22. Tether
Cooper
Sorri para Adalia o melhor sorriso que consegui esboçar. Era praticamente inacreditável que ela estivesse me dizendo algo como aquilo.
Um dos meus maiores sonhos sempre foi viver da minha arte, pintar quadros e ser reconhecida por isso. Eu sentia um frio na barriga praticamente incontrolável, queria pular para todo lado, gritar bem alto e girar sobre os pés.
Era como um sonho. O calafrio corria pelas minhas veias e eu sentia que podia voar, porque alguém finalmente tinha reconhecido o meu esforço, a minha arte.
Pintar era muito mais que um hobby para mim, era muito mais do que passar para uma tela o que eu sentia ou coisa do tipo, era como materializar sonhos. Eu podia criar o universo que eu quisesse, com as minhas regras e detalhes, podia fazer um céu rosa e uma nuvem verde, se eu quisesse, mas também podia criar o universo de outra pessoa, e essa era a minha parte favorita de tudo aquilo.
— Adalia, você tá falando sério? — Perguntei, a segurando pelos ombros.
Eu precisava saber se era verdade ou não. Por mais que eu confiasse em Adalia, eu tinha medo de estar apenas criando expectativas demais em cima de algo que poderia me frustrar no final.
Sabia que eu não podia depositar todas as minhas esperanças em cima daquilo como se minha vida fosse se metamorfosear por completo só porque eu estava um passo mais perto do meu sonho. Eu tinha que ser ponderada. Tinha que saber até onde eu poderia me empolgar e até onde eu deveria segurar a onda.
— Allison, você só precisa aparecer por lá — Ela deu de ombros, se aproximando da mesa e puxando o caderninho de rascunhos para mais perto.
Segui suas mãos com os olhos. Eu não era ciumenta com minhas coisas, não ligava que mexessem ou coisa do tipo, mas aquele caderninho escondia tantas coisas que estavam guardadas em meu coração que um medo quase incontrolável tomou conta do meu peito.
Com a ponta do indicador, ela girou o caderninho até que ele estivesse virado para a sua direção. Estreitei os olhos sobre o miolo, ele estava mais murcho, como se coisas estivessem faltando por ali.
Aquele caderno carregava uma infinidade de desenhos e rabiscos. Dos mais complexos aos mais simples, cada um deles carregava uma história diferente, ou um sentimento diferente. Alguns deles eram a tradução exata do que acontecia dentro do meu peito, da minha mente, das minhas veias.
Meus maiores segredos estavam lá dentro, assim como o meu maior amor.
O desenho de Daniel Kellan Carter estava lá, colado sobre uma das folhas, recortado de um outro caderno, refeito milhares de vezes, com vários esboços do formato de seus olhos e de suas sobrancelhas, que eram a parte mais complicada de se reproduzir no papel.
Eu sempre quis ser capaz de representar Daniel no papel como eu o enxergava, mas era impossível. Sempre faltava algo nos seus olhos, independente de quantas vezes eu redesenhasse, seus olhos nunca faziam jus aos reais.
O verde não era tão verde, os sentimentos não eram presentes e, somados com o formato reto de suas sobrancelhas cheias, os desenhos dele sempre acabavam com aquela feição monótona e sem vida, muito diferente da real, que carregava tantas coisas nos olhos que qualquer imbecil era capaz de sentir o mesmo que ele só de olhá-los.
Puxei o caderninho com cuidado, o segurando entre as mãos trêmulas. Eu tinha tanto medo de que algo tivesse desaparecido do meio daquelas folhas amareladas que meu coração praticamente se esquecia de bater dentro do peito.
Adalia subiu seus olhos para meu rosto. Eu sabia que tinha empalidecido por completo, a ponta dos meus lábios formigavam e a minha temperatura corporal pareceu despencar de um segundo para o outro.
Eu abri-o com cuidado, porque, como era meio velho, sabia que algumas folhas estavam meio soltas e podiam escapar, se espalhando pelo chão.
