20. Colors pt. II
Cooper
As luzes da cidade ficavam para trás rapidamente, passando pela janela do carro como raios longínquos que se tornavam borrões disformes. Pendi minha cabeça para o lado, apoiando a testa no vidro enquanto a chuva se armava sobre nós.
Eu sabia que, uma hora ou outra, meu pai, que estava irritado como um dragão faminto, arrumaria uma desculpa boa para começar a me perguntar o porquê de ter feito aquilo, mas, no fim das contas, eu não queria ter que conversar, não naquele estado.
Mal conseguia formar frases completas dentro da minha cabeça, as palavras se perdiam e vagavam para longe, me deixando completamente zonza.
Os trovões fortes iluminavam o céu com seus relâmpagos e sacudiam a terra com seu estrondoso rugido, que se mesclava com o som do trânsito das avenidas movimentadas da Boston noturna, nos guiando até Brookline com um ar soturno de arrependimento quase palpável.
Sentia minha boca seca, minha cabeça girando e mal conseguia manter os olhos abertos. As pálpebras pesavam uma tonelada e, somando com a minha cabeça — que eu mal conseguia manter no eixo de equilíbrio —, eu quase não conseguia me manter sentada.
Fechei os olhos lentamente, eu estava morrendo de sono, mas não conseguia dormir. O balanço do carro fazia meu estômago revirar e, no fundo, eu não queria parecer tão bêbada quanto eu realmente estava, eu precisava manter o controle, parecer consciente do que estava acontecendo.
Me remexi no banco, inquieta. A posição era péssima e o movimento do carro fazia minha cabeça bater no vidro, o que era um inferno dolorido. Eu nunca conseguiria dormir se continuasse encostada ali.
Acho que eu sabia exatamente como todos os bonecos infláveis do universo se sentiam, porque meu eixo gravitacional estava completamente maluco, meu corpo pendia de um lado para o outro, como se eu não tivesse controle nenhum sobre os meus próprios movimentos em relação aos do carro.
Virei o rosto para o meu pai quando ele parou o carro diante do semáforo. Eu sabia que ele estava furioso, porque ele não queria me olhar.
Era o que ele fazia quando ficava extremamente irritado. Quando ele e minha mãe brigavam, ele deixava de olhar na cara dela até que, magicamente, precisasse dela novamente para fazer alguma coisa, então ele voltava a falar com ela como se nada tivesse acontecido.
— Pai, você ama mesmo a mamãe? — Perguntei, franzindo o cenho. — Porque parece que vocês não transam há séculos, sei lá!
Ele congelou por um instante, seus olhos se arregalaram para o vazio do trânsito. Eu praticamente conseguia ver seu coração pular dentro do peito.
Automaticamente suas bochechas ficaram vermelhas, suas narinas se dilataram e sua respiração ficou ainda mais rápida, fazendo seus ombros subirem e descerem. Ele virou o rosto para mim com as sobrancelhas unidas, formando uma ruga entre elas.
— Que pergunta é essa, Allison? — Soltou entre os dentes.
Estalei a língua no céu da boca, afinando o olhar para o trânsito que se movimentava entre as pistas, vagando lentamente, especialmente por conta da chuva forte que não tardara em começar a cair.
— Ah — Suspirei, murchando os ombros. — É que... Vocês sempre brigam...
Esfreguei os olhos com as costas das mãos, pausando a fala para conseguir tentar colocar os pensamentos em ordem.
— Sempre me perguntei se vocês realmente se amavam — torci o nariz —, porque às vezes parecia que a única coisa que mantinha vocês dois juntos éramos nós!
Joguei a cabeça para trás, sentindo o mundo inteiro girar, me arrependendo amargamente de tê-lo feito. Eu não deveria me mover tanto se quisesse manter todas as minhas entranhas dentro do meu corpo.
— Vocês deveriam transar mais. Acho que vocês não seriam tão frustrados com a vida se vocês transassem!
Virei os olhos para ele, deixando minha cabeça pender para o lado. Meu pai não desviava os olhos do trânsito, ele mal fazia menção de tentar me olhar, talvez estivesse constrangido, talvez realmente estivesse pensando no que eu tinha o perguntado.
— Não vou responder isso, você não faz ideia do que tá falando — Grunhiu, apertando os dedos ao redor do volante.
