estava as matando lentamente, porque eu sabia que ele valia a pena.

— Tá olhando o quê, moleque? — Sebastian levantou uma das sobrancelhas. — Vai atrás da sua garota!

Daniel virou-se para mim novamente, eu não era mais capaz de mensurar tudo o que passava pela minha mente, não conseguia sequer comandar o meu próprio corpo. Os passos largos que ele dava em minha direção era tudo o que eu tinha para me consolar, o motivo de ele estar se aproximando tão rapidamente me dizia que, de alguma forma, era o que me prendia na realidade.

Eu sabia que a distância era a pior inimiga dele, enquanto nós dois estivéssemos no mesmo lugar, nossos corpos não conseguiriam se manter distantes.

Seus dedos entraram pelo meu cabelo, empurrando-o para trás da orelha. Eu detestava como meu rosto se parecia sem o cabelo para cobrir as laterais, achava minhas orelhas pequenas demais e minhas bochechas, grandes demais, mas ele sempre dizia que gostava de olhar o meu rosto por completo, porque ele sempre seria surpreendido por algum detalhe novo que ele nunca reparara antes.

Seu rosto invadiu o meu, não precisava de permissão para aquilo, eu sempre estaria disposta a beijá-lo quando fosse possível. E não importava quem estivesse ao redor, era como se o mundo não existisse enquanto nossos lábios estivessem juntos.

Eu sempre me surpreenderia com o fato de que nossos corpos foram feitos para se encaixarem um ao outro, e mesmo que o sabor de nossos beijos sempre fossem diferentes a cada troca que fazíamos, algo sempre permaneceria o mesmo. Era ele, sempre foi ele. Era o amor, e sempre foi o amor, sempre seria o amor.

Lembro que quando ele me beijou depois da primeira vez que disse que me amava, tudo que eu conseguia pensar era no quanto eu queria que o tempo congelasse para que eu pudesse o beijar para sempre, porque era a melhor coisa que eu já tinha sentido antes, porque ele beijava bem pra caramba, mas, daquela vez, eu queria que o tempo congelasse para que eu fosse capaz de passar a eternidade ao seu lado, para que eu tivesse todo o tempo do mundo para beijá-lo quantas vezes eu quisesse.

— Allison — A voz grave e rouca falhou, ele respirou fundo e engoliu em seco. — Agora... É tarde... Eu não posso perder o voo, mas não posso te perder de novo. Eu não quero te perder de novo!

— Eu vou para o Michigan... — Segurei seus braços com força. — Eu não ligo, eu não... Eu vou dar um jeito, eu...

— Allison está pintando um quadro para mim — Helen cortou a conversa. Em sincronia quase surreal, todos nós voltamos os olhos para ela. — Assim que ela terminar, vou fazer o pagamento da outra metade do valor, ela vai para Ann Arbor em breve, querido. Não se preocupe!

Ela abriu um sorriso largo e ele sorriu quase que aliviado. Seus olhos verdes voltaram para mim, o anúncio do seu voo tinha gritado alto, indicando que não tínhamos mais tempo.

— Promete? — Seu sorriso deu espaço para as sobrancelhas arqueadas, os olhos pedintes e inseguros. Confirmei com a cabeça, me colocando nas pontas dos pés para beijá-lo novamente. — Eu te busco no aeroporto. Eu vou te esperar. E todo santo dia vou mandar mensagem pra saber quanto tempo falta!

Abri um sorriso fraco, deslizando os dedos por seu rosto. Pela primeira vez em cinco anos, eu sentia que tinha feito a coisa realmente certa.

— Você precisa ir — Disse, pousando as mãos em seus ombros.

Ele respirou fundo.

— Certo... — Ele rangeu os dentes. — Eu te amo. Eu te amo pra cacete, Allison!

Ele beijou todo o meu rosto, demorando sobre os meus lábios novamente.

— Pelo amor de qualquer coisa, me manda mensagem avisando!

