2 - ÂNIMOS & DESÂNIMOS

Eles nunca foram embora...

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Não era de espantar o fato d'eu estar naquele clima de ausência. E você sabe bem quando isso começou. Eu amava fazer o que eu fazia. Estar com as pessoas e ajudá-las me era a própria vida. Mas, nem sempre consigo fazer diferença de forma positiva na vida de alguém e isso pesa mais do que qualquer espírito de mau agouro nos ombros.

– Ai Jadir, por que você escolheu esse filme para assistir?

Recostada em mim, Flávia não desviava os olhos da tela de cinema, mas seu medo era transparente.

– Sei lá – aliviei a voz. – Achei que era um romance do tipo de Ghost.

Não, não era! Estávamos assistindo um filme de terror daqueles. E eu sabia, é claro. O bom de estarmos no cinema e assistindo tais películas assombrosas é que eu poderia ficar aleatório sem que ficassem me questionando a respeito. Além das cenas sempre muito escuras, a adrenalina do suspense era tamanha que se tornava quase impossível desviar o olhar. Sem qualquer atenção assim eu quase poderia ser eu mesmo... Mas, afinal, quem sou eu de verdade? Você sabe quem você é? Sabe quem você foi?

***

Desde a infância eu tenho aquele sentimento em mim: se eu puder fazer alguém sorrir, eu tenho que fazer; senão não conseguirei conviver comigo mesmo por esse pesar; e isso exigia alguns sacrifícios em determinados momentos. Bem, talvez eu não seja o único na face da terra a ser assim...

Foi assim que em um dia qualquer...

– Aí Victória, já pensou em dar aulas de alguma coisa que você goste? Não sei... Maquiagem para palhaços, por exemplo.

– Ai, como você é engraçado – forjou desdém. – Mas, não... Como eu faria isso? Não tenho lá muitos conhecidos que poderiam se interessar.

– E música? – Falei de supetão, olhando para o piano da sala. – Além de ter vários conhecidos no meio, posso indicar algumas pessoas também. Dizem que a música é uma excelente terapia...

Victória pareceu ponderar o assunto, mas logo o leve semblante de ânimo foi cerrado, e falou:

– Eu não sei, Jadir... Eu ainda...

– Mulher, eu sei o que você tem passado e o quanto tem chorado – cortei-a, firmando a voz. – Sei das suas limitações físicas e até as emocionais.

Ela tentou me interromper, mas não deixei e prossegui:

– Helena só quer saber de viajar... Também, se eu tivesse recebido o que você deu a ela pela casa, eu estaria fazendo o mesmo pelo resto da vida e acompanhado, é claro – divaguei. – Mas, enfim. Dona Ciça, sua matrona, não poderá cuidar de você por muito mais tempo, pois o marido já está em idade avançada e precisa dela. A Angélica, filha deles, em breve vai partir para a própria vida e não poderá seguir como sua babá para sempre.

Respirei fundo, sem nem olhar para Victória, e continuei:

– Você sabe que o Daniel tem que continuar com a carreira, senão ele morrerá aos poucos de frustração. E o fato de você continuar com o ar de dependente total não ajuda muito não...

– Jadir, para – falou baixo e tremulante. – Você não entende...

Olhei-a bem nos olhos e falei, sério:

– Posso não saber tudo, mas eu sei que você não pode continuar sendo egoísta. Você precisa se ajudar, para poder aliviar a sobrecarga daqueles que gostam de você de verdade.

Sabendo que eu estava falando a verdade, mas não cedendo, perguntou entredentes, com leve irritação:

– E o que você propõe? Esquece da minha visão e meus problemas pulmonares? Se era para você me jogar tudo na cara, eu jamais teria te contado nada sobre mim.

– Ah, fala sério Victória – abaixei os ombros, cansado por ter que me repetir. – Caia na real! Daniel nunca vai aceitar ser sustentado por você e, pra completar, não quer que você faça nada. Porém, tampouco ele pode dar conta de tudo o que você precisa, e não falo somente da situação financeira, mas da atenção que todo o ser humano precisa e satisfação consigo mesmo. Qual é? – Desafiei. – Vai ficar trancada no quarto só esperando por ele, como uma boneca e seus olhos de vidro? Sua vida vai ser esta para sempre? 

– Não seja tão mau, Jadir – suspirou, mas ainda exaltada. – Você falou em música – cortou a bronca. – Eu não consigo cantar mais.

Aliviei a voz ao falar:

– Victória, você sabe a teoria, além do mais toca piano muito bem. Você mesma já me disse que sua visão deficitária, mas não ausente, não te prejudicou em nada quanto a isso. Além do mais, sua disposição de manhã e à tarde é melhor do que a minha, seus pulmões não te traem durante o dia.

– Então...

– Você não acha que se sentiria bem dando aulas para crianças? Não apenas poderia ajudar de forma "honesta" a vida financeira de vocês, mas também estaria dando novo fôlego para outras pessoas. Não acha que seria uma boa?

Ela ponderou novamente, inclinou um pouco a cabeça e expirou:

– Acha que o Daniel poderia não concordar?

Ah o Daniel! Era de quem mais eu ouvia falar nos últimos dias... Superprotetor ele sempre foi, mas com a Victória começava a beirar a doença. Bem, mas desta vez fui eu quem falou nele primeiro. Eu negaria firmemente a indagação da minha amiga-paciente-maloqueira caso o referido se tratasse de uma pessoa normal, mas não do irmão mais novo do Adriel. E olha que eles nem estavam casados ainda.

Dei de ombros e virei-lhe as costas provocativo, encerrando a conversa com a retórica clássica do desdém:

– E o que isso me importa?

