02
Winter's pov:
"O passado se tornou o meu presente, mas espero que ele não defina o meu futuro para sempre."
Passo a mão no espelho limpando o vapor do banho e olho para a garota que me olha de volta, conheço cada traço do rosto dela, cada uma das marcas que a vida lhe trouxe, mas não reconheço mais a pessoa que vive ali dentro.
Dia após dia vi a garota que eu me orgulhava ser consumida pela humilhação e pela dor, dia após dia eu me perdi do que eu acreditava e do que eu amava, fui anulada, calada, aprisionada. Aprendi a odiar minhas lembranças, descobri que elas eram na verdade uma maldição... até que me tornei quem eu sou hoje.
Tem dias que me lembro da garota que fui e acredito que jamais a encontrarei novamente, tem dias que eu sinto como se estivesse quase lá, mas na maioria das vezes eu apenas espero... e esperar se tornou a minha grande especialidade.
Termino de me vestir e vou para a sala da biblioteca, de volta ao meu refúgio pessoal.
A estante de livros que eu tenho desde que eu era mais nova está agora cheia de romances, e aqueles que não se encaixam nas prateleiras estão dispostos ao redor do perímetro da sala.
Ao contrário da maioria das pessoas, meus livros não foram agrupados por gênero ou nome do autor. Meus livros foram colocados juntos com base na cor de sua ligação. Todos os vermelhos estão ao lado um do outro, enquanto todos os azuis ficam juntos. Então, quando alguém entra na minha biblioteca particular, eles veem uma borda de arco-íris envolvendo o espaço.
Nos últimos meses tenho passado muito do meu tempo nesse cômodo, sentada em uma poltrona e me apaixonando por homens e mulheres de lugares distantes.
As palavras tem o poder de transportar uma garota reclusa para mundos que ela jamais imaginou.
Cada uma das pessoas próximas a mim encontrou uma certa maneira de lidar comigo e com minha reclusão nos último ano. Ningning tornou-se uma das minhas melhores amigas. Ela passa muito tempo comigo, junto com a namorada, jogando videogames, vendo filmes e discutindo sobre a faculdade na qual não consegui ingressar.
Minha mãe meio que se fechou depois que ela percebeu a situação em que nos encontrávamos. Nós moramos na mesma casa, mas ela quase não me fala sobre qualquer coisa que não seja baseada na editora na qual trabalha. A verdade é que eu posso dizer que, ela meio que se culpa pelo que aconteceu comigo. Ela não sabe exatamente o que dizer para mim, então depois de algum tempo, esse se tornou o nosso novo normal. Eu não a culpo, entretanto.
Meu pai continua o mesmo, embora, a gente não more juntos há anos. Sempre que vem a Seul, ele encontra um tempo para me visitar. Lá no fundo, eu sei que ele compartilha de algumas opiniões da minha mãe, mas prefere não comentar nada sobre isso já que não somos exatamente próximos.
— Vejo que está se preparando para sua leitura da tarde — Minha mãe diz, de pé na porta da biblioteca. Desvio o olhar da prateleira de livros e respiro fundo. Ela acabou de chegar do trabalho, mas, diferente do habitual, não parece cansada demais para vir me cumprimentar.
Devolvo o livro em minhas mãos e sento de pernas cruzadas na minha poltrona, olhando para ela. Seu cabelo escuro está ficando longo, seu estilo de mulher de negócios, e ela veste as roupas sociais de sempre. De vez em quando, move ligeiramente os dedos para afastar alguns fios de seus olhos.
Dizem que sou uma versão mais nova dela, mas tenho certeza que se referem apenas a questão da aparência. Estou longe de ser comparada a mulher que os sites descrevem como gênio atemporal.
— O que você está lendo? — Ela pergunta, enquanto entra na sala e se recosta em uma grande mesa de mogno perto da janela. As vezes a biblioteca serve como uma espécie de escritório secundário para minha mãe. Por muitas noites fazemos companhia uma para a outra; ela imersa no seu trabalho, e eu presa em alguma nova leitura.
