29. Older
Cooper
Passei o dia inteiro deslizando o pincel sobre a tela, manchando de tinta cada pequeno detalhe do quadro que eu queria entregar o mais rápido possível para Helen Carter. Aparentemente, tudo que existiu ou que poderia existir entre mim e Daniel tinha descido pelo ralo e quanto mais rápido eu me livrasse da presença daquele quadro, mais rápido eu sentia que me libertaria da maldita corrente que parecia nos arrastar involuntariamente para o mesmo caminho.
Adalia decidiu ir embora assim que percebeu que o clima já não era mais o mesmo. No fundo, eu sentia que ela queria incontrolavelmente entender o que tinha acontecido, ou o porquê de eu ter ficado tão irritada, mas não queria ter que falar sobre aquilo com mais ninguém.
Por um lado, eu sabia que Daniel provavelmente estava certo e que ele provavelmente não tinha se confundido ao ver meu pai com outra mulher, mas o fato de não ter uma mísera prova ainda me dava algum ar de esperança. Eu queria tirar a prova sozinha.
Respirei fundo, olhando pela janelinha da sala, já tinha escurecido e eu estava completamente exausta. Passei os dedos pelos olhos, tentando afastar um pouco do cansaço, eu precisava descansar a mente ao menos um pouquinho.
Senti o celular vibrar no bolso da calça e o puxei para dar uma olhada, não era nada muito importante, só minha mãe me pedindo para adiantar o jantar e arrumar a mesa.
Eu estava feliz por poder deixar aquele quadro de escanteio por um tempo, por mais que algumas coisas ainda fossem demorar para ficar prontas, já tinha conseguido adiantar uma boa parte e poder espairecer a mente fazendo outra coisa que não fosse enfrentar aquele oceano turbulento que eram o retrato perfeito dos olhos dele era reconfortante.
Abandonei o quadro e tranquei a porta, atravessando o escritório o mais rápido que eu pude. Me enfiei na cozinha, abrindo os armários e separando os pacotes de macarrão. Eu não era nenhuma chefe profissional, mas meu macarrão com queijo definitivamente era um dos melhores.
Separei cada um dos ingredientes sobre a bancada, dando um passo para trás para ter uma visão ampla de tudo o que eu tinha pegado pela cozinha, só para ter certeza de que não estava faltando nada. Passei os olhos ingrediente por ingrediente e me dei conta de que já podia começar a colocar a mão na massa.
— Precisa de ajuda? — A voz de Samuel quase fez meu coração sair pela garganta.
— Quando foi que você chegou? — Perguntei, me virando para ele.
Sam deu de ombros, colocando a mochila na cadeira. Ele caminhou até a pia e arregaçou as mangas do moletom verde, lavando as mãos rapidamente.
— Acabei de chegar — Ele respondeu rapidamente, sem se prolongar muito.
Samuel não era mais criança e me lembrar desse fato era sempre assustador. Ele já estava mais alto que eu, sua voz tinha engrossado e ele precisava fazer a barba quase todo dia, porque mesmo que não fossem muitos pelos, o bigode sempre parecia o incomodar.
Entreguei a panela para que ele enchesse de água. Sam costumava ficar tantas horas trancado no quarto e na biblioteca que eu mal conseguia conversar com ele ocasionalmente, era como se ele fosse um fantasma, e nas poucas vezes em que nos víamos pela casa, ele parecia sempre estar prestes a pegar no sono.
— Como foi hoje? — Perguntei, encarando a receita do macarrão na tela do celular.
— Foi um saco — Ele rolou os olhos. — Odeio física, essa porcaria não entra na minha cabeça e faz meses que eu tô dando duro pra aprender!
— Vai aplicar pra qual? — Olhei-o rapidamente.
— Princeton — Ele suspirou. — Mas se eu não souber física, não adianta optar pelo curso que eu quero depois do segundo ano...
— Você estuda demais, precisa relaxar um pouco!