Confirmei com a cabeça, deixando que ele corresse na direção dos pais. Daniel deu um beijo na bochecha da mãe, um último abraço no pai, agarrou a bagagem de mão e foi rapidamente para a zona de embarque.

Depois daquele dia, era como se todo o caos, de repente, se dissipasse. Eu não me sentia mais condenada a viver na incerteza de não fazer ideia do que aconteceria comigo, porque, independente do que fosse acontecer, nós teríamos um ao outro para suportar os dias mais difíceis.

Meu futuro continuava um borrão, mas era um borrão reconfortante, eu poderia o construir como desejava e junto dele. Não me assustava mais, estava tudo bem. Eu não precisava ter o controle de tudo. E, melhor, eu não precisaria viver uma dúvida constante, minha vida não seria reduzida a um "e se" que nunca aconteceu, eu queria ver acontecer com meus próprios olhos.

Eu não precisaria me submeter a um relacionamento vazio como o dos meus pais, e não precisaria enterrar meus sentimentos no fundo do baú, porque eles eram reais, eles estavam à flor da pele e eu quase era capaz de segurá-los entre as mãos.

Com Daniel, o amor era palpável, porque o amor é feito para ser tocado, sentido, vivido e praticado. Ele é uma escolha feita todos os dias quando acordamos e todas as noites quando colocamos a cabeça no travesseiro.

Também é feito para ser sentido, ele envolve paixão, romance, cuidado, carinho, afeto e afago, mas não é só disso que se sustenta o amor. Para amar, precisa conhecer o pior lado de alguém e, mesmo assim, ainda ser capaz de compreender que, juntos, ambos podem se ajudar a melhorar, é uma constante caminhada em direção ao topo, e essa caminhada nunca termina.

Ela pode ser cansativa de vez em quando, mas ainda é a melhor escolha a ser feita. E não é como se isso significasse que tudo sempre está bom, ou que os problemas não existem, porque esses são aos montes, mas enquanto houver amor, há solução, há cuidado, há carinho, há conversa, há confiança.

Eu demorei cerca de um mês e meio para terminar de pintar todo o quadro. Várias vezes, cheguei a cogitar terminar de qualquer jeito para poder vê-lo novamente o mais rápido possível, mas eu não estaria sendo justa comigo mesma. Eu tinha que dar o meu melhor, era algo especial, eu precisava ser honesta e terminar aquilo caprichosamente, nunca me perdoaria se eu não o fizesse.

E eu o fiz, eu terminei o quadro e o achei impecável. Esperei até que secasse para que eu pudesse entregar na moldura para Helen, que me pagou mais quinhentos dólares pelo trabalho.

Para a minha surpresa, as passagens aéreas não eram tão caras quanto eu pensava que seriam. Com pouco mais de duzentos e sessenta dólares, consegui comprar minha passagem só de ida para o Aeroporto Metropolitano de Detroit Wayne Country, que ficava a apenas trinta minutos de Ann Arbor.

E eu fui sem olhar para trás, me despedi da minha mãe, da minha irmã, do meu irmão, dos meus melhores amigos e fui. Fui porque sabia que era a coisa certa.

Em Brookline, por outro lado, minha mãe se divorciou não muito tempo depois que me mudei para o Michigan, meu pai tinha passado a morar com minha avó, eu não fazia ideia se ele ainda sustentava alguma coisa com Susan, mas também não tinha a menor vontade de perguntar, eu não fazia ideia de quando eu seria capaz de falar com ele novamente como quando as coisas ainda estavam normais entre nós dois.

Minha mãe saiu do seu emprego antigo, assim ela não seria mais obrigada a ver meu pai todo santo dia, mesmo assim, ela conseguiu abrir um pequeno empreendimento perto de casa, uma doceria pequena que ela poderia passar grande parte do tempo fazendo o que ela mais gostava: confeitando doces pequenos e coloridinhos.