— Algumas obras de ficção científica — Respondo.
— Há tantos livros neste mundo, e você encontra uma maneira de ler os mesmos várias vezes. Não há nenhuma maneira possível que as histórias ainda a surpreendam após todo este tempo.
Obviamente, ela nunca leu ou releu o mesmo livro. Cada vez é diferente.
Quando eu leio livros pela primeira vez, sempre deixo alguns detalhes da história de lado.
Quando eu os releio, presto atenção em tudo.
Uma pessoa nunca lê um excelente livro duas vezes e vai embora com as mesmas crenças. Um excelente livro sempre surpreende você e desperta para novas ideias, novas maneiras de olhar para o mundo, não importam quantas vezes as palavras foram lidas.
— Ouça, Minjeong. Precisamos conversar.— Ela cruza os braços e limpa a garganta. — Eu sei que você tinha outros planos, mas esse é o momento ideal para isso.
Sento-me mais reta. Eu sei que deve ser sério, porque sempre que ela vai ser severa, sua expressão se fecha, e é o que esta fazendo nesse momento.
— Hayun me ligou — ela fala. — Disse que sua terapeuta deseja conversar comigo.
Balanço a cabeça, com pesar, e encaro minhas mãos.
— Talvez ela queira discutir sobre como uma terapia bem aplicada pode fazer com que eu retome uma vida normal.
— Não é... — Minha mãe suspira. Ela não grita. Kim Taeyeon nunca grita. Acho que ela prefere extravasar suas emoções mais intensas através do trabalho e não através das palavras.
De alguma forma, eu entendo. Do ponto de vista dela, sou só uma adolescente mimada presa no corpo de uma jovem adulta. Mas é melhor que ela me veja assim do que deixá-la descobrir a verdade... E a verdade é que eu não me importo com nada há muito tempo. E que a cada dia que passa me sinto mais perdida.
Mas se minha mãe descobrir como me sinto por dentro, não vai se contentar em contratar psicólogas para ficar de olho em mim. Vai me internar em alguma clinica privada.
Minha expressão-padrão de indiferença surge em meu rosto.
— Talvez ela queria discutir sobre as questões contratuais.
— Tenho certeza de que essa não vai ser a pauta da nossa conversa — minha mãe reage, encarando-me com seu olhar sério. — Nós duas sabemos que é sobre você que ela quer conversar. Sobre o fato de que vem se recusando a cooperar com o tratamento como já fez antes.
— E quando você vai entender isso, mãe? — Pergunto, me levantando. — Quando? — repito. — Acho que está mais do que claro que não vou ter nenhum progresso significativo aqui.
— Droga, Minjeong...
— Você pode continuar trazendo-a para cá, mas eventualmente até ela vai perceber que sou uma causa perdida, não acha?
Ela continua de braços cruzados, agora sem me encarar. Está olhando para a janela, onde o céu pode ser vislumbrado através dos grandes edifícios da cidade, sob a luz da noite.
— Contratei essa psicóloga para ajudar você — minha mãe diz.
O problema é que ela realmente acredita que ter alguém dedicando seu tempo para me ajudar a lidar com meus fantasmas de alguma forma vai apagar o que aconteceu. Só não sei como fazer com que ela entenda que algumas coisas não podem ser consertadas ou apagadas. Minhas lembranças, por exemplo.
— Mãe — afirmo, com a voz um pouco áspera —, eu estou bem.
Seus olhos castanhos, do mesmo tom dos meus, me perfuram.
— Você não está bem, Minjeong — ela retruca. — Mal conversa comigo. Não sai dessa casa a não ser forçada. Só lê e fica aí deprimida...
Fico em silêncio. Ela conhece a minha situação, bem, ela não sabe a minha situação, mas ela sabe o suficiente. No último ano, eu não sai de casa mais do que algumas vezes. Desisti de me inscrever na faculdade e de tudo o que tinha planejado para o meu futuro. Ela conhece esses fatos; foi por isso que nossa relação mudou tanto em tão pouco tempo.