Coloquei o macarrão na panela, checando o fogo e apoiando as costas na beirada do balcão. Sam suspirou e murchou os ombros.
— Nem todo mundo tem a sorte de ser inteligente que nem você. Eu tenho que estudar, já que meu currículo escolar não era tão bonito quanto o seu!
— Você é inteligente!
— Não como você!
Suspirei, Sam era inteligente, ele conseguia resolver coisas que eu nunca conseguiria sequer procurar por respostas, mas suas notas nunca foram muito altas, era o suficiente para que ele não bombasse em nenhuma matéria.
— Mas você tem se esforçado, e isso é importante também — Me virei para os armários.
Abaixei na frente do armário de pratos e puxei a pilha para perto, entregando-a nas mãos de Sam.
— Coloca isso na mesa e depois os talheres, eu vou ficar de olho no macarrão!
Enquanto eu dava uma olhada no molho de queijo e no macarrão, Sam distribuía os pratos sobre a mesa, ambos domados pelo silêncio constrangedor das frases de efeito que não tinham tanto efeito quanto eu queria que tivessem.
Gostaria que Sam entendesse física se isso o fizesse se sentir melhor, era duro vê-lo se sacrificar tanto por algo que ele estimava e, de tanto forçar a mente, muitas vezes nem conseguir sair do lugar. Sabia que ele se sentia um tanto quanto estagnado nos estudos, preso no que ele acreditava ser o único caminho para a faculdade e não fazia ideia de como o ajudar.
A porta da frente abriu e, eufórica como uma criança prestes a ganhar um presente, me virei naquela direção, queria ver meus pais chegando em casa, juntos, como costumavam fazer quando eu era adolescente.
Tudo o que vi foi minha mãe, o cabelo levemente molhado pela chuva do lado de fora, o corpo sendo iluminado nas costas pelos relâmpagos que cortavam o céu, as sacolas em seus braços a deixando um tanto atrapalhada enquanto ela se contorcia para trancar a porta novamente.
Sam se prontificou em correr para ajudá-la.
Eu sentia meu coração pesar no peito, empurrando todos os meus órgãos para baixo, como se, a qualquer instante, todos eles fossem escapar para me assistir morrer lentamente. A droga da decepção era uma das piores. Meu pai não estava com a minha mãe, e por mais que vê-la entrando sozinha pudesse não significar absolutamente nada, para mim, significava. Eram raras as vezes em que ela chegava sozinha, costumava ser.
Ela prontamente atravessou a sala de jantar, me abraçando por trás e beijando minha bochecha antes de colocar um galão de suco dentro da geladeira.
— Obrigada por adiantar tudo, filha — Ela respirou fundo, passando a mão no cabelo, afastando a água.
— E o papai? — Perguntei, olhando-a de soslaio.
Os olhos dela baixaram rapidamente, como se ela se esquecesse de que eu era capaz de perceber toda a sua movimentação. Ela estava chateada, mas não muito surpresa.
— Reunião da gerência... — Minimizou. — Falta muito? Tô morrendo de fome!
— Não... — Suspirei, conformada. — Já vai ficar pronto...
∞
O jantar foi uma catástrofe.
Era como se estivéssemos no funeral da nossa própria família. Não tínhamos assunto e nem vontade de tentar puxar um só para variar. Passei o jantar inteiro encarando o meu prato até que ele magicamente esvaziasse.
Sam foi o primeiro a sair da mesa, dando a desculpa de que tinha alguns problemas de física para tentar resolver. Eu, por outro lado, queria ficar plantada naquela cadeira até que meu pai aparecesse na porta da sala, eu queria confrontá-lo sóbria, perguntar tudo o que eu perguntei quando bêbada, mas com juízo suficiente para computar suas respostas de forma mais clara.
— Eu lavo a louça — Minha mãe levantou-se, tirando meu prato. — Pode ir descansar. Ainda tem tinta no seu rosto, deve ter sido um dia bem cheio!
— Mas e você? — Apertei os dedos, sentindo a raiva crescer no peito.
