03
Karina's pov:
"Dizem que todo mundo tem alguma estranheza. Mas o mais interessante é a ideia de que há alguém por aí tão peculiar quanto você."
Apesar da viagem de carro para Seul ter durado pouco mais de três horas, não me sinto cansada. Pelo contrário, me sinto completamente desconectada da minha antiga vida. É perturbador, mas também libertador.
Como se eu pudesse recomeçar de verdade.
Yeji me manda uma mensagem, desejando boa sorte nessa nova fase da minha vida e reafirmando que está a apenas uma ligação de distância.
Digito uma mensagem rápida indicando que estou a poucos metros da minha moradia temporária, sem saber se realmente estou. Entro em uma rua que não conheço, assim como a grande maioria das ruas deste lado da cidade, mesmo com os vidros fechados posso ver que se trata de um dos melhores bairros residenciais de Seul.
Eu não fiz planos de onde ficaria; uma parte tola de mim acreditou que, de algum modo, os dormitórios da faculdade eram a opção certa. Mesmo que as coisas não tenham saído assim, eu não estou muito preocupada com o lugar onde vou ficar a partir de hoje. Minha família já cuidou desse detalhe.
Minhas mães nunca disseram isso, mas eu tenho certeza de que elas interferiram nessa questão por que não acham uma boa ideia deixar alguém como eu sem supervisão.
Já foi uma surpresa quando eu disse que tinha me candidatado a uma vaga na Yonsei University. Mas diferente do que imaginei, Seulgi respeitou minha decisão de não querer permanecer em Busan no momento e declarou que estava muito orgulhosa de mim, e Joohyun respeitou o fato de eu finalmente estar correndo atrás de algum sonho.
De certo modo, eu não estava em posição de discordar da decisão delas. E se conseguir provar que vou ficar bem pelo próximo semestre, talvez não precise mais da supervisão de uma tutora.
O GPS me manda virar à esquerda e eu me recosto contra o assento de couro confortável, observando a paisagem de primavera em Seul. Sem dúvidas essa é uma das melhores épocas do ano para visitar a cidade. Tem algo estranhamente relaxante na forma como as árvores florescem ao longo do caminho.
Bom, é relaxante até eu começar a pensar no que realmente me espera.
Ainda que a questão de moradia não seja um problema, não sei muito sobre a família Kim. Quer dizer, conheci Taeyeon há alguns anos quando minha família veio passar uma temporada em Seul. Sei que ela é uma renomada editora literária e que atualmente chefia a equipe de uma das mais importantes editoras da cidade. Também sei que seu ex marido é empresário de importantes nomes do mercado literário. Mas quanto a filha deles? Não tenho ideia.
Não porque não esteja curiosa. As redes sociais teriam me dito o que quero saber num piscar de olhos. Mas, honestamente, achei que não devia bisbilhotar a vida pessoal de alguém que nem sequer conheço.
Só que não consigo parar de pensar em como a voz da minha mãe soou triste ao falar dessa garota. De como uma tragédia tinha se acometido sobre a família, embora as pessoas só saibam daquilo que veio à público.
A voz computadorizada do GPS me traz de volta a minha realidade e estaciono o carro em frente à uma casa. Na verdade, “casa” é pouco. Esta mais para uma luxuosa construção de pé direito alto. O lugar não é nem minimalista nem ostensivo. A única vez que vi algo do tipo foi quando moramos em um condomínio de luxo em Icheon.
Há algumas janelas no segundo andar, e em uma delas vejo uma garota com fones de ouvido olhando pela fresta das cortinas. Quando nossos olhos se encontram, ela desaparece depressa.
Respiro fundo e saio do carro. Toco a campanhia e vou pegar minhas malas. Quando volto, vejo uma mulher de meia idade abrindo a porta.
— Você deve ser a Jimin, certo? É um prazer finalmente conhecê-la — Ela diz, estendendo a mão. — Meu nome é Hayun, sou a governanta da casa. A Sra. Kim me falou muitas coisas a seu respeito.
Sorrio antes de aceitar seu cumprimento.
— Espero que tenham sido coisas positivas. Não quero causar uma primeira má impressão logo de cara.
Um silêncio se instaura, até Hayun dar uma risada.
— Aqui, querida. Deixe-me ajudá-la com suas malas. — Ela pega uma das minhas malas e indica para que eu a acompanhe. — Você ja deve saber, mas a Sra. Kim prefere que você fique em um dos quartos principais. Mas, se não der certo, podemos cuidar dessa questão.