Eu não sou muletas que andam e carregam você, minha querida amiga.

***

– JÁ SEI!

Não posso descrever o susto que eu tomei ao perceber que ela ainda estava lá.

– Estela, sua doida. Mais uma dessas, eu...

– Ah, deixa de besteiras Jadir. Você é mais ardido que pimenta malagueta e empedrecido tal qual o pensador de Rodin.

Franzi o cenho levemente enojado e perguntei:

– Você andou lendo romance de banca outra vez?

– Esqueça isso e preste atenção. Eu já sei o que vamos fazer para o casamento do Daniel com a Victória.

– Por que a gente precisa fazer alguma coisa? – Indaguei exaurido.

É óbvio que ela me ignorou e contou seu plano. Estávamos no novo café da nova academia da mesma praça fedida. Natalie e o irmão se responsabilizaram pela nova construção, tendo conseguido patrocínio e muita força de vontade. Ah, muita mesmo! Não foi fácil para muitos voltar àquele lugar, mas eles conseguiram e o ambiente voltou a ser tão frequentado quanto os bares da esquina. Na verdade, se tratava de um clássico. Muitos vinham do bar a fim de queimar o álcool nas pedaladas das ergométricas. O problema, é que a maioria, assim que saía da academia, voltava para o mesmo bar... Assim se entra em um ciclo sem fim.

– Hey, você ouviu bem o que vamos fazer? – Estela me chamou a atenção.

– Por que eu? – Fingi choro e indignação. – Chama aqueles colegas da sua faculdade.

– Não seja ciumento, Jadir – abafou o ânimo. – Você conhece muito mais a respeito. Embora não seja lá muito útil, é o melhor que tenho no momento.

– Uau, obrigado pela parte que me toca – fingi estar ofendido. – Mas, eu tenho uma pergunta pra você.

– Uma só? – Continuou na provocação e cruzou os braços. – Vamos lá, qual é?

– O Adriel sabe disso? Sabe o que você pretende?

Foi uma rápida inflada naqueles pequenos e puxados olhos, entregando seu estado de surpresa. Porém, foi confiante que mandou de forma certeira:

– Ele não precisa saber de tudo.

A mesa virou e a surpresa passou a ser minha. Estela era doida e parecia gostar de brincar com fogo. Só espero que o queimado não seja eu outra vez...

Suspirei derrotado.

***

– Alô! Ôh de casa!

Ôh a casa...

Não resisti o riso e era sincero.

– Calma, já estou indo – falou Angélica, ao abrir a porta.

– Victória está pronta? Eu trouxe essa princesa aqui para a primeira aula – falei, apontando para Lila, que ainda estava no meu colo. No entanto, só foi ver o piano que saltou, quase me levando consigo.

Óia o pianu Jadí!

Dona Eustácia me acompanhava, um tanto apreensiva como sempre.

– Acha que vai fazer bem pra ela mesmo, doutor?

– É claro. Percebe como ela está animada?

– Olá – falou Victória, se aproximando, com seu porte elegante clássico e brincou: – Quer dizer que eu vou ensinar essa menina linda aqui?

Ocê qui é linda!

Lila se afeiçoou a Victória na mesma hora e pareceu recíproco. Eu sabia que essas aulas seriam ótimas para a terapia das duas, mas eu confesso que ansiava logo pelo final da aula a fim de saber os detalhes do chilique que Daniel dera no dia anterior. Épico! Quase não consegui conter as risadas fora de hora, ao passo que Angélica, a ajudante da Victória, me cutucou:

– Está tudo bem?

– Claro... É bom saber que elas já estão se dando bem – desconversei e apontei para as duas que mais pareciam membros da realeza, enquanto que eu não passava de um simplório homem do povo.

No entanto, ainda pensava que qualquer ânimo recente alterado não seria nada comparado ao que a Estela estava aprontando para o dia em que a Victória e Daniel se casassem, o que não iria demorar muito. Bem, se não fosse algo escandaloso, definitivamente não teria o selo da minha amiga maluca. O pior é que eu era seu cúmplice ativo.

Dei um tempo naqueles pensamentos e me voltei para Angélica, sussurrando a fim de que a dona Eustácia, a avó da Lila, não ouvisse:

– Aí, você se lembra do que combinamos certo?

Ela me fitou e meneou a cabeça afirmando. A ideia era Victória dar aulas remuneradas, pois eu sabia que, mesmo a custo, seria mais fácil que Daniel aceitasse a ajuda financeira dela desta forma, do que recebendo da herança deixada pelos pais. Mas, dona Eustácia não poderia pagar pelas aulas...Elas teriam que ser de graça.

– Está aqui – passei o envelope a Angélica sem deixar que ninguém mais percebesse. – Não conte a ninguém que estou pagando pelas aulas.

– Não contarei – respondeu com olhos cintilantes. – A saída amanhã a noite ainda está de pé?

Balancei a cabeça concordando, mudando levemente o ânimo, e voltei meu olhar para Lila e a Victória ao piano. Ambas não paravam de sorrir e falar, Lila sorrindo do seu jeito claro; reluzia o momento feliz em seus olhos. Quanto a mim, eu precisava dividir muito bem meu tempo, a fim de dar conta de tantos compromissos. Prioridades Jadir! O que eu diria para a Flávia mais tarde? O que você faria, pai? [...] Ah, eu sei o que você fez...

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Precisamos falar do Jadir:

O personagem que liga todos os outros pode até ter parecido vilão em alguns momentos. Talvez foi o que mais tenha demonstrado fraqueza de toda a turma, revelando que sim, é humano. Mas, que tipo de humano ele é? Já conseguem perceber?

Até bem breve, seus lindos! 

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