Ela abriu um sorriso fraco e dolorido.
— Vou esperar seu pai!
Confirmei com a cabeça lentamente antes de me levantar.
Era como se eu estivesse pisando em cacos de vidro. Não queria deixá-la sozinha, queria poder proteger seu coração que já estava se destruindo lentamente, mas, ao mesmo tempo, não queria ver os olhos do meu pai sobre os meus.
Eu me odiava por ser mais parecida com ele que com minha mãe, e sabia que, de alguma forma, doía nela também, sempre olhar para mim e ser capaz de se lembrar dos olhos do meu pai, talvez fosse pior olhar para mim e ver que eu e meus irmãos éramos o resultado falho de sustentar um relacionamento que, no fundo, nunca existiu realmente.
Ela estava lutando uma batalha sozinha, tentando amarras as pontas de duas cordas distintas e distantes, suas mãos provavelmente já estavam em carne viva, porque foram muitos anos de sua vida junto de um cara que facilmente a deixava de lado.
Depois da conversa estranha que tive com ele quando estava bêbada, era comum que algumas lembranças saltassem de volta para o consciente da minha mente, como um estalo rápido de todas as vezes em que eu deveria ter percebido que aquele relacionamento não passava de uma máscara fajuta e mal feita.
Todas as vezes em que meu pai não aparecera nos recitais da escola, ou em todos os jantares de aniversário de casamento que ele supostamente esqueceu ou que inventou não ter dinheiro só para não precisar comemorar, dos dias dos namorados que minha mãe ignorou por anos porque, segundo meu pai, era só mais uma data ridícula para gastar dinheiro que não tínhamos sobrando, das viagens de família que eram até desconfortáveis, porque ele passava mais tempo conversando com o irmão caçula que com a minha mãe, passava noites bebendo com ele e nos deixava no quarto do hotel na expectativa de jantarmos algo diferente.
Eu tentei dormir depois do banho. Juro que tentei pregar meus olhos e mandar a minha mente para longe da realidade, mas era impossível. Tudo o que eu conseguia pensar era em Daniel me contando sobre o que ele vira, ou sobre o que ele achou que tinha visto e, automaticamente, todas as lembranças saltavam na minha mente, como um lembrete de que eu deveria tirar as coisas a limpo.
Não ali, não naquela hora, seria idiotice minha, mas eu ouvi exatamente quando ele chegou em casa. Eles mal se falaram, as respostas eram curtas e frustrantes, quase jogadas ao vento, largadas para trás. Minha mãe ainda tentava insistir, talvez com as poucas esperanças que ela tinha de viver um romance como a porra do romance dos Carters, mas era tudo em vão, sempre foi tudo em vão.
Todas as vezes em que ela, sorridente, dizia para esperarmos mais um pouquinho para que meu pai chegasse em casa, todas as vezes em que ela nos levava, sozinha, para restaurantes nas nossas viagens em família. Todas as vezes em que ela, sozinha, limpou a casa inteira, trocou as lâmpadas, participou de recitais, shows de talentos, reuniões de pais e mestres, porque ele supostamente tinha trabalho demais.
E mesmo quando eles voltavam juntos do trabalho, quase todos os dias, e cozinhavam o jantar, juntos, mas quase não conversavam quando sentados à mesa. Era tudo uma farsa. Apenas uma tentativa boba de tentar reacender o fogo. O problema é que o fogo nunca existiu, e a madeira estava ensopada pela chuva.
Esperei que eles subissem para o quarto e ficassem quietos o suficiente para que eu pudesse colocar o meu plano em prática. Eu queria provas e tentaria as arrumar de qualquer jeito.
Contei quase quarenta minutos antes de sair do quarto, porque eu queria ter certeza de que eles dormiriam. Me esgueirei pela beirada da porta do quarto deles, empurrando-a o suficiente para que eu pudesse vê-los em sua cama, um virado para cada lado.
