04
Winter's pov:
"Dizem que, com o tempo, tudo pode melhorar. Mas eu não consigo entender como isso pode acontecer. A cada dia, tudo só se torna mais difícil."
O céu está banhado em tom alaranjado e a brisa de fim de tarde só me deixa ainda mais reflexiva. Meus olhos se voltam para as luzes do bairro ganhando vida. Uma copia de Hamlet está esquecida sobre meu colo. Não sei quanto tempo passei na biblioteca, mas definitivamente não foi a leitura quem me fez companhia nesse período e sim os meus pensamentos.
A pior companhia que eu poderia ter no momento.
Jimin saiu do cômodo com uma clara aversão a minha pessoa. E não posso dizer que nosso primeiro contato tenha sido positivo. Embora eu tenha ensaiado diversas vezes como causar uma boa primeira impressão, foi só por os olhos nela para saber que eu não estava preparada. Porque essa garota é completamente diferente de tudo o que imaginei.
Dizer que minha mãe me encurralou é pouco, porque sei exatamente aonde ela quer chegar com tudo isso. Ela não está só tentando me trazer de volta ao mundo real, está esfregando o mundo real na minha cara.
Quase parece que estamos recriando um relacionamento de mãe e filha que está perdido no tempo e no espaço. Mas eu não sou uma pessoa idealista e sei que as coisas não são tão simples assim.
Quando eu era adolescente, passava praticamente todas as minhas tardes na editora onde ela trabalha. Numa dessas visitas, Taeyeon me repreendeu mais uma vez porque eu andava relapsa com meus estudos, dizendo que para entrar em uma faculdade de peso era necessário muita dedicação e comprometimento. Mas meu pai me ensinara que era preciso respeitar o meu tempo, ele dizia que, se não sentíamos a alma na coisa, não devíamos continuar nos forçando a fazê-la.
Eu ainda me lembro desses momentos.
Apesar das cobranças, minha mãe sempre me abraçava e sorria. E quando encerrava o seu horário de trabalho, nos saímos para fazer algo juntas. Aquela foi uma das últimas vezes em que fomos felizes juntas.
Levo as mãos aos olhos e dentro de instantes, lembro-me do que aconteceu comigo. Lembro-me de como ele olhava. Como ele se sentia. Alguns dias eu me culpo pelo que aconteceu, esquecendo que eu fui uma vítima naquela noite.
Ela não conseguia respirar.
Minha garganta aperta como se os dedos dele estivessem enrolados ao redor do meu pescoço em vez da mulher.
Corra Minjeong! Minha mente continua gritando, mas eu fico imóvel, incapaz de olhar para longe do horror diante dos meus olhos.
Meu celular começa a tocar, trazendo-me de volta a realidade. O nome de Ningning aparece na tela, mas não atendo porque sei que, se atender, ela vai notar que não estou bem e eu vou ficar incomodada com isso. Ningning liga mais uma vez e então manda uma mensagem.
Ela pergunta se a gente pode conversar.
Só que eu não tenho a menor vontade de fazer isso agora, então fico aqui, nessa sala silenciosa, enquanto minha ansiedade começa a aumentar. A ansiedade é como um animal selvagem. Ela me ataca nos momentos de tranquilidade, quando o mundo está calmo e eu também deveria estar. Mas é nesses momentos que minha mente começa a girar. Eu fico pensando obsessivamente sobre todos os aspectos da minha vida. Meu coração e minha mente travam uma guerra.
Eu não consigo relaxar. Meu corpo está exausto; mesmo assim, sempre que eu fecho os olhos, ele aparece na minha mente. Seguido pela imagem de uma mulher e seu belo rosto implorando por socorro.
Coloco meu livro sobre a mesa e caminho até a janela, respirando fundo o ar de fim de tarde.
Sem conseguir me livrar do sentimento provocado pelas minhas lembranças, eu faço a única coisa que sei que vai fazer com que eu me sinta melhor. Vou para a varanda de casa.
Caminho até a área externa de casa e então paro. Não consigo evitar olhar ao ver Jimin sentada em uma das cadeiras ali, usando óculos de armação fina e lendo um de seus livros. Ela é uma garota linda. Veste um conjunto de moletom, tem longos cabelos escuros e olhos castanhos-esverdeados. Parece bem a vontade em sua leitura.
Hesito brevemente, parada no batente da porta, sabendo que minha vida está prestes a virar de cabeça para baixo. Mas nem adianta pensar em me retirar, não estou em condições de ficar trancada em um quarto no momento.
Me aproximo e apesar de notar minha presença, ela continua em silêncio.
O vento está gélido e afiado, e eu me sento em uma cadeira próxima a sua, observando o jardim a minha frente.
— Pensei que fosse para manter distância — ela diz bruscamente.
