27. Not Enough Love

Carter

Me despedi rapidamente do time depois de pegar minha mala embaixo do ônibus, estreitando os olhos para Dyllon. Ele não tinha se profissionalizado no futebol americano, então não tinha motivo algum para ele estar ali no meio.

Jordan passou na minha frente, me dando um tapinha nas costas e abrindo um sorriso gentil.

— Até mais, capitão — Disse ele, abaixando-se para pegar a própria mala.

Confuso, virei o rosto para o meu próprio reflexo na vidraça da porta do ônibus. O casaco azul com mangas quase brancas, se não fossem levemente amareladas, caía perfeitamente sobre meus ombros, o "W" vermelho se destacava no peito e as mangas estavam arregaçadas na altura dos cotovelos. Virei de costas, observando o emblema do time da escola e "Warriors" gravado logo abaixo, contornando o emblema. Eu tinha dezesseis anos e ainda não tinha me formado.

Franzi o cenho, ainda mais confuso que antes. Teoricamente, eu já deveria ter me formado na faculdade e ter vinte e três anos.

Ajeitei a alça da mala sobre o ombro, caminhando na direção do meu carro no estacionamento. Destravei a porta e joguei a mala no banco de trás, passando as mãos pelo cabelo e suspirando o cansaço dos meus pulmões para fora.

Por algum motivo, eu estava exausto. Era quase como se meu corpo não fosse mais capaz sequer de se manter em pé e tudo o que eu desejava era deitar e dormir, mas uma mão se agarrou ao meu ombro, me obrigando a virar para trás.

— O que você quer, Evans? — Grunhi a frase entre os dentes.

— Acha bonitinho pegar a garota dos outros, Carter? — Ele rebateu, empurrando meu corpo contra a lataria do carro.

Eu ri abafado. Pegar a garota dos outros não era bonitinho ou legal e tudo mais, mas eu não me arrependia nem um pouco de ter beijado Allison tantas vezes.

— Isso é sério? — Perguntei, estreitando os olhos na direção dos globos escuros de Trevor. — Tipo, você passa a mão na bunda de um monte de garotas da escola, esse discurso moralista, vindo de você, é meio irônico!

Trevor estava tão perto que eu podia sentir sua respiração tocar meu rosto. Os olhos se mantinham fixos um no outro, nem mesmo ele acreditava naquela fala imbecil, ele sabia bem que era um completo babaca, mas faria qualquer coisa para defender Miles e seu ego frágil.

Talvez eu não devesse me sentir tão confiante, especialmente sabendo do que se tratava, mas a euforia de poder dar uns murros na cara daquele pau mandado do babacão do Miles era quase incontrolável. Por outro lado, eu me sentia tão exausto pelo último jogo do campeonato que não sabia se teria força suficiente para enfrentá-lo de igual para igual.

— Você tá fodido, Carter!

— Uau, que medinho do escravinho do Miles!

O soco que eu recebi na sobrancelha me desnorteou por milissegundos, mas não tinha sido suficiente para me derrubar, eu ainda conseguia reagir, e sentia todo o meu sangue borbulhar dentro do meu corpo como se gritasse por uma resposta.

Eu sabia que ele não daria a cara a tapa, ele não era burro, só era idiota, sabia que me enfrentar sozinho era burrice, porque mesmo que eu estivesse cansado, conseguiria o derrubar sem muito esforço, ele era péssimo lutando, só era mais resistente que eu para dor.

Nós dois nos socávamos que nem crianças quando um par de braços me agarraram por trás, me impedindo de usar as mãos. Quem quer que estivesse atrás de mim era mais baixo, bem mais baixo que eu, mas não deixava de ser forte — ou talvez eu que estivesse cansado demais para me desvencilhar da imobilização.

— É bem corajoso da sua parte tentar reagir, Carter — Miles riu atrás de mim.

O desgraçado me empurrou para o chão, me cercando junto com Trevor enquanto eu me levantava. Previsíveis pra caralho!

Eu ainda estava em desvantagem, cansado e em menor número. E Trevor não perdia tempo, muito menos Miles, porque era a chance que ele tinha de socar a minha cara e saber que venceria.

