3. Michigan
Carter
Enfiei os dedos dentro do bolso de trás da minha calça e me senti aliviado por ter encontrado o maço de cigarros de Ethan por ali, ao menos eu poderia relaxar mais tarde.
Meu coração estava pesado e eu conseguia sentir minhas entranhas se contorcerem dentro do meu corpo. Uma pontada na boca do meu estômago me fez querer vomitar, mesmo que eu não estivesse passando mal. De certa forma, eu queria me livrar daquela sensação ruim.
Subi o que faltavam dos degraus da escada, chegando no corredor. Eu conhecia aquele lugar, conhecia melhor do que eu conseguia me lembrar, especialmente porque eu sabia exatamente quem eram todas as pessoas que estampavam os porta-retratos pendurados na parede. Caminhei por quase todo o perímetro, chegando no final, onde a porta do quarto de Noah se mantinha semicerrada.
Com uma das mãos espalmadas, empurrei a superfície de madeira tingida de branco. Coloquei a cabeça para dentro só para ter certeza de que eu não estava estragando o momento de ninguém.
Estava tudo apagado e solitário, o que era um bom sinal.
A cama estava arrumada, então ninguém tinha tentado avançar a linha... Ainda.
Senti um calafrio percorrer minha espinha, era como se eu já tivesse vivido aquilo.
Encostei a porta atrás de mim e acendi a luz de um abajur com formato de bola de Futebol Americano, que se dispunha sobre a cômoda no canto do quarto, abaixo da televisão larga que estava pendurada na parede.
Os objetos tomaram forma ao serem tocados pela luz fraca do abajur e eu vislumbrei a porta do armário de Noah na outra extremidade do quarto. Olhei ao redor uma última vez, ainda com aquela sensação estranha de que aquilo, de alguma forma, já tivesse acontecido antes, mas andei na direção do armário mesmo assim. Era como se ele chamasse por mim, gritasse meu nome com todas as letras.
Abri a porta e me deparei com as tralhas de Noah, as roupas emboladas, os equipamentos esportivos empilhados em um canto, os tênis pareciam pingados e eu me perguntava como ele conseguia encontrar os pares.
— Puta merda, Noah. Isso vai demorar pra caralho! — Resmunguei, mas levantei os olhos, surpreso, porque até mesmo a minha fala parecia estar no script daquela cena.
Me enfiei no armário e fechei a porta sanfonada atrás de mim para que eu tivesse um pouco mais de espaço para me movimentar lá dentro. Comecei a procurar pelos lugares que imaginei que Noah esconderia a bendita... O que era mesmo que eu estava procurando? Pisquei algumas vezes, confuso, eu não me lembrava o que tinha que encontrar, mas sabia que precisava encontrar alguma coisa.
— O que eu tenho que encontrar...? — Estreitei os olhos para todas as coisas na frente dos meus olhos.
Ouvi a porta do quarto se fechar com força, fazendo um barulho estralado no batente.
Merda, isso lá é hora?
Me virei para abrir o armário e avisar que tinha gente dentro do quarto, mas congelei quando o vi pelas frestas da porta. Senti meu corpo inteiro esquentar, meus ossos doeram, minhas veias borbulhavam e uma ardência súbita no meu abdômen. Passei a mão para dentro da camiseta, procurando pela minha cicatriz, queria saber se, por algum motivo, ela tinha sido aberta novamente, mas não a encontrei.
— Como assim...? — Franzi o cenho, murmurando baixo o suficiente para que não fosse ouvido.
Levantei os olhos novamente para a cena de dentro do quarto. Ele estava pressionando o corpo dela na direção da cama. Ele estava devorando os lábios dela, estava beijando seu pescoço, e passando as mãos pelo corpo dela. Senti minhas bochechas esquentarem e minha respiração falhar.
Eu congelei por um instante.
Meus dedos tremiam e meu corpo paralisou por completo, ela tentava o repelir, mas seus sentidos já não estavam mais como antes. Ele insistia em devorá-la, mesmo que ela tentasse virar o rosto e desviar. Ele queria avançar o sinal, ela queria que aquilo acabasse.
Eu não era mais capaz de piscar, ou de se desviarem. Eu não queria assistir àquilo, não queria vê-la daquela forma. Eu queria que aquilo acabasse.