Fiquei estancada por alguns minutos antes de dar o primeiro passo para dentro do quarto. Tive medo de que, magicamente, um dos dois acordassem me lançando a pergunta mágica que eu não fazia ideia do que responder.
"O que você tá fazendo aqui?". Sei lá. Errei a porta.
Eu conhecia bem o ambiente, não era como se eu estivesse em um labirinto desconhecido e sem um mapa, conhecia o quarto como a palma da minha mão, porque ele não tinha mudado absolutamente nada desde que eu tinha ido embora.
Os móveis ainda estavam no mesmo lugar de sempre, o que era ótimo, já que, previsivelmente, o celular do meu pai estava estampado sobre a mesa de cabeceira do seu lado da cama, conectado ao carregador.
Lentamente, com a ponta dos pés, que estavam cobertos por meias, passo por passo, me aproximei da mesa de cabeceira. Dei uma boa olhada no meu pai, ele não parecia carregar nenhum peso na consciência, dormia tranquilamente como um bebê embalado no colo da mãe.
Puxei o carregador para longe da tomada, apertando-o contra o peito no instante que o aparelho emitiu um som, alertando que o carregador tinha sido desconectado. Puta merda, por que não chequei isso antes?
Respirei pesadamente, me levantando com cuidado, mas não me esticando por completo, não queria que meus joelhos estralassem e acordassem meus pais, eles não podiam me ver por ali, tudo iria por água abaixo.
Saí do quarto ainda na ponta dos pés, fechando a porta com cuidado até que eu pudesse andar normalmente.
Uma vez, enquanto assistia documentários de crimes não resolvidos durante uma festa de pijama, Adalia me disse que não existiam crimes perfeitos. Independentemente do quão habilidoso o criminoso fosse, uma pista sempre ficaria para trás, fosse um fio de cabelo, ou até os dentes que ele esqueceu de recolher depois de derreter um corpo com ácido sulfúrico.
Meu pai não era um criminoso, e também não era a pessoa mais meticulosa do universo, então eu sabia que encontraria qualquer coisa que me guiasse para as respostas que eu procurava em seu celular.
Tranquei a porta do quarto apenas por segurança, não queria ser interrompida na minha investigação. Sentei-me na cama e coloquei o celular e meu notebook velho na frente das minhas pernas, por uma fração de segundos, pensei que eu estava sendo uma completa idiota, que eu não deveria invadir a privacidade do meu pai só para descobrir se tudo o que passava pela minha cabeça era mesmo verdade.
Eu podia ser considerada uma criminosa tanto quanto ele, mas a minha curiosidade, talvez a minha decepção, para falar a verdade, era muito mais forte que a incerteza. E se eu estivesse fadada a viver uma mentira?
Acendi a tela do celular do meu pai, observando o baixo nível de bateria. Puxei a cama, deixando que a tomada que se escondia ali atrás ficasse amostra e eu pudesse deixar o celular dele carregando enquanto eu vasculhava-o por todas as pontas.
Procurei primeiro na galeria de fotos, sabia que provavelmente não encontraria nada, meu pai não gostava de tirar fotos e aquela era só mais uma das características que compartilhávamos. Vasculhei por todas as pastas, temendo o que eu encontraria. Por sorte, nada demais.
Eu rodei por todos os aplicativos, eu queria procrastinar o máximo que pudesse, adiar o aplicativo de mensagens o máximo possível, porque eu sabia que seria ali que eu encontraria todas as provas de que Daniel estava certo e que, no fim das contas, meu pai era um canalha descarado.
Mas não tinha jeito. Eu já tinha olhado tudo, das fotos até os contatos do celular, ninguém parecia muito suspeito, tudo o que me restava era os SMS's.
Prendi a respiração quando abri o aplicativo, as várias mensagens estavam ali, algumas de minha mãe, perguntando se ele demoraria para chegar em casa, não tinha uma resposta, ele mal tinha se dado ao trabalho de visualizar. Mais para baixo, algumas mensagens dos colegas de trabalho, perguntas sobre o que deveriam fazer, e tudo parecia normal, cheguei a me sentir decepcionada comigo mesma por ter me empenhado tanto para acreditar em uma incerteza do meu ex, mas, entre os nomes que se mesclavam com os funcionários da empresa, estava o de Susan Brockway, a secretária da empresa.