Lanço um olhar meio curioso para ela. Deve ter alguma coisa escondida por trás desse comentário. Por que não “daria certo”?
Sigo Hayun através da área principal, fazendo meu melhor para não mostrar o quanto estou impressionada.
Já estive em tantas casas bonitas que sou meio que imune aos luxos que o dinheiro pode comprar, mas não estou acostumada com esse tipo de beleza. Não tem nada da ostentação esnobe aqui. É uma casa moderna. A sala é espaçosa e tem grandes janelas com vista para o externo. Na lateral do cômodo há uma larga escada de madeira que dá acesso ao piso superior. Não há quase nenhuma decoração excessiva, o que funciona muito bem. Frescuras demais desviariam a atenção da beleza natural da madeira exposta.
Acompanho Hayun até uma cozinha equipada, onde uma garota de cabelos ruivos se encontra sentada ao balcão. Ela se levanta quando nos escuta entrar e abre um grande e caloroso sorriso.
— Oi. Você deve ser a Jimin. Sou Ning Yizhuo, mas pode me chamar de Ningning. — Ela parece sincera em suas boas-vindas, mas eu sei que não vou conseguir retribuir o sorriso.
— É? Prazer em conhecê-la.
Ela não se abala com minha resposta indiferente e continua sorrindo.
Hayun vem para trás de mim e coloca a mão no meu ombro.
— Vou preparar o seu quarto. Ningning pode lhe fazer companhia enquanto isso. — Dito isso, ela desaparece pelo corredor, me deixando sozinha com minha nova conhecida.
— Não se preocupe, eu sou uma pessoa bem receptiva. — Ela volta a sentar em uma banqueta, que é em frente à ilha da cozinha. Sento-me também, tentando assimilar a torrente de novidades. — Então, Minjeong disse que você é de Busan — comenta.
Arqueio uma sobrancelha diante das suas palavras.
— Quem?
Ela reage da mesma forma que eu.
— Você não conhece a filha da Sra. Kim?
Isso tudo está começando a me deixar curiosa. Penso em perguntar o que ela está fazendo aqui, o que tanto falaram sobre mim antes da minha chegada, mas tenho preocupações maiores no momento.
Depois de pegar meu celular, abro as notificações. Suspiro ao ver a infinidade de mensagens que esperam ser lidas.
Algumas são das minhas mães, outras são de alguns amigos. Mas é a última mensagem que realmente me atinge. A Sra. Eun e eu não tivemos nenhum contato depois do que aconteceu com a filha dela. Mas ela ainda se importa o suficiente para me mandar um: Boa sorte, Jimin.
Respondo as minhas mães, informando que cheguei bem e que está tudo certo. Não saberia o que dizer aos outros.
— Você não parece muito interessada em conversar, não é? — Pergunta Yizhuo. Em seguida, revira os olhos para sua própria pergunta. — Foi uma pergunta idiota. Foi mal. Quero dizer... deve ser estranho vir morar na casa de outras pessoas.
— Ningning, sem ofensa... mas acho que só estou um pouco cansada da viagem.
— Quer sabe de uma coisa? Não precisa ficar respondendo às minhas perguntas. Vou fechar o bico bem rapidinho.
Sorrio. Essa garota parece ter uma personalidade única.
— Para ser sincera, eu nem sei o que pensar sobre tudo isso. — Digo, guardando o meu celular. — Mas você tem razão sobre o sentimento de estranheza. Quer dizer, eu quase não vi a Sra. Kim durante toda a minha vida, e agora não só vou morar na sua casa como ela também vai estar me monitorando. Isso é praticamente surreal demais para os meus padrões.
— Bem, eu posso ser sua salvadora nesse momento — ela brinca. — Então, porque não me faz algumas perguntas?
— Certo, me ajude a entender uma coisa... Você por acaso é amiga da família?
— Pois é. Sou amiga da Minjeong, que eventualmente você deve conhecer. O que também significa que você vai me ver bastante por aqui.
— Não tenho duvidas disso — murmuro, e ela dá uma risada.
— Você vai gostar daqui. Principalmente quando começar a faculdade.
— Eu quero acreditar nisso — digo. — Mas primeiro preciso conversar com a Sra. Kim. Você sabe me dizer se ela está em casa?
Ela fica em silêncio, e eu me pergunto o que isso quer dizer.