— É só relaxar — Miles disse no pé do ouvido da Allison. — Tá tudo bem!
Mas não estava tudo bem, não estava nada bem.
Ela realmente estava tentando o empurrar para longe, tentando impedi-lo de tirar sua roupa. Senti meus pulmões se comprimirem, algo no fundo do meu peito perfurou meu coração e minha visão ficou turva, as lágrimas escorreram incontrolavelmente pelos cantos do meu rosto, pingando pelo queixo.
Em um piscar de olhos, quando os olhos dela se viraram para a direção do armário, pedintes, praticamente me implorando para que a tirasse dali. Ela me viu, ela encarou os meus olhos de forma tão profunda que praticamente entrou dentro da minha cabeça.
— Eu não quero — Disse ela, contorcendo o rosto, tentando empurrá-lo novamente.
Ela espremeu os lábios para segurar o choro. Allison sempre fora uma menina chorona, eu conseguia me lembrar claramente de todas as vezes em que aquilo acontecera — de todas as vezes em que ela se tornara uma cachoeira de lágrimas —, e meu peito doeu tanto que pensei que fosse morrer. Eu não era forte o bastante para vê-la chorar, muito menos ali, escondido dentro de um armário.
O barulho repentino da porta sanfonada do armário sendo arremessada para o lado fez meu coração falhar, congelar por um instante. Eu não tinha aberto a porta, quem abriu a porta?
Quase não consegui seguir o vulto com os olhos. Miles gritou um "que porra é essa" antes de ser agarrado pela gola da jaqueta. Eu tinha o agarrado pela jaqueta e o empurrado para longe de Allison. Miles caiu, desajeitado, e me lançou um olhar furioso.
Mas eu ainda estava dentro do armário.
Sacudi a cabeça com os olhos trancados, aquilo não estava fazendo sentido nenhum. Eu tinha certeza de que era eu, ali, sendo encarado por Miles. Eu conhecia aquele moletom preto com o emblema dos Warriors nas costas, conhecia aquela calça e os tênis de marca, o cabelo escuro, a postura impecável e até os alargadores pequenos nas orelhas. Não tinha como ser outra pessoa.
— Isso é sério, porra? — Gritou Miles. — Sai da porra do quarto, seu retardado. Quero tranzar em paz!
— Sai de perto dela! — Era a minha voz.
— Como é!? — Miles se levantou, pendendo a cabeça para o lado.
O outro eu, o de dezesseis anos, riu, nervoso.
— Você é surdo ou sequelado? Sai de perto da garota!
— Vai fazer o quê? É a minha namorada, não tô fazendo nada de errado — Miles deu um passo à frente.
— Não me obriga a deformar essa sua cara para ver se você cria noção. Sai da porra do quarto, Miles! — Fechei os punhos.
Automaticamente, meu rosto virou-se para o lado. A porta do armário tinha sido fechada novamente, não por mim, mas por Allison. A menina estava encolhida ao meu lado, tapando a boca com as duas mãos, tentando segurar o choro, tentando ser forte.
Ela é capaz de me ver?
— É tudo minha culpa, é tudo minha culpa — Ela dizia repetidamente, trancando os olhos.
Eu conseguia ouvir tudo. Conseguia ouvir Miles brigando comigo, e o quanto eu estava furioso. conseguia ver o quanto aquilo estava assustando Allison, conseguia ver o quanto aquilo de todos os ângulos possíveis. E me sentia frustrado, porque eu não podia consolá-la, não podia cuidar dela, e não podia me segurar, não podia mudar o que tinha acontecido.
Olhei novamente para o quarto. O outro eu deslizou as costas pela porta até cair sentado no chão. Eu conseguia ver, dali de dentro do armário, o quanto os meus dedos tremiam e o quanto eu parecia desesperado e assustado. Eu não pensava que parecia estar tão assustado, não quando tudo aconteceu.
— Tá tudo bem, agora. Ele já foi embora...
Tranquei os olhos, eu lembrava o quanto a minha cabeça estava doendo. Sorrateiramente, Allison saiu de dentro do armário. A menina caminhou lentamente em minha direção.
— Por que fez isso? — Perguntou ela, quase inaudível.
O Daniel de dezesseis anos se levantou. Ela estava muito mais próxima do que costumava sempre estar.