— Qual o problema? — Adalia perguntou.
— Tá faltando coisa aqui dentro — Respondi com a voz falha.
Girei as páginas uma por uma, passando os olhos por todos os meus antigos desenhos, pelas manchas de tinta, pelas marcas disformes mal apagadas pela borracha de baixa qualidade. O caderno estava mais leve, constatei aquilo quando percebi que uma das folhas do começo tinha escapado e, mais para frente, algumas outras também não estavam dentro do caderninho.
Meu coração acelerou, palpitou dentro do peito com tanta velocidade quanto um carro de fórmula um. Pensei que fosse o cuspir em cima do carpete cinza do escritório, porque ele pulava alto, quase tocando minha garganta.
Não. Não. Não. Não pode ser!
Minha visão ficou turva em um instante. Passei por mais páginas, procurando pelas páginas que continham desenhos de Daniel, elas não estavam lá. Não estavam postas no final, antes da contracapa, como se tivessem escapado e se espalhado pelo chão, não estavam por entre as várias páginas de desenhos, era como se cada uma delas tivesse desaparecido de repente.
— Allison, qual o problema? — Adalia perguntou, apreensiva.
— Não estão aqui — Respondi desesperadamente, jogando o caderno sobre a mesa e contornando a mesma, voltando para a frente das gavetas. — Não estão em nenhum lugar. Sumiu tudo!
— O que sumiu, Allison? — Adalia, assumindo meu desespero para ela, também contornou a mesa, abaixando-se ao meu lado.
— Meus desenhos. Os desenhos dele. Um monte sumiu, tá faltando umas dez páginas! — Passei uma das mãos sobre os olhos, afastando as lágrimas.
— Isso é tão importante assim? — Perguntou, inocente.
Era muito mais do que importante.
Por muito tempo, aqueles desenhos imperfeitos, aquelas mãos tortas, os castelos com perspectivas erradas, os rascunhos de olhos, mas, especialmente, os desenhos de Daniel eram tudo o que eu tinha que ainda me conectavam de alguma forma ao passado.
Eu não queria deixar o passado para trás, não daquela forma.
Nós nos apegamos ao passado porque, depois de tantas coisas, é ele que sempre nos lembra de quem realmente somos. É no passado em que algumas respostas se encontram, nele em que os melhores sorrisos foram dados e, por mais que o futuro possa nos proporcionar momentos melhores, ele também se tornará passado um dia.
O passado é o destino que já foi alcançado, e eu nunca estive pronta para apagá-lo de vez, porque apagar o passado era como tentar me apagar da existência.
Puxei todas as gavetas para fora, enfiando um dos braços até o fundo, para ter certeza de que nenhuma folha tinha se perdido por ali. Eu sabia que elas estavam soltas, mas não imaginei que estivessem tão livres para sumirem daquela forma.
Eu sabia que talvez fosse uma tempestade em copo d'água, sabia que talvez não devesse me sentir tão desesperada por perder algumas páginas de desenhos velhos, não era como se Daniel tivesse morrido, ou como se eu nunca mais fosse capaz de o ver novamente, porque, enquanto ele estivesse vivo, eu sabia que nossos caminhos estavam condenados a se cruzarem.
Fosse nas telas, nos noticiários, nas capas de revista, nos outdoors, nas propagandas dos jogos, de alguma forma, eu sempre cruzaria com ele. Mas perder aquelas páginas, mesmo que não fossem apenas as dele, era como perder um pedacinho de mim.
Passei as mãos pelos olhos, revirei as latas de lixo do escritório, na esperança de encontrá-las por lá, mas não tinha nada. Saí em disparada, cravando os pés no chão com Adalia ao meu encalço. Eu sabia onde ir, sabia que se aquelas páginas tinham desaparecido, havia uma grande chance de ter o dedo de Corey no meio.