Eu não deixaria barato para nenhum dos dois. Eu reagia e até conseguia fazer com que eles momentaneamente se afastassem, o problema é que dois contra um ainda significava ter o dobro de mãos tentando amassar a minha cabeça. Trevor conseguiu me segurar por trás novamente, e eu já estava sem força alguma para reagir. Quase não conseguia ficar em pé sozinho.

Miles estralou os dedos das mãos, mas não disse o que eu esperava que ele dissesse. Seu sorriso maníaco não se formou no rosto e, de repente, Trevor sumiu, me deixando cara a cara com o loiro.

Ele se aproximou lentamente, sacando o canivete de dentro do bolso e observando a lâmina brilhar abaixo da luz fraca e amarelada do poste de iluminação da rua. Miles girou o canivete entre os dedos, dando uma boa olhada nos detalhes que o compunha.

Minha camiseta estava completamente manchada com o sangue que escorria pelo meu rosto, e os fios do meu cabelo caíam sobre o ferimento acima da minha sobrancelha, causando um incômodo ainda maior. Miles não estava contente apenas com aquilo, ele queria mais, muito mais.

— É engraçado, não é? — Ele levantou os olhos na direção dos meus, erguendo uma das sobrancelhas.

Eu não fazia ideia do que era engraçado, porque, se o conceito de engraçado dele era ver a minha cara toda manchada de sangue e todo o meu corpo se banhar em uma mistura nojenta de suor e pedrinhas do chão do estacionamento, eu não via a menor graça naquilo.

— Aqui nesse estacionamento, você provou o gosto da verdadeira dor que o amor pode te causar — Ele passou a lâmina sobre o dedo, checando o fio. — É como sangrar lentamente até a morte, mas, claro você se recusou a morrer, porque você é teimoso demais pra desistir!

Engoli em seco. Eu não tinha exatamente me recusado a morrer, eu só tive a sorte de ter sido levado para o hospital a tempo.

— Como você se sentiu, Daniel Carter? — Ele cuspiu meu nome com desprezo. — Como se sentiu depois de assistir ela se arrastar aos meus pés todas as vezes em que eu a chamei de volta?

— Cala a boca, seu desgraçado! — Grunhi, sentindo meus dedos tremerem.

— Ah, o gato não comeu sua língua, então!

Eu queria arrancar a língua daquele cara na porrada, mas meu corpo não era capaz de reagir, eu não conseguia fazer nada que não fosse abrir e fechar os dedos. Eu não estava com medo, nunca tive medo do Miles, mas meu corpo inteiro tremia, porque eu estava apavorado com a consciência de que eu não podia simplesmente tapar meus ouvidos e ignorar qualquer coisa que ele tivesse para me dizer.

— Acha que Allison ainda te ama? — Perguntou, abrindo um sorriso de canto. — Porque ela não me amava, mas voltou para mim todas as vezes!

— É diferente...

— Tem certeza?

Eu sabia que era diferente, eu tinha plena certeza de que as circunstâncias eram outras. Nós não éramos mais adolescentes, tínhamos responsabilidades de adultos, não tinha um pingo de motivo para que eu vacilasse com aquela pergunta, simplesmente porque eu não era o Miles, eu não tinha manipulado Allison mentalmente, não tinha a chantageado para ficar comigo.

Então... Por que eu não tenho certeza?

— Sabia... — Ele alargou o sorriso cínico ao prender os olhos nos meus novamente. — Eu realmente queria ter acabado com nós três quando tentei te acertar com o canivete. Seria mais fácil para todo mundo!

Miles colocou a ponta do canivete no meu abdômen, pressionando cada vez mais, até que a lâmina perfurou o tecido da camiseta e, logo em seguida, a minha pele, rasgando a carne até que eu sentisse o sangue começar a voltar pela minha garganta, escorrendo pelos cantos da minha boca.

— Esse deveria ter sido o fim da linha para nós três — Ele removeu a lâmina rapidamente.

No mesmo instante, recuperei o controle sobre meu corpo, me curvando para frente e caindo de joelhos no chão. O sangue escorria por entre meus dedos e me deixava asfixiado, o ar não conseguia entrar para os meus pulmões.