— Não é porque eu não suporto você que vou deixar que te machuquem — Respondi, encarando seu rosto.
Solucei como um idiota, dentro do armário. Eu conseguia me lembrar perfeitamente de cada detalhe daquela noite, e de como eu a tinha visto naquele dia. Fora a primeira vez em que descobri que ela tinha sardas discretas no topo do nariz, que suas sobrancelhas eram mais claras que seu cabelo. Fora a primeira vez que eu a encarara tão de perto e, nossa, como ela era perfeita.
Eu me sentia um completo idiota, porque ela parecia boa demais para mim, e aquilo me assustava, mesmo que eu soubesse — não admitindo — que a queria por completo. Eu pensei que estivesse completamente maluco, que estava bêbado ou coisa do tipo. "Ela não é bonita assim, eu não me lembro de ela ser tão... Perfeita?" era tudo o que passava dentro da minha cabeça.
Repentinamente, em um movimento inesperado, suas mãos seguraram o meu rosto e me puxou em sua direção, apagando sem qualquer tipo de rodeio toda a distância que existia entre nós dois.
Por que eu tô vendo isso?
Eu me lembrava do sabor daquele beijo, hidratante labial de morango tinha se tornado o meu sabor favorito de beijo.
Engoli em seco e me levantei, eu não podia ficar ali para sempre, eu queria que aquilo acabasse, meu peito doía tanto quanto a facada que Miles me dera meses depois daquele beijo. Mas esbarrei em uma das prateleiras e todas as coisas caíram sobre mim.
***
Abri os olhos, ofegante. O ar praticamente desviava o rumo antes de passar pelas minhas narinas e envolver meus pulmões.
Virei o rosto na direção do meu celular, que vibrava incessantemente sobre a mesa de cabeceira ao lado da minha cama. Olhei pela janela ampla que dominava a maior parte da parede, o sol invadia o quarto sem qualquer tipo de pudor. Puxei meu celular, o tirando do carregador e atendendo a ligação.
— Qual o problema? — Perguntei com a voz rouca.
— Cara, você esqueceu? — Brandon perguntou do outro lado da linha.
— Do quê? — Estreitei os olhos, sentando-me na cama.
— Me pediu pra te levar no aeroporto. Tem quinze minutos que eu tô aqui na frente do prédio e você não dá nem sinal de vida! — Disse ele. Merda, o meu voo. — Anda logo, ou vai perder o voo!
— Droga... Eu tô indo, juro!
Joguei o celular para dentro da mochila, junto com o carregador e corri para dentro do banheiro, largando a roupa pelo caminho. Eu tinha pouco tempo para tomar banho e colocar roupas limpas, e talvez tenha batido o recorde mundial de "banho mais veloz do mundo", porque demorei seis minutos para arrumar tudo e descer o prédio com as malas.
Brandon deu um tapinha em minhas costas e me ajudou a colocar as malas no porta-malas.
— Não esquece que a chave reserva tá...
— Embaixo do vaso do corredor — Completou Brandon. — Eu sei!
— Certo... — Respirei fundo, afundando as costas no banco do carro. — Tudo bem.
— Fica tranquilo, pirralho, eu não vou fazer uma festa no seu apartamento ou coisa do tipo — Brandon acelerou o carro. — Nossa, você dorme como uma pedra, como consegue acordar para os treinos?
Tamborilei os dedos nas minhas pernas. Era um grande sacrifício acordar para os treinos, mas eu tinha algumas técnicas com os vários despertadores seguidos.
— Aconteceu alguma coisa? — Perguntou ele.
Não tinha exatamente acontecido alguma coisa, mas eu não estava contando em sonhar com a Allison na madrugada antes de voltar para Brookline.
Faziam cinco anos desde a última vez em que eu vira Allison, cinco anos desde que tudo terminara e tudo o que eu via sobre ela eram nas redes sociais e, nossa, eu era um covarde por nunca mandar qualquer mensagem.
— Não — Respondi.
Eu me convencia de que não queria atrapalhar a nova vida de Allison na Califórnia, não queria ser uma pedra no caminho ou uma âncora que a prendia no passado. Eu queria que ela fosse feliz, nem que, pra isso, eu precisasse estar longe dela.
Eu sempre a disse que a amava o suficiente para deixá-la ir se fosse preciso, mas eu não esperava que deixá-la partir seria tão dolorido e difícil.