— A Sra. Kim fica bastante tempo fora por conta do trabalho. Sei que ela fez uma viagem esse fim de semana, mas Hayun talvez possa esclarecer melhor essa questão.
— Tudo bem — digo, tentando não parecer confusa.
— Bom, por que você não vai conhecer o lugar enquanto preparam o seu quarto? Tenho certeza de que logo vai estar se sentindo em casa.
— Acho que é uma boa ideia já que vou morar aqui pelos próximos meses.
— Tem uma vista incrível do bairro — ela diz em um tom de voz gentil. — Mas já vou avisando que fica ao lado do quarto da Minjeong.
E mais uma vez me pergunto o que isso quer dizer.
— E onde está... hum, a Minjeong? — Pergunto, tentando ao máximo não ser invasiva.
A expressão sorridente de Ningning vacila um pouco, e, por um segundo, penso que quer me alertar sobre alguma coisa, mas então o sorriso volta a seu rosto.
— A julgar pelo horário, ela deve estar dormindo.
— Mas são quase onze da manhã — comento.
— Ela é bem seletiva quanto à questão de horários. — Ela faz uma pausa, levantando-se. — Tem muita coisa acontecendo na vida dela. Mas você vai ver que ela não é tão ruim quanto parece quando começar a conhecê-la. É só dar uma chance para ela.
— Quando eu começar a conhecê-la?
— Vai lá dar uma volta pela casa — ela diz, ignorando minha pergunta. — Foi um prazer conhecer você, Jimin.
— O prazer foi meu. — E ela se vai.
Sem opções, me pego fazendo um breve tour pela casa, passando pela ampla área externa, sala principal, por um corredor com muitas portas e parando em frente à uma sala que lembra uma biblioteca.
Os móveis são todos de madeira e parecem peças únicas, por isso acredito que foram feitos sob encomenda, e não produzidos em larga escala e distribuídos para milhares de casas.
Há uma grande mesa de mogno em frente à uma ampla janela. Na lateral está disposta uma estante com uma enorme variedade de livros, todos organizados minuciosamente por ordem de cor. E na extremidade oposta tem um conjunto de poltronas de veludo.
Parece um lugar confortável para se passar o tempo.
Me aproximo da estante, onde estão dispostos edições em inglês, japonês e coreano dos mais variados gêneros. Incluindo uma magnífica coleção das obras de Shakespeare. Acabo pegando um exemplar em mãos.
— Você deve ser Yoo Jimin.
Sem deixar transparecer meu susto inicial, viro e observo a garota da janela parada na porta.
— E antes que pergunte, minha amiga me falou seu nome — ela acrescenta.
Estou surpresa, porque Kim Minjeong não é a reclusa convicta que eu estava imaginando.
Ela é jovem. Tipo mais nova do que eu.
— O que está fazendo aqui? — Ela pergunta, entrando na biblioteca.
Instintivamente, dou um passo para trás. Então percebo que, apesar de dar a impressão geral de juventude e vitalidade, ela não parece exatamente confortável.
— Eu perguntei o que está fazendo aqui? — Ela repete, dessa vez com certa impaciência.
Me pergunto por quantos horrores ela passou, porque apesar dos traços suaves ela parece bem machucada. Eu provavelmente deveria responder à sua pergunta com palavras calmas e precisas. Nada me vem à mente, então fico em silêncio.
— Você não vai conseguir respostas apenas encarando — ela diz, antes de se encostar na mesa e cruzar os braços.
— Como é? — Pergunto, colocando o livro de volta na estante.
— Você não vai conseguir respostas só porque está me encarando — ela repete com uma expressão séria.
Eu deveria me retirar diante da grosseria. Mas, em vez disso, me aproximo.
Não me lembro de ter visto uma garota como essa antes. Olhando assim, ela é praticamente perfeita. Tem cabelo escuro — quase preto, mas não exatamente —, e não deve ter mais de um metro e sessenta e cinco. Apesar das roupas casuais, eu vou estar mentindo se disser que não notei todas as curvas nos lugares certos.
Seja como for, não sei por que não consigo parar de olhar para ela. A garota nem é o meu tipo.
— Deixa eu adivinhar? Você estava esperando alguém completamente incapaz de se comunicar? — Ela pergunta, abruptamente.
Na verdade, não. Mas imaginei que ela fosse mais retraída.