Ela também se aproximou muito mais da mãe do Daniel, e as duas saíam como se fossem melhores amigas, iam para cima e para baixo, faziam planos para viagens sozinhas, iam ao cinema, ao shopping e onde mais era possível imaginar. Helen definitivamente estava a arrastando para os prazeres da vida adulta dentro de uma amizade que a colocasse verdadeiramente para cima.

Meu irmão, por outro lado, conseguiu uma boa nota na prova que prestou para a bolsa de estudos na Princeton e, para a minha maior felicidade, ele entrou e conseguiu a bolsa. O que era ótimo, porque meu pai tinha se comprometido em pagar pela faculdade dele.

Sam estava feliz e, por isso, eu estava ainda mais tranquila. Ele ainda tinha dificuldade em aceitar que era um cara inteligente, mas toda vez que ele vinha com um papo de que não era bom o bastante para conseguir notas altas nas provas, eu jogava a nota alta que garantiu a bolsa de estudos em sua cara, porque tinha sido impressionante.

Ele estava menos fechado, também. Conversava mais, se abria mais e parecia ter um pouco mais de vida social que antes, o que era ótimo, detestava vê-lo dentro do quarto o tempo inteiro.

As coisas, pela primeira vez, estavam tomando um rumo tranquilo e eu estava até gostando da ideia de ter uma vida monótona e entediante ao lado do Daniel pelo resto da eternidade, conseguia imaginar nós dois velhinhos comendo torta de morango em uma casa tranquila em algum canto do mundo.

E mesmo que no começo tenha sido um tanto inusitado para nós dois, as coisas se acertaram tão rápido que fiquei surpresa com como tudo estava indo tão bem. E mesmo que ele chamasse um colchão inflável entre duas pilhas de livros da universidade de cama, as coisas ainda eram divertidas — especialmente porque tínhamos arrumado uma cama de verdade.

Pensei que formar algum tipo de raiz em Ann Arbor seria mais difícil, especialmente porque eu não sabia o que seria da minha arte, mas eu estava feliz em poder decorar o apartamento grande e sem graça do Daniel em um acervo único e cheio de quadros pelas paredes.

Eu tinha um canto iluminado e aconchegante para fazer cada uma das telas ganharem vida. Os cavaletes ficavam na frente de grandes janelas que me davam a vista da pequena Ann Arbor e da floresta que a separava da enorme Detroit. O ar era revigorante e toda a luz do sol que entrava movia meus músculos em inspiração, e era ainda melhor quando ele estava em casa e tocava violão enquanto cantava alguma das nossas músicas favoritas.

Era fácil. Criar com amor era muito mais fácil.

— Droga — Ele resmungou, coçando a nuca.

Desviei os olhos da televisão e os foquei nele, parado na frente da geladeira.

— Esqueci de comprar as coisas para o jantar... — Ele completou, abrindo um sorriso sem graça na minha direção. — Vou aproveitar que eu tenho que abastecer o carro pra amanhã e passar em algum lugar. Vai querer comer o quê?

— Pega pizza — Dei de ombros. — Aquela pizzaria que a gente comeu semana passada é bem boa!

— Certo — Ele sorriu, empolgado.

Seus dedos passaram por cima do balcão da cozinha, pegando a chave do carro e a carteira. Ele correu na minha direção e se curvou sobre o sofá, me beijando demorado. Eu gostava de como ele sempre fazia questão de demorar quando estava com os lábios nos meus.

— Já venho, te amo — Ele beijou minha testa.

— Não demora, eu tô com fome — Empurrei-o com o pé, acertando sua bunda para que ele fosse mais rápido até a porta.

Desliguei a televisão e deixei o controle sobre o sofá, caminhando para perto dos meus cavaletes ao lado das janelas, o último quadro que eu estava pintando ainda estava lá, virado para as luzes da cidade naquela noite gelada. Dei uma boa olhada na tinta, ainda estava molhada e, com o frio que estava fazendo, duvidava que fosse secar até o dia seguinte.

A campainha tocou de repente e eu estreitei os olhos para a porta, Daniel não tocaria a campainha, ele tinha a chave. Lentamente me aproximei da entrada e abri a porta, apreensiva.