Ri baixo, anasalado, voltando os olhos para o teto do carro.
— Algum dia você amou a mamãe? — Perguntei, fechando os olhos.
Quando eu fechava os olhos, conseguia o ver nitidamente, quase como se estivesse bem na minha frente, esbanjando seu sorriso sacana, com os olhos estreitos na minha direção. Me perguntava se meus pais também conseguiam ver a imagem um do outro com tanta nitidez toda vez que fechavam os olhos.
Queria saber se eles também conseguiam se lembrar de todos os mínimos detalhes um do outro, porque eu conseguia me lembrar de tudo, mas eles pareciam mais distantes de qualquer coisa que se parecesse com o que eu sentia por Daniel, e até do que Sebastian e Helen sentiam um pelo outro.
— Algum dia você amou a mamãe, ou fez tudo isso pra provocar o Sebastian? — Soltei a risada frouxa, quase sem controle.
Eu não tinha nenhum controle sobre a minha risada. Ela saiu descontrolada, fazendo meus ombros pularem e eu perder o ar, deixando que lágrimas escorressem pelas minhas bochechas.
— Por que se você fez tudo isso pra provocar o Sebastian, deu errado pra caralho!
Eu ria tanto que, apesar da dor que sentia no fundo do peito toda vez que me lembrava da possibilidade de eles não terem se amado, eu não conseguia parar, rindo do fato de eu conseguir rir.
— Olha para o Sebastian, porra — Suspirei, tentando engolir a risada. — Ele teve três filhos gatos com uma mulher que parece uma modelo, mesmo beirando a meia-idade, e aqueles dois se amam tanto que chega até a me dar náuseas!
Engoli o bolo na minha garganta, lembrar de Sebastian e Helen, por vezes, me lembrava de mim e Daniel e me dava raiva, porque eles dois estavam juntos e nós não.
— E eles ainda são ricos pra cacete — Ajeitei a postura, olhando pela janela ao meu lado. — Deve ser horrível pra você saber de tudo isso — Dei de ombros. — Especialmente porque, você sabe, o Daniel e eu...
— Allison, cala a porra da boca — Ele gritou, dando um tapa no volante. — Você não tem nada a ver com isso — Ele engoliu em seco, quase se enroscando com as palavras. — Você não tem nada a ver com o meu relacionamento com a sua mãe!
Baixei os olhos, no fundo, considerei aquela reação como uma resposta simples e bem clara de que ele, no fundo, nunca amou realmente a minha mãe. Era um tanto dolorido saber daquilo, quase como se minha vida inteira fosse um teatro idiota, uma fachada ridícula para causar inveja em quem nos enxergasse.
— Eu quero ir no banheiro!
∞
Meu pai apoiou meu corpo no dele depois de colocar o carro na garagem e, com dificuldade, me tirar de lá de dentro. Silenciosamente, ele me arrastou para dentro de casa, batendo a porta propositalmente.
Eu sabia que ele queria que minha mãe aparecesse no topo da escada, como ela fez, esbanjando um par de olhos azuis desesperados e que caíram sobre mim como uma sentença de alívio.
Não fazia ideia do porquê de eu ter demorado tanto para aceitar que tudo o que os mantinha juntos era o fato de que Madison, eu e Samuel estávamos entre eles e que, conforme nós crescemos, o relacionamento deles esfriou.
Minha mãe mal se importou em cumprimentar meu pai. Ela não passou as mãos pelo rosto dele, não o agradeceu por me buscar, não disse que o amava, ela o ignorou por completo quando desceu as escadas e correu em nossa direção.
Com os dedos trêmulos, ela contornou meu rosto e o levantou para ela. O sono que eu sentia era quase incontrolável e minhas pernas não queriam responder como eu queria, elas falhavam, não me obedeciam, mal conseguiria andar em uma linha reta sem cair no chão como um ovo frágil.
— Allison, o que você fez? — Perguntou, afastando meu cabelo do rosto.
— Eu precisava pensar — Respondi, tentando abrir um sorriso confortável.
As sobrancelhas claras dela subiram em um arco de curvatura baixa, entristecidos. Seus olhos se fixaram no meu pai e depois voltaram para mim. Ela passou o braço ao redor da minha cintura, apoiando meu corpo no seu e me levando na direção da escada.