Miles foi se afastando lentamente, desaparecendo logo em seguida e, aos poucos, os carros estacionados ao lado do meu também foram sumindo.

Jordan não foi me ajudar, Dwight não apareceu, Dyllon não gritou por ajuda, e minha consciência foi se esvaindo até que tudo se tornasse um breu, um vazio.

Dei um pulo no saco de dormir, sentindo o suor escorrer pelo meu rosto, meu coração bater aceleradamente e minha respiração descompassar. Instintivamente, levantei a camiseta, dando uma boa olhada no meu abdômen, só para ter certeza de que a cicatriz ainda estava fechada.

— Porra, Carter, qual o problema? — Ethan resmungou, esfregando as mãos nos olhos. — Você praticamente socou a minha cara!

Virei o rosto para ele, iluminado pela fraca luz azulada que penetrava para dentro da barraca pela janelinha atrás de nós dois.

— Nada... Foi mal, só... Volta a dormir — Empurrei ele com a mão, o fazendo virar de costas para mim.

Ele franziu o cenho e se ajeitou abaixo das cobertas, afogando o rosto no travesseiro novamente.

Eu não sabia o porquê de ter ficado tão preocupado com uma facada que aconteceu só nos meus sonhos. Quando Miles me acertou com o canivete anos antes, eu não corri, exatamente, risco de vida, não o suficiente.

O canivete deslizara pela lateral do meu corpo, ele não penetrou meu abdômen profundamente como no sonho, não acertou nenhum órgão vital e, por isso, não tive nenhum sangramento interno, mas o calibre do corte foi largo e comprido e, para a minha grande "sorte", acertou um vaso sanguíneo que, em vez de retrair e fazer o sangue se espalhar por dentro do meu corpo como ele deveria fazer, começou a cuspir sangue para fora do corte lentamente.

Passei as mãos pelo rosto, tentando recobrar os sentidos e me acalmar. Quando me levaram para o hospital, eu já estava praticamente sem um pingo de consciência. Eu não me lembrava de muita coisa, pra falar a verdade.

Era tudo um grande amontoado de flashes que, volta e meia, saltavam diante dos meus olhos. Primeiro, Jordan me carregou até a porta de casa e tocou a campainha várias vezes, enquanto gritava para que alguém aparecesse o mais rápido possível.

Depois, meio impaciente, Andrew abriu a porta e começou a passar mal, porque tinha tanto sangue no meu rosto e nas minhas roupas, que ele pensou que não teria forças para continuar.

Jordan tentou fazer com que Andrew me levasse para o sofá, porque ele queria encontrar meu pai ou minha mãe, mas eu acabei desmaiando em cima do meu irmão, que despencou comigo na entrada de casa.

Com a barulheira, meus pais apareceram rapidamente, assustados, e a última coisa que me lembro antes de acordar no quarto do hospital é dos olhos do meu pai aparecendo diante de mim enquanto ele segurava meu rosto entre as mãos, desesperado.

Eu não consegui ouvir o que ele estava gritando, mas sabia que estava, porque seu rosto ficou bem vermelho antes de eu apagar de vez.

Quando eu acordei no hospital, minha mãe estava dormindo na poltrona ao lado da minha cama e ele, como não podia ficar dentro do quarto, estava dormindo na cadeira, do lado de fora.

Deitei novamente, ajeitando a coberta e o saco de dormir. Por mais que um tatâmi estivesse estendido abaixo das minhas costas para que não dormíssemos em contato direto com a lona da cabana, eu ainda era capaz de sentir os galhos criarem protuberâncias sob as três camadas que separavam meu corpo do chão.

Inquieto, tentei pegar no sono novamente, me virando para o lado e trancando os olhos. Tentei acalmar a respiração, contar até mil e ficar sem me mover por quinze minutos, mas nada dava resultado.

Saí de dentro do saco de dormir e vasculhei o quarto apertado com os dedos, até encontrar a lanterna presa entre o saco de dormir do Ethan e a beirada da cabana. Puxei-a com cautela, tentando fazer o mínimo de barulho possível.