Dei de cara com um cara alto e forte, ele segurava um capacete de futebol americano em uma das mãos, sua pele chocolate brilhava abaixo da luz forte do corredor e seus lábios grossos se curvaram em um sorriso largo, me exibindo seus vários dentes brancos. Os dreads que caíam ao redor do seu rosto o deixavam com um olhar mais intimidador, mesmo que ele parecesse gentil, de alguma forma.

— Você deve ser a Allison — Disse ele, erguendo as sobrancelhas grossas. — É um prazer poder finalmente te conhecer!

O homem estendeu a mão para mim e eu a apertei rapidamente, abrindo um sorriso fraco para ele.

— Sou o Brandon, tô no time do Carter — Ele estendeu o capacete em minha direção. — Aquele cabeça de vento esqueceu o capacete no treino!

— Ah! — Peguei o capacete entre as mãos, sentindo o peso que faltava dentro da bolsa de Daniel. — Agora faz todo sentido!

Ele riu, ajeitando os dreads para trás dos ombros, dando uma ajustada na altura da faixa que os mantinha longe de seus olhos. Brandon pendeu o rosto para o lado, dando uma boa olhada no interior do apartamento.

— Não me lembrava de ter tantos quadros aqui — Ele ergueu uma das sobrancelhas.

— É... Eu achava essas paredes bem sem graça e decidi que seria legar trazer um pouco mais de cores para o apartamento — Dei de ombros, acompanhando o sorriso dele ao ver os quadros. — Ficou melhor do que eu esperava!

— Sem chances, você pinta? — A surpresa em seus olhos me dizia que ele estava procurando por algum pintor há algum tempo.

— Bom, sim... Eu pinto pra passar o tempo enquanto não consigo arrumar um emprego decente! — Suspirei.

— Olha, eu adoraria que você pudesse pintar um quadro pra mim — Entusiasmado como uma criança, Brandon segurou-me pelos ombros. — Tô procurando alguém faz tempo e acho que você é a pessoa perfeita pra isso!

Foi ali que Brandon me explicou que sua esposa amava arte e queria muito um quadro que fosse feito especialmente para ela, um exemplar único que pudesse representá-la com formas e cores.

Claro que eu aceitei, não era sempre que aquele tipo de coisa acontecia. Algumas oportunidades não batem na porta, elas simplesmente ficam esperando que você abra, mas, daquela vez, a oportunidade quase me sacudira pelos ombros.

Depois que Daniel chegou em casa com a pizza, Brandon me explicou como a esposa queria o quadro e, depois da entrega, um mês depois, mais pedidos foram aparecendo, porque Brandon começou a me indicar para outros amigos e também porque Daniel sempre deixava escapar que eu era uma pintora quando o perguntavam ao meu respeito.

As encomendas praticamente começaram a chover sobre minha cabeça e algumas galerias de arte me chamavam periodicamente para expor algumas obras por lá, o que vinha me ajudando bastante a continuar no ramo. Eu conseguia dinheiro suficiente para ajudar com as despesas e comprar o que eu queria para mim, para a casa, para nós, para os meus quadros.

Eu não esperava, realmente, ser capaz de me consolidar por ali, mas tinha ficado verdadeiramente mais fácil depois do quadro que fiz para a esposa de Brandon. Ter gente influente com o seu nome na boca era um passo maior que as pernas eram capazes de dar, mas admito que a mídia sensacionalista também teve participação nisso.

Apesar dos ataques constantes, minha nova rede social, dedicada apenas aos meus trabalhos e quadros, estava crescendo bem rápido, o que era ótimo, porque as encomendas também tomavam outras proporções.

Era como viver um sonho, e, o melhor, estar ao lado dele era leve. Amá-lo era leve, levava para longe todos os meus medos, todas as minhas inseguranças pareciam coisas bobas, porque eu tinha encontrado o que era suficiente para mim, sem exageros e sem faltas, o suficiente e nada mais que isso.

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