Depois que conheci Miles, percebi que as pessoas podiam ser cruéis simplesmente porque achavam que outras pessoas tinham que sentir a mesma dor que elas sentiam, e Corey podia ser completamente babaca àquele nível.
Bati os nós dos dedos na porta do seu escritório, milhares de vezes, fazendo questão de ser irritante, porque eu não me importava se estava o atrapalhando ou não, o meu desespero era muito maior.
A porta se abriu sem muita demora, escancarando a silhueta esguia de Corey bem na minha frente. Seus olhos desceram para o meu rosto, correram para os de Adalia, que segurava a caixa pelas beiradas. O caderninho estava sobre a tampa, e meu coração estava na beirada da garganta.
Ele voltou a olhar para mim, erguendo as sobrancelhas. Sua boca fez menção de dizer algo, de me cumprimentar ou de perguntar o que eu estava fazendo ali, mas ele hesitou assim que percebeu que meus olhos estavam marejados e que eu cravava as unhas nas palmas das minhas mãos com toda a minha força, fazendo meus braços tremerem e os nós ficarem esbranquiçados.
Mordi minha boca com força, tentando manter o controle, tentando recobrar a minha compostura, mesmo que eu já conseguisse sentir os finos filetes de sangue brotarem entre meus dedos.
— Qual o problema? — Perguntou, esbanjando um tom muito mais preocupado do que eu esperava receber.
— As páginas — Grunhi, rangendo os dentes. — Eu sei que elas estão com você, porque é a porcaria da sua cara destruir qualquer coisa minha só para me provocar!
— Ah, sim! — Seu rosto adquiriu um sorriso conformado e aliviado. — Eu quase me esqueci!
Pisquei algumas vezes, confusa, mas ainda trêmula e assustada, esperava que ele fosse me entregar um punhado de papel amassado e rasgado, mas Corey caminhou até sua escrivaninha, abriu a primeira gaveta e tirou dali de dentro um punhado de folhas perfeitamente alinhadas e presas por um clipe metálico.
Ele folheou-as rapidamente, conferindo se todas estavam por lá antes de voltar para perto de mim e estender o bloco de folhas. Segurei-as com cuidado, percebendo que, apesar de elas terem escapado do caderno, estavam em perfeito estado, cuidadas como eu cuidaria delas.
— Você não...? — Confusa, coloquei-as entre a capa e o miolo do caderninho, me virando para ele.
— Não sou babaca a esse nível — Ele deu de ombros. — Tudo tem limite, até para me vingar da humilhação gratuita que você me fez passar no seu aniversário — Corey suspirou, frustrado. — Quando saímos, você saiu correndo tão rápido do restaurante para ver o que quer que estivesse do lado de fora que mal percebeu que o caderno caiu no chão e que as folhas se espalharam...
Ergui as sobrancelhas, desacreditada.
— Eu as recolhi, mas quando você voltou para dentro, o clima já não era mais o mesmo e você foi embora sem me deixar terminar de falar e te devolver esse punhado — Pousou o indicador sobre a carta do caderninho, pressionando-a para baixo, como se tentasse fundir as folhas à capa. — Guardei por todo esse tempo, porque me esqueci de devolver e você também não foi atrás de encontrá-las... Bom, até agora, né!
— Obrigada — Disse por entre os lábios, talvez baixo demais.
— Sem problemas — Ele ergueu as sobrancelhas e desviou os olhos, me dando as costas. — Agora você realmente tá livre pra ir atrás daquele cara!
Confirmei lentamente com a cabeça, dando um passo para trás, e depois outro, e mais um, até que eu fechei a porta, o deixando sozinho em seu escritório sem dirigir qualquer outra palavra.
Girei sobre os calcanhares, sentindo um desconforto estranho no fundo do peito. Era estranho não ter recebido apenas os últimos farelos daquelas folhas, porque era o que eu esperava receber.
— Vamos embora logo — Olhei Adalia, em completo estado de choque.
∞
Passei a semana inteira com uma pulga desgraçada atrás da orelha.