— Tem certeza? — Insistiu, virando o rosto em minha direção. Ele me lembrava Jordan, de alguma forma. — Você, normalmente, não cala a boca um minuto sequer!
— Isso não é verdade! — Protestei, franzindo o cenho.
Ele riu, erguendo uma de suas sobrancelhas.
Brandon era 9 anos mais velho que eu, estava no time há muito mais tempo que eu, e, como eu era o novato, os outros caras costumavam pegar no meu pé, especialmente por eu ter conquistado o posto de titular no time de ataque em tão pouco tempo. Brandon costumava me "defender" da implicância.
Ele era um Running Back e tanto, seus braços eram grandes e fortes e, apesar de ele ser mais baixo que eu, ele me derrubaria sem qualquer tipo de problema, o cara era forte, parecia um armário. E era um tanto engraçado olhar para ele, seu sorriso brincalhão contrastava com o seu porte físico intimidador.
Brandon parou o carro no farol e tamborilou os dedos sobre o volante. Seus olhos castanhos eram tão escuros quanto jabuticabas e sua pele tinha um tom castanho brilhante, que dava ainda mais destaque para seus dentes brancos.
— Fala sério, moleque, aconteceu alguma coisa? — Perguntou ele, acelerando o carro. — Tem a ver com sua volta para Brookline?
Confirmei com a cabeça, constrangido, desviando os olhos para o lado de fora do carro, encarando as luzes turvas pela chuva ficarem para trás.
— Sonhei com alguém que eu não queria — Disse eu, encarando o espaço entre meus joelhos e o porta-luvas.
Brandon ergueu as sobrancelhas, conformado. Ele soltou o ar lentamente pelas narinas, abrindo um sorriso não muito alegre.
— Tem medo de chegar lá e encontrar essa pessoa? — Ele estreitou os olhos.
— Não, é impossível — Dei de ombros.
Por mais que, às vezes, eu quisesse encontrá-la novamente, quisesse poder voltar no tempo e mudar algumas coisas, algumas escolhas, era terminantemente impossível. Allison deveria estar com a vida resolvida na Califórnia e, se eu a reencontrasse, ainda assim, não daria certo. Existiam praticamente três mil milhas entre Michigan e a Califórnia.
— Impossível? — Perguntou ele, fazendo uma careta confusa.
— Ela mora na Califórnia, agora. Eu provavelmente nunca mais vou vê-la novamente, então só espero que ela esteja bem e feliz — Recostei a cabeça no banco.
— Então é uma garota? — Brandon sorriu de canto.
Eu hesitei. Não queria ter dado tão na cara que era sobre uma garota, muito menos dar a entender que eu sentia falta da minha ex-namorada da adolescência. Quantas pessoas no mundo realmente foram apaixonadas perdidamente pelos seus namorados de adolescência e, depois, descobriram que não existia amor? Milhares de pessoas. Mas eu realmente amava Allison, e dizer aquilo para Brandon, depois de cinco anos longe dela, era o mesmo que contradizer toda a minha postura de sempre.
Eu não ligava para a droga da minha reputação, mas detestava dar o braço a torcer.
— Não precisa se sentir tanta vergonha assim, tá tudo bem — Ele riu. — Mas é um tanto irônico. O que ela era? Uma paixonite adolescente que você nunca conseguiu contar sobre seus sentimentos?
— É pior que isso — Afundei ainda mais no banco, querendo desaparecer dali.
— Não me diga que...
— É. Eu tô falando da minha ex-namorada — Resmunguei, nervoso.
Brandon deu risada, não debochando de mim, mas conformado com a resposta.
— Me surpreenda que alguém como você teve uma namorada um dia. Você consegue qualquer garota que quiser e, honestamente, compromisso não é lá o seu ponto forte — Disse ele, me lembrando do meu atraso. — Mas as coisas não são, exatamente, impossíveis, sabe como é, a vida é uma loucura!
— Cara, a Califórnia é do outro lado do país — Estreitei os olhos para ele. — É meio longe!
— Somos jogadores de futebol americano, Carter, a gente meio que viaja bastante — Brandon revirou os olhos.
— Eu sei disso, é que... — Baixei a cabeça. — Ela já deve ter refeito a vida dela inteira, não quero acabar com tudo ou, sei lá, atrapalhar os planos dela.