Minha mãe nunca precisou cuidar de um filho bêbado antes. Madison, apesar de ter chegado bêbada uma vez, ainda tinha grande parte da consciência e só passara o outro dia dormindo, então minha mãe e meu pai nunca tiveram que enfrentar os desafios que uma pessoa bêbada podem causar.
Quando éramos mais novos, meus pais demonizavam tanto a bebida que, de certa forma, nós tínhamos pavor de chegar perto, de experimentar.
Meu pai dizia que apenas pessoas sem futuro bebiam até cair e que se eu fizesse aquilo, acabaria como o "o delinquente da sua sala". E, por ouvir tantos comentários negativos a respeito da bebida e de quem bebia, passei a demonizar qualquer pessoa da minha idade que o fizesse.
Eu não ligava nem um pouco para a saúde deles, não me importava se eles fossem pegar uma cirrose na idade adulta, mas eu acreditava tão piamente que eles eram fracassados e burros que me sentia superior a todos eles, especialmente quando se tratava de Daniel.
Enxergava nele tudo o que eu não era e, por isso, sentia tanta raiva quando éramos mais novos. Eu queria ser como ele, mas, ao mesmo tempo, o considerava idiota demais por encher a cara e passar vergonha na frente de pessoas que estavam tão bêbadas quanto ele.
Nunca fui uma grande fã de bebidas, mesmo quando aquele conceito foi completamente quebrado dentro da minha cabeça. Eu não gostava, não era o meu tipo de divertimento e, no fim, ainda pensava que era algo muito fútil, mas, depois de tanto tempo, eu precisava de um pouco de futilidade na minha vida.
— Marianne — Meu pai chamou antes que minha mãe pudesse me ajudar a subir a escada.
Ela virou-se na direção do marido, olhando-o apressadamente, porque ela queria o mais rápido possível me colocar embaixo de um chuveiro para tentar me limpar e me preparar para descansar antes de me dar um esporro ou coisa do tipo.
— Precisamos conversar — Completou com a voz baixa e não muito contente.
Ela assentiu com a cabeça, virando-se novamente para o topo da escada, me ajudando, uma perna de cada vez, a chegar um pouco mais perto do banheiro.
Com alguma dificuldade, já que eu não era tão mais baixa quanto ela, conseguimos chegar até o interior do cubículo que chamávamos de banheiro. Mamãe trancou a porta e me ajudou a tirar a roupa, jogando tudo dentro do cesto de roupa suja.
Pensei que ela fosse brigar comigo, que fosse me perguntar um milhão de coisas e talvez até me bater por ser uma completa idiota, mas ela permaneceu com os olhos baixos, ligando o chuveiro e me colocando embaixo, me ajudando a tomar banho e a me manter de pé.
— Mãe... — Disse, tentando olhá-la nos olhos.
— Fica quieta, Allison — Disse rispidamente, me entregando o sabonete. — Se ensaboa logo!
Eu peguei o sabonete de suas mãos, passando pelo meu corpo e me sentindo um tanto idiota quando tentei me abaixar para ensaboar as pernas e acabei escorregando para o lado, precisando de ajuda tanto para me recompor quanto para continuar a me lavar.
O silêncio era constrangedor, não porque eu estava alterada e minha cabeça não conseguia funcionar direito, mas porque eu sabia que minha mãe estava decepcionada comigo e com a forma como eu estava lidando com os meus problemas — escondendo-os, novamente, dos meus pais.
— Sinto muito — Rompi o silêncio sepulcral quando ela levantou-se para pegar a toalha.
Ela hesitou, segurando a toalha entre as mãos, antes de virar-se para mim novamente. Seus olhos me analisaram de cima a baixo, eu parecia patética e desajustada, especialmente perto dela. Me perguntava se, de alguma forma, eu era um peso para ela por me parecer mais com meu pai que com ela quando jovem.
Era como se, telepaticamente, ela soubesse do que eu estava me desculpando. Na verdade, eu não sabia exatamente do que eu estava falando, se eu sentia muito pelo casamento de merda que ela tinha, se eu sentia muito por ter atrapalhado seu sono, se eu sentia muito por não me parecer com ela.
Eu sentia muito por muitas coisas, mas, talvez, eu sentisse muito por não saber o que fazer com minha vida, mesmo que eu não fosse mais uma criança.