Abri o zíper da tela de proteção contra insetos e saí, fechando-a logo em seguida. Liguei a lanterna e passei o feixe de luz sobre a sala da cabana, estremecendo de frio antes de conseguir dar o primeiro passo para frente.

Senti meu coração parar por um instante antes de perceber que a silhueta enorme e meio corcunda não se tratava de um urso que tinha invadido a cabana, mas sim nossas malas e mochilas amontoadas no canto.

Abri uma das caixas térmicas e tirei dali de dentro uma latinha de energético, abrindo-a com a mão livre. Coloquei a lanterna de pé ao meu lado, apontando a luz para o teto, ampliando a quantidade de coisas que ela era capaz de iluminar e me sentei no chão, bebericando o líquido estupidamente doce enquanto encarava as árvores pela janela de plástico.

Eu não fazia ideia de que horas eram, mas sabia que ainda faltava muito para o amanhecer. A lua, redonda e bem cheia, iluminava a copa das árvores, que balançavam com o vento e se mesclavam em uma neblina serrana com um toque azulado e remoto.

A vegetação não era mais verde, o toque prateado e escuro tornava tudo uma variação soturna do mesmo tom de azul, e tudo o que eu conseguia ouvir era o uivar do vendo, algumas corujas, sapos coaxando e galhos estralando na mata densa.

Ouvi o zíper de uma das telas de proteção deslizar duas vezes e, segundos depois, Ethan se sentou ao meu lado com uma latinha de energético em mãos. Seus olhos inchados e seu rosto amassado deduravam o sono quase incontrolável que ele sentia. Ele respirou profundamente, levando a latinha até os lábios e dando algumas goladas no energético.

— Depois do soco, perdi o sono — Comentou, mesmo que eu soubesse da mentira. — Qual o problema?

Às vezes, eu me perguntava o porquê de Ethan ser capaz de abrir mão até de boas noites de sono para saber o que tava acontecendo dentro da minha cabeça.

Ethan era mais que meu melhor amigo, tinha crescido com ele como se fosse meu próprio irmão, mas, mesmo assim, meus irmãos não eram tão próximos e nem tão íntimos quanto eu era de Ethan. Eu sentia que podia contar e falar sobre qualquer coisa com ele, mesmo que ele mesmo não costumasse me falar tudo o que se passava com ele.

Ele tinha uma mania estranha de achar que seus problemas não eram grandes o suficiente para que os outros ficassem sabendo e, por isso, ele detestava conversar sobre o que acontecia dentro da sua cabeça, odiava pedir ajuda, independente da necessidade.

— Acha que ela ainda me ama? — Perguntei sem desviar os olhos das árvores.

Ethan virou o rosto para a janelinha de plástico, respirando fundo lentamente.

— Acho... — Ele abriu a boca novamente, fazendo menção de completar, mas hesitando logo em seguida.

— Então por que é tão difícil pra ela? — Franzi o cenho, olhando-o rapidamente. — Por que é tão difícil para ela estar ao meu lado?

Ele apertou os lábios, ficando tenso logo em seguida.

— Porque não é sobre você, nem sobre o amor de vocês, ou sobre o que vocês têm para oferecer um para o outro... É sobre ela, Carter!

— Como assim? — Minha cabeça tinha dado um nó.

Ele riu no instante que seus olhos tocaram o meu rosto confuso.

— Às vezes eu esqueço como sua cabeça funciona — Ele passou o braço por cima dos meus ombros. — É sobre ela, Carter, é sobre ela e os conflitos internos dela. Não tem a ver com você, porque você não é o problema dessa vez!

Ele deu mais uma golada no energético, apontando para o meu peito com o indicador.

— Ela precisa saber que estará segura com você — Ele franziu o cenho e eu dei mais um gole na minha latinha. — A Allison te ama, mas vocês ficaram cinco anos sem sequer se falar, as coisas parecem bastante incertas e eu nem julgo ela por pensar assim. Allison é uma garota que gosta de estabilidade, ela não é do tipo que se arrisca, especialmente porque ela tem muito mais neurônios que você!

— Eu não sou instável — Retruquei, irritadiço.