Toda vez que eu acordava pela manhã — fazendo questão de acordar mais tarde que meus pais e indo dormir mais cedo que eles, porque definitivamente não queria conversar sobre o que tinha acontecido —, minha mente me pregava uma peça.
Parecia bastante oportuno que, de repente, quase como se tivesse saído do além, uma amiga da Adalia estivesse magicamente precisando de uma pintora para fazer um quadro exclusivo e elaborado, ignorando todas as milhares de lojas do país e da internet que ofereciam réplicas quase perfeitas de obras famosas por um preço muito mais acessível.
Me sentia mal por duvidar de uma das minhas melhores amigas, mas eu estava tão acostumada a ser passada para trás por todo mundo que era quase impossível que eu não desconfiasse de nada.
Cheguei a mandar mensagem perguntando se ela, por algum acaso, não tinha o número de telefone da amiga, assim eu poderia conversar com ela antecipadamente e combinar melhor toda aquela bizarrice, que parecia mais um encontro às cegas.
Eu não fazia ideia da aparência da mulher, ela poderia ser qualquer pessoa na frente do restaurante, e eu tinha medo de ser inconveniente perguntando pra qualquer pessoa que aparecesse se ela era a "amiga da Adalia que precisava de um quadro", não me parecia um jeito muito bom e nem muito adequado de se abordar alguém.
Mas Adalia me respondeu com um simples "ela tá sem celular por um tempo, foi roubada em Boston", e eu precisei me contentar com o que tinha recebido.
Respirei fundo e corri para o banheiro. Eu queria me arrumar e ficar pronta o mais cedo possível, assim eu não correria o risco de chegar atrasada e estragar tudo.
Talvez fosse cedo demais para que eu estivesse me arrumando, mas não me importei tanto, já que estava sozinha em casa e poderia fazer quanto barulho eu quisesse.
Depois do trabalho, meus pais passariam na casa dos meus avós e no mercado, então eu tinha bastante tempo livre durante a noite, não teria que encontrá-los quando chegasse do restaurante, e Samuel, por sorte, estaria treinando ou correndo, que era o que ele fazia depois de estudar duro durante o dia todo, enfiado na biblioteca.
Eu sabia que aquele restaurante novo tinha a fama de ser chique, sempre que passava na frente, podia ver as pessoas adornadas com joias no pescoço e nos braços, esbanjando vestidos elaborados e ternos feitos sob medida, o que me fazia sentir um tanto inadequada para o local.
Não tinha roupas muito chiques, nem muito caras, muito menos joias, e aquilo estava me deixando desesperada.
Abri a porta do guarda-roupa depois de tomar um longo banho e fui jogando uma roupa de cada vez para fora, analisando bem cada uma delas, tentando montar alguma combinação dentro da minha cabeça, alguma coisa que fizesse sentido, ou que me tornasse mais adequada para o ambiente.
Tinha praticamente desistido de encontrar alguma roupa para ir ao restaurante, mas automaticamente uma memória antiga pulou na frente dos meus olhos. Minha mãe tinha milhares de camisas sociais por conta do trabalho no escritório de contabilidade.
Ela não se importaria se eu pegasse uma e devolvesse impecavelmente no dia seguinte, ela mal perceberia.
Me sentindo uma ladra, caminhei na ponta dos pés pelo corredor, evitando fazer barulho. Mesmo que eu estivesse sozinha em casa e soubesse que meus pais demorariam muito para chegar, aquela sensação imediatista de prever milhares de cenários impossíveis de coisas erradas que poderiam acontecer assim que eu abrisse a porta do quarto dos meus pais era inevitável.
Adornei a maçaneta com os dedos, empurrando a porta para que eu pudesse entrar. A cama desarrumada demonstrava a falta de tempo que eles tinham e não se importavam em esconder tanto quanto eu esperava que escondessem. Dei uma olhada para o banheiro do quarto, que estava quase impecável, com os perfumes da minha mãe organizados em um pequeno pedestal espelhado, enquanto os do meu pai ficava no outro canto da pia pequena.