— Não se preocupe com isso — Ela passou a toalha para mim. — Não tem nada a ver com você!
Mas não era como se eu pudesse desligar uma chave que cancelasse todos aqueles sentimentos. Eu queria que minha mãe fosse capaz de viver um romance incrível e cinematográfico com o meu pai, porque eu sempre fantasiei aquele tipo de coisa.
Gostava de imaginar que meus pais eram rei e rainha, que governavam o mundo e que eu era uma princesa num castelo construído por eles e suas conquistas, mas parecíamos mais com uma família que residia um castelo com paredes de vidro, tão frágeis que qualquer deslize poderia ser o suficiente para arruinar tudo.
Minha mãe me deixou sozinha no banheiro por tempo suficiente para que eu pudesse me encarar no espelho e perceber que, mesmo depois de tanto tempo, às vezes eu ainda me parecia com a menina de dezesseis anos, que sonhava com finais felizes e com histórias de amor intermináveis.
Me sentia patética por pensar que a realidade seria tão doce quanto um sonho bom e apaixonado, e ainda pior por saber que eu tinha feito tudo aquilo, que eu tinha bebido tanto simplesmente porque não conseguia computar dentro do meu cérebro se eu tinha acabado de alcançar minha liberdade ou não.
Eu esperava estar mais madura depois de cinco anos, mas, mesmo depois de tanto tempo, mesmo depois de tudo o que eu tinha vivido, algumas decisões ainda pareciam impossíveis de serem tomadas.
Liberdade ou euforia?
Eu mal sabia dizer se a conversa que tive com Daniel tinha sido realmente plausível. Tinha me parecido tão desesperadoramente precipitada, porque nós tínhamos conversado apenas durante o meu aniversário e, de repente, eu estava na cozinha da minha irmã, dizendo que o amava e que, por isso, não poderíamos seguir juntos.
Eu fui esperta, sábia ou completamente idiota?
Eu não fazia ideia de como a vida dele estava. Quando decidi que precisava falar com ele, eu não fazia ideia do quanto ele já tinha seguido em frente, e, se eu não tivesse dado a sorte de descobrir que ele ainda me amava, assim como eu o amava, poderia ter gerado o maior problema do universo.
Pensava que eu estava tão mais madura e tão mais mulher, que tinha me convencido das atitudes que tinha tomado, mesmo quando chamei a minha única fonte de renda de merda. E, por eu pensar que eu tinha amadurecido muito e me tornado uma Allison muito mais poderosa que a Allison de dezesseis anos, eu tinha jogado tudo no lixo sem pensar duas vezes.
E se Daniel nunca mais quiser saber de mim?
Eu tinha jogado um emprego no lixo porque, no fundo, pensava que aquilo seria um estopim bom o suficiente para que eu corresse para os braços dele e dissesse "vamos fugir juntos, como nos filmes". Mas tinha me esquecido completamente da conversa, eu tinha o liberado para seguir em frente, e sabia que ele o faria se fosse preciso.
— Onde eu tava com a cabeça? — Passei os dedos sobre os olhos.
Mamãe entrou no banheiro com roupas secas e quentes, e por mais que eu dissesse que já conseguia me vestir sozinha, ela insistiu em me ajudar a colocar a calça de tecido aveludado azul.
Ela passou as mãos pela minha cintura, mesmo que eu já conseguisse andar, e me conduziu até o meu quarto. Me ajeitei abaixo das cobertas, e observei-a se afastar de mim, caminhando para fora do quarto com os passos leves e cuidadosos, como se eu já tivesse pegado no sono.
Seus dedos curtos contornaram a maçaneta redonda da porta e a puxou até que a lingueta estralasse no batente, me deixando no escuro do quarto, recebendo apenas a iluminação fraca que entrava pelas frestas da janela.
Ouvi seus pés rangerem enquanto ela descia as escadas. Eu queria ouvir o que eles conversariam, queria saber se era sobre o que eu tinha dito para o meu pai, no carro, queria saber se eles finalmente se ajeitariam e aprenderiam a se amar, mas não conseguia ouvir absolutamente nada.
Era angustiante não conseguir ouvir nada, porque ainda que eu fosse capaz de ouvir as coisas mais dolorosas da vida, a incerteza ainda era pior que o nada.