Dou mais um passo para a frente, e noto como ela fica tensa à medida que me aproximo. Eu teria pena se não suspeitasse de que está usando sua situação pessoal para justificar o fato de que é uma grosseira.
— Quando você terminar esse jogo, talvez possamos jogar algum jogo de tabuleiro. O que acha da ideia? — Digo em tom gentil, ainda olhando para seus olhos.
— Seria ótimo — ela retruca, no mesmo tom agradável. — Alguns jogos de tabuleiro não exigem muito das capacidades cognitivas.
— Uau, você está me Julgando sem ao menos me conhecer. Por essa eu não esperava!
Ela pisca, surpresa com a bronca.
Sinto uma pontada de arrependimento. Talvez eu esteja sendo dura demais com ela. E preciso me lembrar que esta é sua casa e eu não passo de uma hóspede temporária. Ou melhor, eu não passo de alguém que vai ficar sobre os cuidados da mãe dela.
Antes que eu perceba, minha mão já está sobre o seu ombro.
Sei que Minjeong não estava esperando que eu fosse tocá-la, porque leva alguns segundos para que ela tire meu braço. Por um momento, eu espero que ela se afaste ou me ataque verbalmente. Em vez disso, ela me encara, deixando que eu veja direito a forma como seus olhos castanhos não revelam nada — nem mesmo cautela —, quase parte meu coração. É como se ela tivesse erguido uma barreira pessoal que a afasta de tudo.
Nós nos encaramos por alguns segundos antes que ela desvie o olhar.
— Acho que você deveria ir — diz quase em um sussurro.
— Olha... Minjeong, né? — Pergunto, segurando seu ombro de novo quando ela tenta fugir, como se fosse uma criança. — Será que não podemos conversar um pouco?
Seus olhos giram de um lado para o outro, como se estivesse procurando por uma arma, mas então suspira e se solta da minha pegada.
— Talvez seja melhor uma respeitar o espaço da outra — Minjeong diz. — Não sou muito sociável.
Levo a mão ao peito.
— Não? Nem acredito.
Minjeong me lança um olhar tão maçante que eu teria me sentido ofendida se não estivesse lhe devolvendo a mesma expressão entediada.
— Vai, me dá uma chance — digo. — Que tal se a gente se conhecer um pouco?
Vou começar. Verdadeiro ou falso: você tem uma faca no bolso.
Por um segundo, acho que vai sorrir, mas ela só estreita os olhos e me encara de cima a baixo com condescendência.
— Verdadeiro ou falso — retruca. — Em geral você usa uma malha em tom pastel amarrada sobre os ombros.
Não respondo. Eu tenho mesmo uma malha em tom pastel, mas só porque minha mãe comprou pra mim. E nunca a usaria no ombro.
— Sua família têm uma bela coleção de livros — digo, ignorando seu comentário.
Por um momento, vejo em seus olhos que está intrigada. Mas quando penso que ela vai revidar com alguma grosseira, sua expressão se torna mais suave.
— A coleção é minha. — Ela diz. — Apesar de viver no mundo literário, minha mãe não tem muito tempo para ler fora do trabalho. Na verdade, ela vive tão imersa nisso que não me surpreende querer fazer uma pausa sempre que está livre.
— Você pode me recomendar algo? — Pergunto em voz baixa, sem tirar os olhos dela.
A surpresa passa por seus traços lindos, seus olhos continuam fixos nos meus até que, muito lentamente, ela abaixa a cabeça e passa as mãos pelos cabelos.
— Olha, eu realmente não quero fazer isso — ela diz, voltando a me encarar. Mas sua expressão agora só parece... cansada. — Vamos ser claras: você vai viver nesta casa a partir de hoje e eu não posso fazer nada quanto a isso. Então respeite o meu espaço e eu prometo que não cruzo o seu caminho.
Eu me sinto estranhamente incomodada pela forma como ela fala isso e quase abro a boca para fazer uma oferta idiota, mas a expressão atormentada em seu rosto me impede. Não estou aqui para causar problemas e tampouco tenho alguma coisa haver com a forma como ela leva a sua vida. Nunca fui muito sensível em relação a pessoas que não conheço, e não vou começar a ser agora. Tenho meus próprios problemas.
— Tudo bem — digo, sem desviar o olhar.
— Ótimo, então você já pode se retirar — Minjeong diz, quase sem mexer a boca.
Adoto um olhar condescendente.
— Claro, já estou saindo.
Talvez a vida dela seja ainda pior que a minha.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top