Voltei os olhos para o guarda-roupa de portas brancas, idêntico ao que eu tinha no meu quarto, que era iluminado pelo sol que invadia o quarto pela janela. Minha mãe detestava deixar a casa com as janelas fechadas durante o dia, então ela abria as persianas e deixava o sol entrar em todos os cômodos deliberadamente, fechando apenas durante a noite.
Aproximei-me lentamente das portas e abri a primeira, que eu sabia que era a repartição da minha mãe — uma delas, no caso. As camisas estavam enfileiradas e ordenadas por cores, da mais clara para a mais escura, penduradas em cabides únicos e especiais para aquele tipo de tecido.
Por um instante, não consegui escolher qual combinaria mais comigo. Tive medo de parecer uma idiota com a roupa, especialmente porque minha mãe tinha muito mais peito que eu.
Peguei a primeira camisa branca que encontrei, que tinha mangas longas e botões pequenos que imitavam pérolas, e corri de volta para o meu quarto como se ninguém pudesse me ver.
Vesti a camisa junto de uma calça preta e um tênis branco, abri meu porta-joias, me sentindo idiota por tentar encontrar algo realmente digno ali dentro, estava praticamente vazio.
Mexi o conteúdo com a ponta dos dedos, empurrando alguns dos meus brincos para trás. Uma correntinha fina enroscou na minha unha e eu a puxei para fora.
— Não acredito — Sorri, nostálgica.
A correntinha fina de prata tinha um pingente pequeno com a letra "A" gravada nas costas, era um presente antigo que Daniel me dera no meu aniversário de dezessete anos. Era a única joia real que eu tinha e seria perfeita para a ocasião chique dentro daquele restaurante granfino.
Com um pouco de dificuldade, consegui colocar a corrente sozinha assim que a campainha tocou.
Umedeci os lábios com a ponta da língua e desci as escadas correndo. Afastei a cortina com a ponta dos dedos, colando o rosto ao vidro para conseguir enxergar quem era ali na frente e abri um sorriso bobo quando vi a silhueta magra e os longos cabelos longos caírem por ombros magros, mas ainda mais quando consegui enxergar cachos escuros como a noite logo atrás dela.
Abri a porta, um tanto confusa com a surpresa, mas aliviada de poder vê-las antes de sair, simplesmente porque Adalia poderia me dar alguma breve descrição de como era a tal amiga, e eu poderia me sentir um pouco menos aflita.
No mesmo instante, Adalia e Angeline atravessaram a soleira da porta e se instalaram pela sala como se já fizessem parte dos móveis de casa.
— Allison, ainda bem que você abriu a porta. Não tem celular, não? — Angeline revirou os olhos e franziu o cenho. — Te liguei umas três vezes!
— Eu devia estar no banho — Me defendi, um tanto frustrada por não receber sequer um "oi". — Qual o problema?
— Vou sair com o Aiden — Ela abriu um sorriso vitorioso. — Mas, droga, eu não tive tempo de comprar nenhuma roupa nova e queria saber se você poderia me emprestar aquela camisa velha do seu pai...
— A florida? — Estreitei os olhos, tentando ignorar o fato de que ela estava para sair com Aiden, o cara que trabalhava comigo.
Ela confirmou com a cabeça, me lançando um sorriso malicioso.
— Preciso de algo que seja fácil de tirar, se é que me entende — Ela fechou os olhos vitoriosa.
— Pode ir pegar... — Suspirei.
Eu estava completamente frustrada. Queria que Angeline reparasse nas minhas roupas, que dissesse que eu estava bonita e me perguntasse pra onde eu ia, mas, como sempre, ela mal se importou em reparar.