Ouvi meu celular vibrar dentro da bolsa, que estava jogada no canto, ao lado do armário embutido na parede. Ela deveria estar pendurada nos ganchos da parede, mas meu pai não se atentava àquele tipo de detalhe, então ele a largou no chão enquanto minha mãe me ajudava com o banho.
Eu queria me levantar, caminhar até a bolsa, pendurá-la na parede e ver o que tinha chegado no meu celular, mas meu corpo não conseguia mais responder. As pálpebras estavam ainda mais pesadas, meus pensamentos já estavam desordenados, a visão estava ficando turva e os sons estavam ficando distantes.
— Eu quero saber... — Murmurei para mim, tentando me convencer a manter os olhos abertos, mas falhando miseravelmente.
∞
Era como se eu estivesse em um restaurante. A luz amarelada e fraca iluminava o topo de todas as coisas, dando ao ambiente um toque de ouro industrial, contrastando com as plantas bem verdes que se penduravam nas paredes.
Eu não me lembrava de já ter estado ali algum dia. Parecia, na verdade, uma mistura estranha entre o meu apartamento dos sonhos e um restaurante industrial qualquer, mesclando móveis claros e escuros em um ambiente que quase não fazia sentido.
Eu estava sentada de frente para ele, que dispensou o garçom rapidamente, entregando o cardápio para o mesmo antes que ele saísse e nos deixasse sozinhos.
Suas mãos rumaram para as minhas, segurando-as com cuidado. Seus olhos cor de esmeralda, como águas claras de um oceano cristalino, se fixaram em meus dedos. Eu queria que ele estivesse feliz, mas tudo o que eu conseguia enxergar dentro dele era uma dor quase incontrolável.
Detestava que ele fosse tão profundo por trás daqueles olhos, porque eu sempre acabaria me afogando dentro de seus sentimentos.
Ele tensionou o maxilar e baixou os olhos verdes para o espaço que existia entre nós dois. Seus ombros desceram e ele soltou um longo suspiro, transmitindo para mim toda a sua energia. Era triste e melancólico, as cores pareciam ser sugadas de nós dois, enquanto, ainda que eu tivesse esperanças, um filme completo de todas as minhas escolhas passava diante dos meus olhos.
— Não podemos ficar juntos — Disse ele, segurando minhas mãos e circundando os polegares entre meus dedos.
— Mas não existe mais nenhum obstáculo, Daniel, eu me livrei de tudo — Rebati dom a voz embargada, sentindo meus pulmões se comprimirem. — Você disse que me amava!
Ele abriu um sorriso dolorido, apertando meus dedos contra suas mãos.
— Eu amo — Ele levantou os olhos para o meu rosto. — Eu te amo o suficiente para te deixar ir se achar melhor. Lembra? — Eu mal conseguia desviar meus olhos dos dele, queria responder, queria gritar e protestar, dizer que ele estava sendo um idiota, mas não conseguia mover meu corpo, não tinha controle sobre nada. — Você me pediu para te deixar ir, e eu deixei...
Neguei com a cabeça rapidamente milhares de vezes.
— Não, Daniel — Puxei suas mãos para mais perto do meu corpo. — Eu não quero que você vá!
Ele soltou minhas mãos, cruzando os braços sobre a beirada da mesa, passando a unha do polegar sobre a ponta do apoio de prato. Seus olhos estavam magoados, mas ele parecia inflexível demais.
— Não tem mais jeito. Você já disse, já me mandou embora — O sorriso dolorido deu lugar às sobrancelhas arqueadas para cima, conformadas. — Eu sinto muito!
Ele levantou-se da mesa, abandonando-me para trás com a cadeira vazia e o coração partido em um milhão de pedaços minúsculos, impossível de ser reparado novamente com fita adesiva ou cola quente.
De repente, Corey apareceu ao meu lado, junto de Angeline. Seus sorrisos largos e orgulhosos faziam meu peito se contorcer ainda mais. Eu sabia que não era culpa de nenhum deles dois, mas sentia vontade de xingá-los para os quatro ventos até que eu fosse capaz de voltar no tempo e apagar a droga do dia em que eu disse para Daniel que precisávamos seguir nossas vidas longe um do outro.
— Eu avisei — Disse ela, dando um tapinha no meu ombro.
— Foi demitida só para poder ir atrás de um cara que não te quer mais! — Corey deu de ombros. — Patética!