Sobressaltada com o som da sua voz, volto minha atenção para o seu rosto. Penso em retrucar, mas lembro que vamos ficar presas juntas pelos próximos meses, é melhor ela se acostumar com a minha presença. E é melhor eu me acostumar com o olhar dela.
— Você está quieta. Não conheço você há muito tempo, mas, pelo que vi, você não parece ser sempre assim, calada.
Bem. Ela percebeu rápido.
— Tem razão, não sou — digo vagamente. — Estava apenas pensando sobre algumas questões.
Não tenho vontade de explicar que passei a maior parte da tarde pensando em como eu fui uma idiota com ela. E em como poderia consertar isso.
— Talvez possamos conversar sobre isso aqui. — Ela diz, fechando o livro e apontando entre nós duas.
Use suas palavras, Minjeong. Diga a ela que não é culpa dela o que está sentindo, mas puro pânico pela perspectiva de dividir a casa com uma desconhecida que, por acaso, também te faz recordar de tudo o que aconteceu.
— Quero que você saiba... — sussurro, procurando as palavras certas. — Que apesar daquele meu ligeiro ato criminal, não sou uma idiota. Não tinha intenção de ser grosseira com você.
— Olha, eu não estou aqui para interferir na sua vida — ela diz em um tom de voz sério. — Estou aqui por uma escolha que inicialmente nem sequer foi minha.
Estreito os olhos e fico a encarando.
Ela estranha.
— Por que está me olhando assim?
— Você não deveria perder seu tempo explicando nada para alguém com um olhar tão julgador quanto o meu.
— Que talento você tem em incluir insultos em todas as frases – ela diz, ajeitando uma mecha de cabelo. — Me parece que você tem mais problemas internos do que deixa transparecer.
Ela não tem ideia do quanto está certa, e não tenho nenhuma intenção de deixar que descubra isso. Eu me tornei uma especialista em afastar as pessoas, agindo da forma mais reservada possível até levá-las ao limite. Mas com ela é diferente. Não só porque a regra imposta pela minha mãe me impede de mandá-la embora. Mas porque vou fazer o necessário para impedi-la de perceber o quanto estou despedaçada por dentro.
— Então por que está aqui se não foi uma escolha sua? — Pergunto, ignorando seu comentário anterior.
— Por conta das minhas mães.
Estreito os olhos para sua expressão culpada.
— E?
Ela abre um sorriso inocente.
— E para que eu sobreviva ao primeiro semestre, a rotina intensa de estudos e fique longe das festas de fraternidade. Mas não se engane, se tratando de mim isso é o mais indicado.
— É mesmo? — Pergunto, sarcástica.
— Vejam só. Para alguém que me expulsou há poucas horas, você parece bem interessada na minha vida — Jimin diz, com um sorriso que provavelmente faz com que ela tenha muitas visitas na cama.
Levanto as sobrancelhas com desinteresse para o seu comentário.
— Isso pode te surpreender, mas há poucas coisas que eu odiaria mais do que ter interesse na sua vida.
Ela solta um suspiro exasperado.
— Imaginei que você diria isso.
— Pois é.
— É... — Seus dedos brincam com a lombada do livro. Ela parece pensativa por um momento, então diz: — Já que estamos nessa de conversar, por que não me fala um pouco sobre você?
— Quer saber? — Falo, como se tivesse acabado de me dar conta de algo. — Tive uma ótima ideia. E se a gente não fizer isso agora? Você volta para o seu momento de leitura e eu volto para a biblioteca.
— Meu momento de leitura?
Aponto para o livro em suas mãos.
— Não era isso que você estava fazendo?
Ela sorri
— Você realmente precisa trabalhar esse seu humor. Sua anciã.
— Anciã? Quantos anos acha que eu tenho?
— Você parece ser mais nova do que eu, mas em breve vai fazer cem.
Estreito os olhos para ela.
— Está falando isso por causa do meu humor? — Pergunto, odiando que tenha me feito baixar a guarda. Ela não só invade meu espaço pessoal, como brinca com meu passado e me acusa de ser uma velha como se estivéssemos discutindo o tempo.
Na verdade nem sei porque ainda estou aqui, mas ela parece meio convencida, e essa coisa toda perfeitinha me deixa louca.
Prefiro garotas reais, o que não é o caso.
Jimin se inclina na minha direção. Tento ignorar o fato de que é uns bons centímetros mais alta que eu e tem um olhar observador.
— O mau humor vem com o visual sombrio? — Ela pergunta, me encarando. — Ou vende separado?
— Quando você decidir tirar a roupa de ensaio fotográfico casual talvez eu te responda.
— Tá, olha, você me pegou — ela diz, levantando as mãos. — Eu não quero discutir. Mas tenho que ficar aqui pelos próximos meses. Como vou saber que você não vai dar uma de louca e me matar enquanto estou dormindo?