Ao lado de Adalia, subimos até o meu quarto, onde Angeline já vasculhava o armário em busca da camisa. Ela colocou algumas das minhas roupas na frente do corpo e eu sabia que, independente de qual ela escolhesse, ficaria muito melhor nela que em mim.
Era frustrante saber que, dentre nós três, eu era a amiga feia. Quer dizer. Eu não era feia, não me achava mais a pessoa mais ridícula do universo, mas perto delas eu era tão comum quanto todas as outras milhares de garotas do universo que tinham cabelos e olhos castanhos.
Eu não tinha as curvas de Angeline, nem seu cabelo loiro e sedoso, muito menos seus olhos que pairavam entre o verde e o amarelo. Também não tinha o sorriso cativante de Adalia, seus olhos decididos e sua pele aveludada.
— Gostei do colar — Adalia comentou, erguendo uma de suas sobrancelhas.
Ela conhecia aquele colar, simplesmente porque ela tinha ajudado Daniel a escolhê-lo antes de ele me dar de presente.
— Ah — Baixei os olhos para o peito, tentando enxergar o pingente. — Encontrei ele no porta-joias!
— Combinou com sua roupa, ficou bem bonita — Ela alargou o sorriso.
Angeline, que estava curvada para dentro do armário, deixando apenas seu quadril e suas pernas a mostra, remexeu em algumas gavetas e conseguiu, finalmente, encontrar a tão esperada camisa florida velha que eu roubara do meu pai e nunca mais devolvera.
— A hora que ele te ver, ele vai perder a cabeça — Angeline soltou as palavras rapidamente, girando a camisa para ter certeza de que não tinha nenhum furo ou defeito.
Os olhos de Adalia quase pularam para fora de seu rosto, suas sobrancelhas subiram tanto que ondas se formaram em sua testa pequena e eu jurei que elas quase tocaram a raiz de seus cachos.
— Ele quem? — Perguntei, torcendo o nariz e franzindo o cenho.
— O Carter — Ela colocou a camisa na frente dos ombros, posando com as pernas para saber até onde a barra descia.
— Como assim? — Minhas sobrancelhas praticamente se uniram.
No mesmo instante, Angeline arregalou os olhos, apavorada. Ela empalideceu no mesmo instante. Seus olhos adquiriram um tom leitoso e vazio, que correram para os de Adalia, que a devolvia um olhar desaprovador e desesperador.
Angeline apertou a camisa entre os dedos, franzindo todo o tecido maleável e florido. Sua respiração desapareceu, seu peito não se movimentava mais e ela, lentamente, correu os olhos para mim.
— Puta merda — Ela tapou a boca com uma das mãos. — Puta. Merda. Eu não devia...
— O que o Carter tem a ver com isso? — Olhei para Adalia.
Ela não tinha palavras para me responder. As duas moviam a boca, fazendo menção de dizerem algo, mas nenhuma palavra se fazia ou saia, tudo o que escapava por seus lábios eram ruídos e tropeços.
As duas se entreolharam. Adalia estava furiosa com Angeline e, ligando alguns pontos dentro da minha cabeça, senti a raiva borbulhar em mim também, não por Angeline ter deixado aquilo escapar, mas por Adalia ter mentido para mim.
— Então eu não tô indo ver sua amiga? — Soltei minha incredulidade com uma careta.
— Allison, eu sinto muito — Adalia deu um passo em minha direção, tentando segurar minhas mãos.
Recuei um passo, levantando minhas mãos na altura dos ombros, sentindo meu coração rasgar ao meio.
— Foi tudo mentira, então? — Grunhi, apertando os lábios logo em seguida, engolindo a explosão de raiva que tentava escapar. — Ele sabe disso? Foi ele quem te pediu pra fazer isso?
Adalia negou milhares de vezes, sacudindo a cabeça de um lado para o outro.
— Ele não faz ideia! — Ela respondeu rápido.
Ao menos não tinha sido ideia dele.