Susan não era uma pessoa ruim, eu a conhecia. Ela tinha entrado para a empresa de contabilidade que meus pais trabalhavam quando eu entrei para o ensino médio, ela era uns quinze anos mais nova que meu pai, tinha um corpo exuberante e cheio de curvas, cabelo escuro que caía em ondas quase perfeitas por seus ombros e olhos penetrantes como agulhas.
Eu não entendia o motivo de ter mensagens de Susan no celular do meu pai, eles não eram do mesmo setor, teoricamente, mal deveriam conversar, principalmente porque corporativamente falando, eles não tinham nada a ver. Meu pai era gerente de um setor de contadores, ela era uma secretária de um setor completamente diferente.
Meus olhos correram mensagem por mensagem. Estava ali. A prova de tudo estava diante dos meus olhos. Eles tinham combinado de se encontrarem depois do expediente e, por isso, meu pai inventara a desculpa da reunião da gerência.
Procurei pelas mensagens do domingo que Daniel disse que os vira juntos. Estava ali, dois dias antes, eles tinham combinado de almoçar. Três dias antes, tinham marcado de ir para um motel, duas semanas antes, meu pai tinha a dito que estava divorciado, um mês antes, disse que estava em processo de divórcio, dois meses antes, ele disse para ela que "Marianne não significa nada, estou com ela porque ela não quer se separar", mas era mentira, ele não tinha a mínima coragem de pôr um ponto final neles dois.
Passei os dedos pelos olhos, cansada. Eu estava tão anestesiada por tudo o que tinha lido que mal sabia como deveria reagir, se eu deveria acordar a casa inteira e fazer um escândalo, se eu deveria chantageá-lo, se eu deveria confrontá-lo.
Enviei toda a conversa para mim por e-mail, da primeira à última mensagem, não deixei nada escapar. Cautelosamente, devolvi o celular para a mesa de cabeceira ao lado de sua cama e, como se estivesse pisando em nuvens, desci as escadas de casa com o notebook debaixo do braço.
Minha casa parecia muito mais assustadora iluminada apenas pelo brilho azulado da madrugada. Os trovões e relâmpagos que invadiam as janelas com sua luz prateada iluminavam os móveis em um piscar de olhares. O silêncio era quase consolador, se não fosse como uma adaga entrando e saindo do meu peito incontrolavelmente.
Eu queria um pouco de som, eu precisava ocupar minha mente com algo que não fosse os meus pensamentos. A minha incredulidade tinha custado o amor da minha vida de um jeito tão tosco e rápido que eu me sentia péssima pela primeira vez desde que Daniel saíra pela porta da frente. Eu sabia que ele estava certo, no momento em que ele disse que tinha visto meu pai com outra mulher, eu sabia que cada uma daquelas palavras eram terminantemente verdadeiras.
Tinha convicção firme de que ele não tinha se confundido, mas eu queria me agarrar às poucas esperanças que eu tinha de que, de alguma forma, minha família não era um completo fracasso.
Destranquei a porta do escritório, escancarando a escrivaninha e a impressora sobre ela, ambas brilharam uma melancolia quase palpável quando mais um relâmpago rasgou o céu e pintou tudo de branco.
Procurei por todo o escritório por mais folhas, porque eu precisaria de várias, e assim que as encontrei, coloquei na impressora. Chequei os tonéis de tinta, queria ter certeza de que não terminariam na metade da impressão e, para a minha sorte, quase não usavam aquela impressora, então todos eles estavam carregados.
Fechei a porta do escritório e a tranquei, cautela nunca seria demais quando o assunto era a minha família, tudo poderia acontecer, principalmente com a minha incrível "sorte de vilão de desenho animado".