— Sei disso, mas e ela? — Ele levantou uma das sobrancelhas. — Como vai provar que, do nada, não vai a largar sozinha numa cidade que ela não conhece ninguém?

Engoli em seco, batendo o indicador na beirada da latinha.

— Entendi...

Meu pai guardou a escova de dentes dentro da mochila, bebendo um pouco de água pelo bico da garrafinha térmica. Ele esticou as costas, apoiando as duas mãos atrás do corpo até que ouvisse o estralo.

— Ah, que droga, dormir no chão é uma merda — Reclamou, virando para o melhor amigo. — Você me deve uma coluna nova!

Leight levantou as mãos na altura dos ombros, rendido.

— Você que tá ficando velho!

— Temos a mesma idade, seu otário!

Puxei a primeira caixa térmica para fora da barraca, depois as mochilas e, logo em seguida, entrei com Ethan para dobrar as cobertas e enrolar os sacos de dormir. Rapidamente, enfiei o saco de dormir dentro da capinha e o prendi na minha mochila, deixando-a sobre a mesa de madeira.

Ajudei os dois velhos resmungões a tirarem os ganchos do chão e soltar a cabana, Ethan e eu nos prontificamos em desmontar a estrutura e deixar o trabalho quase impossível de empacotá-la novamente para nossos pais, que, sem paciência alguma, embolaram a lona ao redor das hastes e entucharam dentro da caixa de qualquer jeito.

Coloquei a mochila nas costas e peguei uma das caixas térmicas, já que era o item mais pesado que teríamos que carregar. Preferia carregá-la sozinho que ter que deixar um dos três frangotes tentar.

— Eu levo a outra — Meu pai anunciou, segurando a alça da caixa térmica mais leve.

— Não, deixa que eu levo, segura a barraca — Leight puxou a outra extremidade da alça.

— Não, pode levar a barraca, é mais leve — Meu pai puxou de volta.

— Tá com dor nas costas, não vai te fazer bem!

— Eu tô de boa, Leight, leva a porra da barraca!

— Deixa que eu levo a caixa, Sebastian.

— Eu aguento mais peso, que saco.

Ethan e eu permanecemos encarando os dois brigarem como se fossem crianças, puxando a caixa de um lado para o outro. Meu pai puxou com força, fazendo Leight se desequilibrar.

O loiro mais velho escorregou, seu pé deslizou sobre um galho molhado e os dois caíram, um por cima do outro. A caixa abriu e esparramou tudo pelo chão — as garrafas de água rolaram junto com as latinhas de cerveja e energético, algumas estouraram e a tampa da caixa se prendeu entre os dois, sendo a única coisa que separava o corpo de Leight do corpo do meu pai.

— Puta merda — Grunhiu o moreno, jogando a cabeça pra trás. — Acho que quebrei o braço!

Pressionei os dedos sobre os olhos, desacreditado. No último e no único momento que nenhum acidente poderia acontecer, o imbecil do meu pai decidia quebrar a porcaria do braço.

— Tudo bem — Bufei a raiva para fora. — Eu levo as coisas lá pra cima e você — Virei-me para o tio Leight. — Dá uma olhada no braço desse mané!

Junto com Ethan, revezando os itens mais pesados, carreguei as coisas até a caminhonete em quatro viagens, que poderiam ter sido resumidas em uma viagem só se meu pai não tivesse decidido quebrar o braço de última hora.

O braço do meu pai não demorou para inchar e adquirir uma tonalidade escura e arroxeada na região da lesão. Com alguma dificuldade, fazendo uma careta de dor a cada curva que o carro fazia, ele manteve o braço pressionado contra o corpo, evitando ao máximo deixar que o movimento do carro influenciasse no do seu braço, já que a dor intensa piorava cada vez mais.

Depois de uma hora e meia de viagem ouvindo meu pai reclamar de dor, tio Leight nos deixou no hospital com a desculpa de que deixaria as coisas em casa e depois passaria para nos buscar.

Eu não imaginava que o fim do meu domingo seria dentro de uma sala de espera de hospital esperando que meu pai saísse com seu mais novo acessório no braço direito, mas lá estava eu, apoiando os cotovelos nas pernas e batucando os dedos uns nos outros, esperando que meu pai saísse da emergência com o resultado dos exames e com seu mais novo gesso.