Eu me sentia completamente traída. Era do meu sonho que estávamos falando, era sobre o que eu fantasiava na adolescência, era sobre o que eu imaginava toda vez que me refugiava atrás do escritório, na saleta abafada e quase secreta, que poderia se passar como um banheiro, mas que escondia grande parte dos meus primeiros quadros.
Adalia tinha brincado com meus sonhos, tinha me feito acreditar que eles eram alcançáveis e possíveis. Ela me fez retornar à minha adolescência, às várias vezes em que deitei sobre o tapete manchado de tinta, encarei o teto com um sorriso bobo e sonhei com um espaço maior, iluminado, cheio de janelas e cavaletes, com paredes decoradas com quadros e mais quadros, me fez voltar à minha paixão de pintar, à razão pela qual eu amava fazer aquilo e, em um piscar de olhos, jogou tudo aquilo no lixo como se não significasse nada, como se não fosse importante.
— Por que fez isso? — Perguntei entre os dentes, sentindo minhas bochechas esquentarem de raiva. — Era o meu sonho, Adalia. Era a porra do meu sonho!
— Sinto muito, eu só... — Perdida e desesperada, ela olhou para Angeline, quase a implorando com os olhos para que desse alguma solução para aquilo. — Eu queria ajudar, queria que vocês conversassem, que vocês se dessem uma segunda chance!
Revirei os olhos, ainda mais irritada. Aquilo não era uma desculpa plausível para o que ela tinha feito.
Por mais que eu amasse Daniel, o meu sonho não poderia ser colocado como uma barganha, como uma isca idiota lançada ao mar. Eu não era um peixe idiota que se encantava com uma minhoca fresca.
— Allison, eu sei o quanto você ficou arrasada, sei o quanto ele ficou arrasado e... — Ela passou a ponta dos dedos sobre os olhos, tentando organizar os pensamentos. — Eu queria ajudar. Eu fui uma imbecil, me perdoa!
Umedeci os lábios com a língua, apertando o lábio inferior com a ponta dos dentes, tentando aliviar a raiva. Novamente minhas unhas se cravaram nas palmas das minhas mãos, era uma mania antiga que eu sabia que precisava desaparecer, mas não era tão fácil quanto eu queria, ainda acontecia, especialmente quando eu me sentia nervosa.
A região latejou quando sentiu novamente minhas unhas abrirem os cortes finos feitos no começo da semana quando fui buscar minhas coisas no escritório, mas não era como se eu fosse capaz de me importar com a dor aguda ou com o calor breve que as gotículas de sangue me forneciam ao escapar pelos buraquinhos do corte recém-aberto.
— Não posso aparecer lá. Não quero ir para lá sabendo do que você fez. Merda, Adalia, eu não quero sair correndo para uma mentira. Vocês mentiram para ele também! — Bradei, afundando ainda mais as unhas nas palmas das mãos.
— Tecnicamente, foi o Ethan — Angeline comentou, aproximando-se um pouco mais.
Eu estava possessa. Dominada pela raiva.
— Fizeram o melhor amigo dele mentir para ele! — Pressionei a mordida, sentindo meus dentes doerem com a força. — Vocês têm noção do que é isso? Você me traiu pra caralho, Adalia, você mentiu na minha cara como se eu fosse uma completa imbecil e ainda quer que eu apareça lá?
— Allison, eu sinto muito — Ela murchou os ombros.
Angeline prontamente agarrou minhas mãos, me virando em sua direção. Seus olhos se encheram de lágrimas de repente, impulsivamente, desesperadamente.
Eu nunca tinha visto Angeline derramar uma lágrima sequer ao longo de toda a nossa amizade.
Conheci Angeline desde que os pais dela se mudaram para a casa ao lado da minha quando eu tinha quatro anos. Ela, sempre muito extrovertida e divertida, me nomeou como a sua nova melhor amiga e nós seguimos juntas por todos aqueles anos.
Mesmo que eu tivesse me mudado para outra casa quando Samuel se tornou grande o suficiente para usar o banheiro sozinho, nossa amizade perdurou, mesmo que com vários problemas.