— Há! — Ele apontou para mim. — Ainda gosta dela!
Meu Deus, como eu detestava aquele cara.
Ele conseguia captar todo tipo de coisa nas minhas falas, e sempre as jogava contra mim. Ethan costumava fazer aquilo o tempo inteiro, mas por mensagens era menos recorrente do que quando vivíamos um grudado no outro.
— Não é isso! — Recuei, tentando mudar a situação. — Não sinto mais nada por ela, pelo amor de Deus, já faz cinco anos!
— Mas você tá morrendo de medo de que ainda sinta algo por ela! — Ele cutucou meu braço. — Anda, eu sei que seu coração não é uma pedra tão dura quanto você diz ser!
— Dá um tempo! — Revirei os olhos.
— Por que é tão difícil pra você admitir algo assim? — Ele perguntou, parando o carro na frente do terminal do aeroporto.
Encarei-o por alguns segundos, eu não tinha uma resposta. Eu não sabia o porquê de ser tão difícil admitir para mim mesmo que meu coração não era tão duro quanto eu queria que ele fosse. Talvez, se meu coração realmente fosse mais inteligente ou coisa do tipo, as coisas doeriam menos, mas eu ainda era o mesmo cara que chorava de saudade da mãe quando desligava o celular depois de uma chamada, e o mesmo que não sabia se expressar tão bem quanto deveria.
Eu ouvia, depois das entrevistas, que a internet me achava um fofo ou coisa do tipo, mas eu não queria ser visto como um cara fofo, eu mal tive coragem de mandar mensagem para a garota que eu sempre amei e, talvez por isso, depois de cinco anos, as coisas nunca mais poderiam tomar o rumo que eu queria que tomassem.
— Porque eu admitiria, se eu ainda sentisse algo por ela! — Menti, abrindo a porta do carro e saindo o mais rápido possível.
Eu sabia que aquela resposta não tinha convencido Brandon, mas era a melhor que eu consegui elaborar dentro da minha cabeça.
Ele me ajudou a tirar as coisas de dentro do porta-malas e me acompanhou até o embarque, não faltava muito tempo para que o avião levantasse voo, então eu precisava ser rápido, o que resultou em uma despedida rápida e mais fria do que eu gostaria.
Brandon acenou uma última vez para mim e eu despachei minhas malas e corri para o embarque.
Foi o voo mais longo da história da humanidade. Um voo de Ann Arbor, no Michigan, até Boston, em Massachusetts, durava duas horas, mas eu juro que aquele voo durou, pelo menos, mil anos.
Olhei para as nuvens pela janelinha pequena do avião, minha mente me sabotava o tempo inteiro e eu detestava aquilo. E se eu esbarrasse com ela por aí? Eu sentiria tudo novamente? Eu realmente superei tudo aquilo? É possível superar algo assim?
Não consegui sequer pregar meus olhos e dormir, eu estava inquieto, passei o voo inteiro andando pelo avião, dando a desculpa de que eu precisava ir no banheiro. Respirei fundo e afundei a cabeça no banco quando percebi que um par de olhos âmbar me encaravam ao meu lado.
— Você é o Daniel Carter, né? — Perguntou o garotinho. — Eu assisti todos os jogos da última temporada, você é o melhor quarterback que eu já vi jogar!
— Obrigado — Eu ri, ainda meio sem graça. Não tinha me acostumado com aquele tipo de coisa. — Qual o seu nome?
— Kenneth — Respondeu ele, empolgado, e se ajeitou melhor no banco ao meu lado. — Quero ser tão bom quanto você quando eu crescer!
— Quer ser jogador de Futebol Americano, também? — Perguntei.
Kenneth balançou a cabeça, positiva e exageradamente.
— Eu treino duro com o meu pai — Ele apontou para o homem que estava sentado do lado dele. — Mas, não fala pra ele — Kenneth curvou-se em minha direção, com a mão na frente da boca e eu me curvei para o lado para que ele cochichasse em meu ouvido —, ele é meio ruim!
Eu dei risada, desviando os olhos para o pai do garoto.
— Você é muito bom, sr. Carter — O pai do garoto estendeu a mão para mim. — É um grande prazer te conhecer!