Por alguma razão desconhecida me pego sorrindo.
— Você devia tentar sorrir mais. Vai perceber que é bem mais interessante.
Por um segundo, penso em dizer que não preciso de ajuda para ser mais interessante. Então me lembro de que não sou mais Kim Minjeong, a garota cheia de sonhos e objetivos. Sou Kim Minjeong, reclusa sem qualquer utilidade. Não consigo nem ser útil para mim mesma. Mal consigo lidar com meus problemas.
Inspiro o ar frio do fim de tarde para impedir que o desespero instalado na minha garganta saia na forma de um grito enraivecido. Se eu deixar que veja uma fração do que existe dentro de mim, ela vai exigir ficar em outro lugar.
Mas ela não tem culpa da minha situação. Ninguém têm. Então não posso simplesmente descontar todas as minhas frustações nela.
— Em qual faculdade você vai ingressar? — Pergunto, quase engasgando com uma pergunta tão sem importância. Faz tanto tempo que não tenho uma conversa casual que é, ao mesmo tempo, pouco natural e estranhamente familiar. A vantagem é que distrai a minha cabeça de pensar na situação em que me encontro.
— Vou cursar letras na Yonsei — ela responde, me puxando de volta para a conversa.
— Quem diria? — Murmuro.
— Desculpa se sou o estereótipo do previsível.
Sorrio de leve.
— Na verdade, isso nem passou pela minha cabeça.
— Hã, não. O que foi que você pensou então?
Dou de ombros.
— Nada em específico, mas também não imaginei que você tivesse interesse por essa área.
Jimin dá uma risada.
— Você não é a primeira pessoa a dizer isso. — Ela fala, assumindo uma ar mais pensativo. — Minha família também ficou surpresa quando mencionei para qual curso tinha me inscrito. Mas essa é uma ótima forma de me qualificar para trabalhar em uma editora, que é o que realmente quero.
— Então você está no lugar certo. A área literária sempre foi o forte da minha família. As vezes até sinto falta do quanto sonhava em seguir por esse caminho — Minha resposta é simples e muito mais reveladora do que eu gostaria.
Fico esperando que ela pergunte o que aconteceu. Que diga que tem coisas mais importantes na vida do que ficar presa no passado, ou que me tranquilize afirmando que ainda tenho chance de seguir meus sonhos. Mas ela só fica em silêncio, não com pena, mas reconhecendo o que eu falei.
— Comecei a ler para fugir — ela revela, depois de alguns segundos de silêncio.
Olho para Jimin, notando que seu nariz é levemente arrebitado e meio que bonitinho.
— Fugir de quê?
Ela me encara, e nossos olhares se cruzam em um momento de tensão. A mensagem é clara: Jimin vai me contar seus segredos se eu contar a ela os meus.
O que nunca vai acontecer.
— Vi que você tem alguns exemplares de Shakespeare. — Ela comenta, olhando para o jardim a nossa frente. Então se levanta e caminha pela varanda. Dá para ver que a leve brisa em seu rosto provavelmente a faz se sentir bem depois de todas a agitação da mudança.
— Tenho. — Respondo naturalmente. — Gosto muito dos trabalhos dele. Hamlet foi o primeiro que li, na quinta série. E ainda hoje é o meu preferido. — Jimin parece um pouco surpresa com a minha declaração. — O quê foi?
Ela faz uma pausa e sorri. Imagino que esteja rindo de si mesma, pois eu não fiz nada engraçado.
— Deixa pra lá. Foi só um devaneio.
— Duvido que isso seja verdade — Digo, olhando para o céu que já está escurecendo. — Enfim, acho que você queria ficar sozinha e eu já tomei muito do seu tempo.
— A casa é sua. Pode ficar. Amanhã começam minhas aulas na faculdade, então vou para o meu quarto descansar.
Ela passa por mim, mas então se vira.
— Posso fazer uma última observação em troca desse papo relativamente amistoso? — Pergunta, andando de costas na direção da sala, de modo que continua voltada pra mim.
— Não, obrigada.
Jimin me ignora e abre um dos seus sorrisos perfeitos.
— Você não me pareceu realmente incomodada durante esse tempo em que ficamos conversando.
Abro a boca para retrucar, mas meu queixo cai quando percebo que... Ela está certa.
Nem pensei nessa questão.
— Boa noite, Kim — ela diz, sorrindo. E o sorriso dela faz reviver algo dentro de mim.
— Boa noite, Yoo.
Fico parada ali por alguns instantes, observando-a desaparecer dentro de casa. Então me viro e olho para os jardins, dizendo a mim mesma que estou aliviada por finalmente ter um momento de tranquilidade.
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