— Não se trata apenas do que aconteceu— ela diz, bruscamente. — É a forma como você lida com isso. Você sabe.
Sim, eu sei. Mas não acredito nem por um segundo que o fato de uma especialista vir aqui três vezes por semana para tentar me convencer a se abrir vai consertar alguma coisa.
— Como você espera viver sua vida? — Ela pergunta, franzindo o cenho. — Vai ficar assim para sempre?
Eu não tenho uma resposta para isso.
— Eu não posso continuar apoiando você assim, Minjeong.
A sala está cheia de silêncio, e minha mãe arqueia as sobrancelhas, como se estivesse pensando profundamente.
Eu viro minhas costas para ela, irritada e magoada, mas principalmente envergonhada, porque ela está certa. Do canto do olho, eu ainda posso vê-la franzir o cenho. Quanto mais eu a vejo franzir o cenho, mais incomodada eu fico.
— Eu poderia estar fazendo coisas bem piores que ficar longe do seu caminho, sabia?
— A questão aqui não é essa. — Ela diz quase em um sussurro.
Respiro fundo.
— Eu só não quero ninguém olhando com pena para mim. Então durante sua conversa com minha psicóloga, você pode dizer a ela que seus serviços não são mais necessários.
— Nós duas sabemos que isso não vai acontecer — ela afirma, assentindo com a cabeça uma única vez. — E para que saiba, não foi esse o único motivo pelo qual chamei você para conversar.
Fico surpresa ao ouvir o que minha mãe diz.
— Espera. Do que você está falando?
Ela levanta o dedo e seus olhos se endurecem. Então percebo que não estou mais falando com minha mãe, mas com Kim Taeyeon, a renomada editora chefe.
Por instinto, me preparo para o que está por vir. Levou vinte e um anos, mas finalmente comecei a entender minha mãe. E algo me diz que ela está prestes a mudar de tática.
— Preciso te informar de algo. Uma amiga me pediu para recepcionar sua filha que está de mudança para Seul por conta da faculdade. Ela deve chegar de Busan na próxima sexta-feira. O que significa que pelos próximos meses ela vai se hospedar na nossa casa.
— Como é? — Pergunto.
Minha mãe me ignora e apenas continua:
— E eu realmente espero que você use do seu bom senso e seja educada. Caso contrário, vou ter que tomar medidas drásticas. E nós duas sabemos que você não está em condição de viver sozinha, o que poderia ser diferente se aceitasse a cooperar com a terapia.
Viro-me para a estante de livros. Minha mãe sabe que acabou de atingir meu ponto fraco. Não é apenas o pensamento de sair de casa que faz meu coração acelerar. Existe uma razão maior por trás da minha atitude. Mas não posso discordar dela quanto a isso. Porque nós duas sabemos que a ideia de eu morar sozinha pode ser... perigosa.
Pensar que minha mãe acha que não passo de uma egoísta me deixa incomodada. Eu adoraria falar para ela a verdade. Que a única razão para continuar tentando é por que não quero decepcioná-la ainda mais.
Mas permaneço em silêncio e continuo vivendo dessa forma. Mesmo que me torne apenas uma derrotada aos olhos dela.
— Você está incomodada, o que é bom — ela diz, se afastando da mesa e vindo na minha direção. Seus passos a aproximam de mim e ela toca meu ombro com certa delicadeza. — Mas você só está assim porque você sabe que estou certa.
— Com certeza. Afinal, acho que sua filha patética que não consegue superar um trauma não é uma companhia agradável há muito tempo.
Minhas palavras pairam entre nós, e, por um segundo, acho que peguei pesado, porque se meu ponto fraco é minha incapacidade de se recuperar, o ponto fraco dela é o que aconteceu comigo há cerca de um ano.