Angeline e eu revezávamos os fins de semana, acampávamos uma na casa da outra. Era para ela que eu contava todos os meus segredos, para ela que eu mostrava minhas maiores fraquezas e a achava incrível, porque ela parecia imbatível e inabalável.
Ela nunca chorava.
Eu me lembrava de já ter perguntado para ela, quando éramos mais novas, se ela não chorava nunca, nem quando ralava o joelho, ou quando seus pais brigavam com ela por causa da bagunça, mas ela me dizia que meninas fortes nunca choravam.
Cresci me sentindo como uma menina fraquinha e inofensiva, porque enquanto ela era imbatível e inabalável e nunca chorava, eu era a chorona que se escondia embaixo da arquibancada toda vez que Daniel Carter me dava um susto.
Quando tínhamos treze anos, na aula de ciências, ele juntou as tripas de um sapo em um montante vermelho e gosmento, encolheu o dedo e posicionou o bisturi entre o dedo encolhido e o montante de tripas. Ele me chamou pelo nome e eu, que ocupava a mesa ao lado, me virei para ele, que, automaticamente começou a gritar desesperadamente.
Olhei para o bisturi, para o dedo encolhido, para o montante de tripas e, por um instante, realmente acreditei que ele tinha arrancado o próprio dedo. Meus olhos se encheram de lágrimas até que Daniel e Ethan se tornassem dois borrões disformes.
Eu senti meu corpo inteiro tremer e, antes que a professora de ciências pudesse colocar Daniel de detenção pelo resto da semana, saí correndo da sala para chorar embaixo da arquibancada.
Teria tomado uma detenção também, se Angeline não tivesse corrido atrás de mim depois de inventar para a professora que eu tinha começado a passar mal.
Angeline fez questão de se enfiar embaixo da arquibancada, me abraçando com força, balançando nossos corpos de um lado para o outro até que eu me acalmasse.
"Ele é um idiota" disse ela, empurrando uma mecha do meu cabelo para trás da orelha. "Mas são esses idiotas que fazem a gente entender o quanto nós somos fortes, Allison".
Vê-la chorar era como desmanchar tudo o que eu acreditei na minha infância. Em um piscar de olhos, ela não era mais tão incrível quanto ela costumava ser.
— Allison, eu sinto muito — Ela soluçou. O lábio inferior trêmulo. — Eu sei que você tá puta, que você quer matar a gente, que você quer me matar — ela fechou os olhos, deixando as lágrimas grossas escorrerem pelas laterias de seu rosto —, por favor, não deixa ele plantado lá esperando por alguém que nunca vai aparecer!
— Desde quando você quer que eu fale com ele? — Franzi o cenho, desacreditada e ofendida. — Você passou a vida inteira o odiando. Até esses dias, você simplesmente queria que eu seguisse em frente e o esquecesse!
Ela apertou os lábios carnudos e rosados, abaixando a cabeça e encarando o espaço entre nós dois, pensando no que dizer.
— Eu não acreditava que ele realmente te amava... — Ela engoliu em seco. — Eu senti tanta raiva quando vocês finalmente ficaram juntos, porque ele não merecia alguém como você ao lado dele. Ele fez questão de ser um babaca desde o dia em que te conheceu e você o amava como se nada daquilo importasse, e... — Ela respirou fundo, controlando a respiração. — E eu achava que ele só estava tentando brincar novamente com você, mas... Droga, Allison, aquele cara é um desgraçado, mas o coração dele sempre esteve nas suas mãos e só você não percebeu!
Pisquei milhares de vezes, recuando um passo, ainda com as mãos presas nas de Angeline.
— Não deixa o amor da sua vida escapar por minha culpa! — Ela jogou as palavras na minha cara, fazendo meus ombros descerem em surpresa. — Não o deixe esperando por alguém que nunca vai aparecer, não o deixe escapar, Allison!
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