— O prazer é todo meu! — Apertei a mão do homem. — E seu nome é...?
— Lawrence — Ele respondeu ele. — O último jogo do campeonato, nossa. Uma pena vocês não terem ganhado, seus arremessos foram incríveis!
— Os Chiefs têm uma defesa bem forte, infelizmente — Dei de ombros. — Quem sabe na próxima temporada, né?
— Você vai massacrar eles na próxima temporada! — Disse Kenneth, gesticulando com as mãos, fazendo o movimento de esmagar com um soco em sua outra mão. — Mal posso esperar para assistir!
Eu tive sorte. Todo aquele holofote que existia em cima de mim não era nada mais do que esperado. Eu tinha me saído muito bem nos Drafts e fui recrutado como Quarterback em 2020, logo depois da saída do Tony Shores do Michigan Pirates, e eu me sentia vivendo um sonho de infância.
Meu Combine foi considerado o melhor da minha rodada do Draft, e eu saí liderando grande parte deles, a mídia ficou em cima de mim desde o começo, especialmente porque eu estava "ocupando" o lugar que o grande — no sentido literal, também — Tony Shores. Era um choque para muita gente, e grande parte dos fãs dos Michigan Pirates ficaram com um pé atrás até depois dos primeiros jogos em que tive oportunidade de jogar.
Fui o último jogador a ser escolhido, já que o Pirates foi o último time a escolher um jogador do Draft porque eles tinham vencido o último Super Bowl — o vencedor é o último a poder contratar alguém do Draft. Então a tensão de poder me ter fora muito grande entre muitos times, no fim, talvez por muita ironia do destino, os Pirates conseguiram me ter para si.
Admito que no começo fora difícil. Não era fácil ouvir coisas como "O que os Pirates estavam pensando quando contrataram esse pirralho de 22 anos? Ele não parece ter força suficiente", e eu não podia os julgar por tudo aquilo, apesar dos meus resultados do Combine, eu seguia sendo o mais novo do time, o quarterback mais baixo e mais leve — enquanto eu esbanjava 185 centímetros e 83 quilos, o quarterback mais baixo depois de mim tinha oito centímetros e quinze quilos a mais que eu.
Eu tinha um ano de time, ou quase isso, mas meus resultados estavam fazendo com que os holofotes se virassem para mim como se eu fosse uma espécie de "promessa melhor do que Tony Shores foi para os Pirates", e aquilo me assustava, de certa forma.
Era uma responsabilidade grande demais. Tony era considerado o melhor jogador do país antes de se aposentar, logo quando eu entrei. E "tomar" o lugar dele como quarterback titular era aterrorizante, eu não podia cometer qualquer erro, ou seria massacrado.
— É, confesso que não botava muita fé em você até te colocarem para jogar de verdade — Disse Lawrence, dando de ombros. — Pensei que as coisas fossem desandar, achei que o técnico estivesse maluco em te colocar logo de cara você tinha acabado de sair do Draft, não tinha como se equiparar aos outros jogadores, mas você é surpreendente!
— Valeu — Espremi os lábios.
— O que você fazia quando era mais novo? — Perguntou ele. — Que tipo de treino, sabe? Alguém como você é difícil de achar!
— Meu pai era muito bom em Futebol Americano quando era mais novo, foi um quarterback também — Dei de ombros, dando uma olhada pela janela do avião. — Ele teve filho muito cedo, então optou por não se arriscar numa carreira no esporte, especialmente porque ele seria um quarterback mais baixo que eu — Expliquei. Eu era um tanto mais alto que meu pai, e, por mais que ele fosse habilidoso e tivesse uma visão de jogo, talvez, melhor que a minha, ainda seria difícil para ele com um e setenta e oito de altura. — Meus dois irmãos mais velhos não ligavam muito para esporte ou coisa do tipo. Meu irmão mais velho chegou a jogar na escola, mas não era algo muito fora da curva... — Continuei. Os olhos dos dois estavam presos em mim como se assistissem a um filme muito interessante. — Mas aí eu nasci e meu pai percebeu que eu gostava de jogar, então ele começou a me treinar bem pequeno, eu tinha uns cinco anos. Era divertido!
Kenneth virou-se para Lawrence, o cabelo claro e cortado em tigela balançou atrás de sua cabeça.
— Pai, viu? — Ele disse, eufórico. — Ele também treinava com o pai dele!