Não tinha nem como passar o tempo, meu maior divertimento era tentar adivinhar como algumas das pessoas tinham ido parar ali dentro, porque eu não tinha nem o meu celular por perto.

Uma senhorinha de cabelos tão brancos que pareciam um floco de algodão sentou-se ao meu lado, posicionando a bolsa sobre o colo e esticando as costas. Ela vestia um suéter branco e uma calça preta, que ficava folgada em suas pernas finas.

— O que alguém tão jovem quanto você tá fazendo aqui? — Perguntou ela.

Estreitei os olhos, confuso. Pessoas jovens também iam para o hospital de vez em quando.

— Tô esperando meu pai... Ele quebrou o braço — Respondi, observando-a tirar um livrinho de dentro da bolsa.

— Ah. Seu pai não sabe que ele já deve estar velho demais pra agir como um adolescente? — Ela franziu o cenho, enrugando ainda mais todo o seu rosto.

— Pelo visto, não! — Desviei o olhar, encarando a porta de saída da emergência.

Em alguns minutos, meu pai saiu da sala de emergência com o braço pendurado em uma tipoia na altura do peito, em uma das mãos, ele segurava a radiografia do braço quebrado com a mão boa, e o casaco estava pendurado em seus ombros.

Ele parou ao meu lado, estendendo a receita de analgésicos em minha direção. Peguei o papel e tentei ler a receita, desistindo no mesmo instante. Levantei-me prontamente, sabia que ele estava doido para sair dali o mais rápido possível.

— Pode comprar os remédios pra mim? — Perguntou, ajeitando o casaco sobre os ombros. — Tem uma farmácia aqui perto, eu vou esperar o Leight aqui na frente...

— Tudo bem... Não vou demorar!

A senhorinha levantou o rosto para o meu pai e depois olhou para mim. Seu sorriso mostrou uma dentadura amarelada e seus olhos amendoados, que carregavam bolsinhas gordinhas logo abaixo, quase se fecharam.

— Vocês são bem parecidos — Comentou ela, fechando o livro e o colocando dentro da bolsinha novamente. — Ah, meu rapaz, ninguém te avisou que você já não é mais tão novo pra ficar brincando de quebrar o braço?

— É... Eu acho que eu percebi isso, hoje — Meu pai suspirou, abrindo um sorriso sem graça para a senhorinha. — Vamos, então, Dani?

Confirmei com a cabeça, o empurrando na direção da porta, me despedindo da senhorinha com um sorriso desconfortável.

— Conhece ela? — Ele cochichou para mim.

— Não faço ideia de quem ela é — Arqueei as sobrancelhas. — Ela só começou a puxar assunto!

O deixei sozinho na frente do hospital. Eu sabia o caminho da farmácia e realmente não era longe. Duas ruas para trás do hospital, eu não demoraria mais que vinte minutos entre chegar no local, pegar os remédios, pagar e voltar para ir embora.

Calmamente, cravei os pés para dentro da farmácia e entreguei a receita para o farmacêutico que, magicamente, decifrou a letra do médico e me entregou as três caixinhas de remédio. Levei-as até o caixa e entreguei o dinheiro, saindo dali com o troco guardado e sentindo o vento empurrar meu cabelo para trás.

As ruas ao redor do hospital eram curiosamente movimentadas, não com grande fluxo de carros, mas vários restaurantes e lanchonetes pequenas se escondiam ali, e elas provavelmente conseguiam lucrar bem, justamente pelo movimento do hospital.

Passei os olhos por dentro de uma delas, a fachada exibia um toldo verde e branco, com uma plaquinha preta que segurava o nome do estabelecimento em dourado, uma varanda comprida se estendia até o limite da calçada, e várias mesinhas se espalhavam por ali.

Afinei o olhar, pensando ter visto algum rosto conhecido. Não era como se eu quisesse encontrar alguém, mas a sensação de que eu estava vendo algo que não deveria tomou conta do meu corpo.