Conectei o notebook à impressora, acessando meu e-mail e abrindo o arquivo com todas as mensagens. Era o fim, o ponto final. Meu pai findaria o relacionamento frágil e tosco que ele tinha com a minha mãe, por bem ou por mal.
O som da impressora imprimindo página por página todas as mensagens que eles trocaram por quase seis meses era como uma orquestra perfeita e impecável, a trilha sonora do fim, da morte, do amor e da falta dele.
Aquilo demoraria quase uma eternidade, eu me impressionava com a quantidade de mensagens que eles tinham trocado todo aquele tempo, mas apreciei cada segundo da demora, sentada na cadeira que um dia fora o triunfo do meu pai, meus olhos prontamente corriam para as páginas, grampeando-as por grupos, separando os meses e ordenando cada uma delas.
A pilha aumentava gradativamente e o meu sono parecia se afastar do meu corpo cada vez mais.
Iluminada apenas por um abajur pequeno que deveria ser usado como uma luz complementar para leitura, eu passava os olhos pelas mensagens, revisando tudo, grifando com o marcador amarelo as mensagens mais sugestivas, anotando as datas, ligando os pontos.
Como eu nunca percebi isso? Como a mamãe nunca percebeu?
Mas talvez ela já tivesse percebido, talvez ela fingisse não enxergar para não piorar as coisas.
O coração dela estava tão machucado que o mínimo sinal de mais dor poderia ser demais para que ela suportasse. Ela já tinha passado por tanto.
Tinha passado tanto tempo organizando cada uma das várias folhas que compunham a traição do coração da minha mãe que mal percebi o céu raiar pela janela, iluminando todo o escritório como se a noite anterior não tivesse sido dominada por uma tempestade forte e barulhenta.
Eu tinha que sair dali e ir para o meu quarto. Eu tinha que confrontar meu pai, mas o período da manhã não parecia ser muito adequado, minha mãe estaria por ali e aquilo não deveria se tornar um circo de horrores.
Abri a porta do escritório, carregando o notebook debaixo do braço e as milhares de folhas na mão livre. De repente, os dois apareceram no topo da escada, prontos para tomarem café da manhã antes do expediente longo.
Instintivamente, coloquei as folhas atrás do corpo, os olhos quase pularam para fora de órbita. Merda...
— Acordou cedo! — Meu pai sorriu para mim, descendo os degraus.
— Eu tenho muita coisa pra fazer no quadro, ainda... — Recuei um passo.
— De pijama? — Ele ergueu uma das sobrancelhas.
— Eu esqueci de trocar! — Rebati, rápida. Abri um sorriso sem graça. — Eu estava subindo pra trocar de roupa, inclusive. Se me dão licença...
Bati os pés contra os degraus, dando um beijo de bom dia no rosto da minha mãe.
As coisas podiam ter ido por água abaixo bem ali.
Escondi as folhas embaixo do colchão, junto com o notebook, esfreguei os olhos e decidi trocar de roupa, eu tinha que sustentar aquela mentira até o fim do dia, e esperava soar convincente, ao menos um pouco.
Voltei para a sala, eles já tinham saído de casa, o que era ótimo, eu estava exausta. A vista estava começando a ficar maluca e desgovernada, como se eu estivesse bêbada, mal conseguia ler, as palavras se misturavam e flutuavam na frente dos meus olhos.
Esfreguei os olhos as costas das mãos e caminhei até minha sala de pintura, atravessando o escritório e me escondendo atrás da portinha mágica que me abduzia para longe da realidade. Lá dentro, o meu mundo de sonhos se materializava por completo, eu podia ser quem eu quisesse, estar com quem eu quisesse, a hora que eu quisesse, da forma que eu quisesse.
E quando me deitei no chão, me lembrando da primeira vez em que eu mostrara o que se escondia naquela salinha para alguém que não fossem meus pais ou meus irmãos, abri um sorriso largo, porque era com ele que eu sonharia até ter forças para abrir os olhos novamente.
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