— Vai ser melhor que eu, quando crescer — Disse eu, despertando a atenção do garotinho para mim. — E eu quero assistir aos seus jogos, entendeu? Então trate de se tornar o melhor jogador de todos!
— Pode deixar! — Disse ele, batendo as mãos nas pernas.
Aquela não costumava ser a reação da maioria das pessoas quando eu falava que meu pai me treinava desde os meus cinco anos de idade. Alguns dos meus colegas de turma da faculdade me falavam que meu pai era um tipo de maluco obcecado em passar o sonho dele para frente, porque ele era um cara frustrado e triste, porque, toda vez que eu falava que o Futebol Americano não era o meu primeiro sonho de vida, todo mundo achava que eu estava me esforçando daquela forma por um motivo fútil ou idiota e que não me pertencia.
Mas eu gostava, eu amava jogar e adorava saber que eu estava ganhando a minha vida com aquilo. Eu amava música, e me formar na faculdade e começar a jogar profissionalmente me deu a oportunidade de me aproximar da música de uma forma mais íntima.
Eu demorei para entender que eu não tinha sido feito para ser um músico ou coisa do tipo, mas quando entendi, as coisas melhoraram. Eu melhorei.
Sempre que me diziam que meu pai era um maluco obcecado e frustrado, eu rebatia dizendo que era muito grato por todas as vezes que meu pai me acordou às seis da manhã, nos sábados, e me ensinou a arremessar, a correr, a ter visão de jogo desde pequeno, porque, graças àquilo, eu tinha os melhores resultados do futebol americano universitário e, consequentemente, consegui me garantir em um dos melhores times do país.
***
Minhas malas foram uma das primeiras a saírem do avião, o que era um ponto positivo de chegar atrasado, as malas eram as últimas a serem colocadas no avião, mas as primeiras a saírem dele. Peguei elas sobre a esteira e corri para fora dali o mais rápido que pude. Ethan estava me esperando do lado de fora, com as mãos na cintura e meio impaciente.
Eu tinha combinado aquele dia com ele muito tempo antes, e ele estava empolgado em me receber de volta em Brookline, especialmente porque aqueles dias que eu passaria ali seriam os mais nostálgicos possíveis. Com ele em Brookline e Jordan morando em Boston, eu tinha tudo o que eu precisava para passar as melhores semanas da minha vida antes do training camp, no meio de julho.
Ele não tinha mudado absolutamente nada. Os mesmos olhos meio caídos, o cabelo loiro e mediano estava jogado para trás e ele continua magrelo e meio esquisito, com um senso de moda um tanto duvidoso, usando uma gravata frouxa ao redor do pescoço, junto com uma jaqueta preta e por cima de uma camiseta cinza.
— Sabia que o seu voo atrasou vinte e três minutos? — Ele retrucou, tirando minhas malas das minhas mãos e me dando um abraço apertado.
— Também senti saudade. Ah, eu tô bem, obrigado por perguntar — Revirei os olhos, empurrando-o pelo ombro.
— Uau, seu dramático, continua a mesma donzela de coração mole de sempre? — Ele riu, pegando uma das minhas malas. — Como foi a viagem?
— Longa — Reclamei, caminhando ao lado dele.
Ethan estreitou os olhos.
— São só duas horas de viagem — Ethan estreitou os olhos. — Não demora tanto assim!
— Acredite, foi a viagem mais longa da minha vida!
Ethan e eu não tínhamos perdido contato, mas era muito menos frequente. Nós precisávamos conversar por mensagens e por videochamadas, e era um tanto frustrante, não era a mesma coisa, e com as nossas rotinas completamente diferentes, era ainda mais difícil saber de tudo o que estava acontecendo e até de desabafar as minhas mazelas para ele.
Ver ele, de certa forma, me deixava aliviado. Saber que nem tudo estava tão diferente quanto eu pensei que estaria quando eu voltasse, foi um alívio e tanto, especialmente porque ele continuava o mesmo cara de sempre. Apresentar vários teatros ao redor do país não tinha transformado o meu melhor amigo em um cara completamente diferente.
— Vamos logo, eu tô com fome e qualquer coisa dentro desse lugar custa mais que meu salário! — Disse ele, me empurrando na direção da saída do aeroporto.
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