Esfreguei os olhos com a ponta dos dedos, olhando novamente para dentro do estabelecimento. Sentado de frente para uma mulher que beirava os trinta e cinco anos, com o cabelo loiro escuro meio desgrenhado e rebelde, olhos finos e castanhos e um nariz avermelhado, Anthony Cooper sorria como um adolescente apaixonado, segurando uma das mãos da moça enquanto corria os olhos pelo cardápio.

Senti meu peito se contorcer, até onde eu sabia, ele ainda estava junto da Marianne e, teoricamente, não deveria segurar a mão de outra mulher. Merda, merda, merda. E agora?

Anthony se curvou por cima da mesa e a mola repetiu o gesto, ambos grudando os lábios rapidamente antes de se ajeitarem na cadeira novamente. Eu deveria sair dali, deveria correr para bem longe e fingir que aquilo não tinha acontecido, ou talvez eu devesse entrar no restaurante e perguntar qual o problema daquele cara, mas meu corpo não respondia a nenhum dos dois impulsos.

O pai da Allison levantou a mão, chamando a atenção do garçom. Passei as mãos pelo bolso, procurando meu celular e praguejei mentalmente todos os palavrões e xingamentos que eu conhecia quando me lembrei que tinha o deixado com minha mãe. Anthony virou o rosto na minha direção e eu senti o peso do meu corpo se multiplicar com dez.

Era como sentir um terremoto dentro dos meus ossos. Não era dos meus pais que estávamos falando, era do pai da Allison. Ela já tinha passado por tanta coisa e eu não queria ser o porta-voz de mais uma das aventuras tristes que assolavam sua existência.

Seus olhos se fixaram nos meus, aterrorizados. Ele soltou a mão da mulher instintivamente, empurrando os dedos dela para longe, mas antes que ela pudesse perguntar o que estava acontecendo, ele se levantou da mesa, empurrando a cadeira para longe e correndo na direção da grade da varanda.

Engoli em seco como se eu tivesse voltado a ter dezesseis anos, como se ele ainda fosse intimidador e assustador como um touro raivoso. Anthony pulou a grade metálica da varanda e eu, movido pela adrenalina, saí correndo em disparada na direção da esquina do hospital, olhando para trás periodicamente.

O cara ainda estava atrás de mim, mesmo que eu soubesse que nós dois soubéssemos que ele não seria capaz de me alcançar. Virei à direita e ele parou na esquina, me observando pular para dentro da caminhonete do tio Leight, que, com o susto, virou o corpo em minha direção, erguendo uma das sobrancelhas, desconfiado.

— O que você tava aprontando? — Perguntou, dando partida no carro.

— Nada... — Tentei manter o ritmo da respiração, olhando rapidamente pela janela só para ter certeza de que Anthony não apareceria do meu lado.

Ele tinha desistido de me alcançar, mas duvidava que tinha desistido de me impedir de dizer alguma coisa.

Entreguei as caixinhas de remédio para o meu pai, devolvendo sua carteira e o troco.

Recostei-me no banco, fechando os olhos e engolindo em seco. Eu não sabia se deveria falar alguma coisa. Me sentia moralmente encurralado, não se tratava da traição de alguma amiga minha ou coisa do tipo, era Anthony colocando um par de chifres na cabeça de Marianne, mesmo depois de terem três filhos e dividirem uma casa quase perfeita num bairro quase perfeito da quase perfeita Brookline.

Não sabia se deveria falar diretamente para Marianne, talvez ela risse da minha cara e me chamasse de intrometido idiota, talvez ela apontaria o dedo para mim e gritasse que eu estava inventando coisas, talvez para provocá-la ou para encantar Allison. Também não sabia se eu deveria contar para Allison e estragar a visão que ela tinha dos pais, também não fazia ideia de como ela reagiria.

Eu não fazia ideia do que fazer, parecia que tudo era incerto demais. Tudo podia ser mal interpretado e tudo também poderia ser encarado como uma birra idiota. Eu não queria arruinar a família dela, não queria me gabar por ter uma família incrível e não queria, ao mesmo tempo, que aquilo fosse uma desculpa para perder Allison de vez.

Pressionei os olhos com os dedos.

O que eu devo fazer...?

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