Rangi os dentes, pronta para gritar com ele. Eu queria avançar em seu pescoço, arrancar seus olhos com minhas unhas, socar sua cara até que ele ficasse completamente irreconhecível, mas eu não tinha forças, talvez eu nunca teria.
Me levantei, decidida a colocar um fim naquela merda, empurrando a cadeira com a parte de trás das pernas. As mãos espalmadas sobre a mesa. Eu não oferecia nenhum tipo de perigo para eles, que eram bem mais altos que eu, mas eu não podia deixar aquilo barato.
— Vai para o inferno, seu desgraçado — Gritei, empurrando-o para trás.
Corey cambaleou para trás, empurrando as mesas e cadeiras do restaurante, derrubando copos e talheres no chão. Seu rosto queimava como brasa e, automaticamente, seu rosto se metamorfoseou até que se tornasse Miles, com seus olhos azuis furiosos e suas narinas dilatadas em ódio, como ele costumava fazer quando brigava comigo.
Abri os olhos, ofegante, encarando o teto do meu quarto. Eu estava afogada em cobertas e travesseiros. O coração acelerado quase rompia minhas costelas, me impedindo de pensar direito.
Eu estava aliviada, de certa forma, porque estava em casa, segura, no meu quarto, deitada na minha cama e longe do Miles que, pelos meus cálculos, talvez ainda estivesse preso.
Levei a mão ao peito, tentando acalmar o coração e recuperar o ritmo da respiração. Eu detestava ter sonhos como aqueles, me sentia eternamente presa no meu maior pesadelo dos dezesseis e ao meu relacionamento catastrófico.
Não queria sonhar com Miles, ou com situações em que, magicamente, pessoas que não tinham nada a ver com ele, se transformassem naquele desgraçado como se, o tempo todo, ele fosse o demônio da minha vida, me perseguindo para lá e para cá, se disfarçando de pessoas próximas só para, no fim das contas, dar as caras novamente.
Eu sabia que era besteira minha, sabia que não podia simplesmente deixar que o nome dele voltasse para a minha mente como se ainda fosse uma ferida aberta, porque não era, mas detestava como o subconsciente humano funcionava, porque volta e meia algumas lembranças pulavam na frente dos meus olhos novamente, e eu me via assustada com elas.
Corri os olhos pelo quarto, tentando descobrir o horário. Observei a luz que entrava pela janela, era clara, dourada e fresca, o que significava que eu tinha dormido a noite inteira e provavelmente ainda não tinha passado do período da manhã.
Eu me perguntava o quão cedo era, se meus pais ainda estavam em casa, tomando café da manhã antes de ir para o trabalho, se meu irmão já tinha saído para estudar na biblioteca ou para correr. Queria que eu estivesse sozinha em casa, assim, pelo menos, eu poderia adiar a conversa constrangedora sobre o que eu tinha feito na noite anterior.
Me levantei preguiçosamente da cama, colocando um pé após o outro no tapete felpudo que segurava minhas pantufas de coelho e adornava a frente da minha mesa de cabeceira branca.
Senti minha cabeça latejar assim que me coloquei de pé. A dor aguda se assemelhava a ter milhares de agulhas sento enfiadas atrás dos meus olhos.
— Merda — Coloquei as mãos no rosto, tapando os olhos. — Se é essa a consequência de ficar bêbada, eu nunca mais vou beber!
Caminhei preguiçosamente na direção do meu guarda-roupa, pegando roupas confortáveis para colocar depois que eu tomasse um longo banho decente, porque era constrangedor saber que, na noite anterior, eu precisara da ajuda da minha mãe para me lavar e, mesmo assim, sabia que não teria ficado tão limpa quanto eu gostaria.
Meu celular vibrou dentro da bolsa e eu abaixei-me com as roupas nos braços, abri o zíper e o puxei dali de dentro. Droga, a bateria estava prestes a acabar e eu esperava que ela fosse forte o suficiente para suportar apenas eu desbloquear o celular para conseguir saber de quem era a mensagem.
Antes que eu tivesse a chance de desbloquear o celular, ele desligou por completo, me deixando sozinha, encarando meu reflexo na tela preta. Baixei a cabeça, suspirando minha frustração para fora.