Mas Kim Taeyeon é orgulhosa demais para se deixar abalar. Ela apenas me encara antes de recuar alguns passos.
— Estou falando sério, Minjeong. Ter mais alguém morando nessa casa pode ser bom para você.
— Como é? O que você quer com tudo isso, afinal? — Pergunto bruscamente, encarando-a.
Ela solta o ar devagar.
— Quero que tente, Minjeong. Que tente se recuperar, se adaptar diante das mudanças. Entendo por que no começo você quis se manter reclusa, mas já se passou um ano. Chega. Você tem que se recompor.
— Em resumo — digo, cruzando os braços na frente do corpo — você acha que conviver com essa garota de alguma forma vai me curar. Quem está sendo egoista agora?
Ela fecha os olhos por meio segundo.
— Pense por esse lado, vou diminuir suas sessões com a psicóloga pelos próximos meses e você pode continuar lidando com as coisas a sua maneira. A única coisa que precisa fazer e se permitir tentar.
Sinto um aperto no peito. Por alguns instantes acho que é raiva e tenho vontade de gritar com minha mãe por não me entender. Mas não digo nada, porque isso não é sobre mim. E com certeza não é sobre uma pobre garota que está vindo estudar em Seul e nas suas horas vagas deve consertar meu mundo inteiro. Isso é sobre minha mãe e a tentativa dela de tentar se redimir com sua filha problemática.
Não sei o que pensar sobre tudo isso. Mas não posso continuar a falhar com as pessoas que são importantes para mim desse jeito.
— Então, se eu me portar corretamente nos próximos meses, posso continuar morando aqui sem a interferência quase diária da minha psicóloga?
Ela me encara, e pela primeira vez não parece brava. Só parece triste.
— Isso. Vou conversar com ela e mudar a questão dos seus horários.
Inspiro fundo. É uma situação horrível, e pela milésima vez acredito que a melhor opção seja desistir de qualquer tentativa.
Mas não tenho como não atrapalhar a vida da minha mãe se continuar agindo assim. Se fosse só uma questão prática e cotidiana, eu simplesmente poderia fazer minhas malas e ir embora. Mas depois de tudo o que aconteceu, não posso causar ainda mais problemas as pessoas que estão a minha volta. Posso suportar isso por um tempo.
— Tudo bem — digo. — Vou tentar me recompor.
Seus olhos continuam parados fixamente sobre os meus por alguns segundos, enquanto ela avalia minha decisão.
— Ótimo. Assunto encerrado. Mas se eu souber que você foi desagradável com a garota uma única vez, vamos precisar ter uma conversa.
E então, como se tudo estivesse resolvido e ela não se importasse em ter interferindo na vida patética que eu levo, minha mãe vai para a porta.
— Tenho um evento literário em Icheon amanhã. Se tudo der certo, estou de volta no fim de semana.
Apoio as duas mãos na mesa, olhando para a estante de livros.
— Ei — falo, antes que ela desapareça por mais dois dias, ou uma semana, ou até que a culpa a obrigue a vir falar comigo para ver como estou. — Essa garota que está para chegar... E se eu me comportar, mas, ela não gostar... da nossa casa?
Ambas sabemos que não estou falando da nossa casa. O problema é que é preciso muito mais que uma excelente oportunidade acadêmica para que alguém consiga conviver com a minha presença. O problema é unicamente eu.
Minha mãe fica em silêncio por alguns segundos.
— Bom... eu realmente espero que ela goste da nossa casa.
Assinto com a cabeça, mas não digo nada.
— Minjeong... — Ela me chama, parecendo pensativa. — Você não pode simplesmente ler esses livros e pensar que isso significa que você está vivendo. É a história deles, não a sua, e é doloroso ver alguém tão jovem jogar fora sua chance de escrever sua própria história.
Depois que minha mãe sai, busco em suas palavras algo que me faça acreditar que algo bom me aguarda no próximo dia que virá, mas tudo o que vejo é uma pessoa que já nasceu com a sua sentença marcada.
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