Voltei para perto da minha cama, revirando a mesa de cabeceira e as cobertas até encontrar meu carregador, que estava caído entre os dois objetos. O coloquei na tomada e conectei o celular à fonte de energia, quem quer que estivesse me mandando mensagem, teria que aguentar por mais alguns minutos até que o celular tivesse forças para acender novamente.
Fui até o banheiro, adiantando todos os afazeres da manhã antes de constatar que eu realmente estava sozinha em casa, o que era ótimo, já que a conversa tinha sido completamente adiada, mesmo que eu temesse pela minha própria vida, afinal, eu não tinha só enchido a cara, eu tinha sido demitida em menos de um mês de trabalho.
Desci as escadas rapidamente, eu tinha planejado todo aquele dia dentro da minha cabeça e a primeira coisa que eu queria fazer antes de não sair mais do meu quarto era tomar um café da manhã elaborado, só para poder comemorar o dia em que eu finalmente tinha ficado bêbada de verdade.
Me servi bem com suco de laranja fresco, torradas e bacon fritos na hora. Não me importei em demorar para comer, saboreando lentamente cada pedacinho do meu café da manhã antes de ouvir meu celular vibrar no andar de cima, fazendo um barulhão sobre a mesa de cabeceira.
Pelo visto, ele tinha ligado, o que era ótimo, mesmo que eu não estivesse com a mínima vontade de subir todos aqueles degraus só para descobrir o conteúdo das mensagens que tinham me enviado. Tinha medo de, alguma forma, encontrar algo que não queria como, por exemplo, alguma foto de Daniel com outra pessoa, ou Corey querendo queimar as coisas que eu ainda não tinha conseguido levar para casa.
Subi para o quarto depois de ter arrumado toda a cozinha, não queria dar motivos para que minha mãe me desse mais alguma bronca além da que eu sabia que levaria por ter ficado bêbada.
Empurrei a porta do quarto, dando de cara com a tela do meu celular, acesa para o teto com as várias mensagens que estavam chegando.
Me abaixei diante da mesa de cabeceira e puxei o celular na minha direção, desbloqueando a tela e abrindo o aplicativo de mensagens para saber quem é que estava atrás de mim. Não tinham tantas pessoas quanto pensei que teria, as mensagens eram apenas de Angeline e Adalia.
Encarei o nome de Angeline várias e várias vezes antes de cogitar respondê-la. Eu não queria. Por mais que eu soubesse que tudo aquilo não passava de um sonho idiota, o fundo do meu peito ainda doía quando me lembrava da forma como ela desdenhou do ocorrido.
Eu a ignorei, passando o dedo pela tela e tocando sobre o nome de Adalia. Ela tinha deixado algumas mensagens para mim, uma na noite anterior e algumas pela manhã.
"Tá acordada?", "pelo visto, não", "eu tinha que falar com você, tipo, URGENTE".
Estreitei os olhos para as mensagens, me perguntava o que poderia ser tão importante para que ela me mandasse aquelas mensagens, Adalia, normalmente, não o faria. Ela costumava procurar por mim pessoalmente para conversar coisas urgentes e, como não nos víamos há cinco anos, pensei que ela continuaria me procurando pessoalmente e não por mensagens.
"Qual o problema?" enviei, esperando que ela respondesse. Automaticamente ela apareceu, digitando uma nova mensagem para mim.
"Tá livre?" perguntou, não demorando para mandar mais mensagens. "Eu precisava falar com você, apareceu uma oportunidade que pensei que você poderia gostar, sabe, pra complementar com o seu novo trabalho!".
"Eu fui demitida, não sei se vai continuar sendo uma boa ideia..." Enviei, suspirando, frustrada.
"Ah, não se preocupe com isso. Vai ser legal e importante mesmo assim" Ela respondeu. "Passo aí mais tarde pra te ver, a gente aproveita e conversa melhor sobre isso!".
Respirei fundo. Eu não estava exatamente no clima de receber visitas e conversar sobre oportunidades de ganhar dinheiro fácil ou coisa do tipo, mas talvez fosse a melhor escolha a fazer depois de praticamente estragar tudo e, se Adalia aparecesse por lá, talvez eu pudesse fugir um pouco mais dos meus pais.
Suspirei, relaxando os ombros.
"Tudo bem", enviei para ela, fechando a tela do celular e deixando ele carregar mais um pouco.
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