17# - Marmita

- Prontinho... - disse fechando a marmita. Preparei 3 delas a pedido de Rose, mas eu sei que era apenas uma manobra dela para me fazer sair de casa. A seguir, pego no celular e vejo as mensagens dela com as coordenadas do sítio onde cada um deles trabalha - Droga, porque eles decidiram arranjar emprego em lugares bem distantes um do outro.

Eu por vários momentos esquecia que a gente tinha algumas contas para pagar, já que o dinheiro fornecido por Pedro só dava pra pagar o aluguel.

Meti as marmitas em uma pasta de ombro e saí de casa. O dia estava nublado, perfeito para andar de bicicleta, já que eu evitava o ônibus para não ter encontros imprevisíveis.

Primeira paragem era onde Naomi trabalha, e eu fiquei surpresa por saber que era no restaurante onde matei o meu primeiro demônio.

- Essa vadia vai ter de explicar o que está acontecendo aqui - Entrei no estabelecimento com cara de poucos amigos, e ela estava no caixa olhando pra mim surpresa e confusa ao mesmo tempo - O que foi, viu um fantasma?

- O que você está fazendo aqui? - falou baixinho, esforçando a voz para não parecer deselegante.

- Eu é que deveria perguntar o mesmo, então isso quer dizer que matei aquele demônio só para que você pudesse ter um emprego?

- E o que tem de ruim? - respondeu descaradamente enquanto levantava os ombros - no final foram dois coelhos numa só cajadada, e o que passou já passou.

- É assim que queres brincar, então aqui está a tua merda de jantar - bati a marmita no balcão chamando a atenção de todos. Abri e dei uma cuspida, sorrindo pra ela - Espero que você se engasgue enquanto come.

Saí rapidamente e nem dei tempo para ela reagir, fechando a porta com força, deixando todo mundo a olhar para ela.

- Aquela vadia me paga, eu dei um olho só para ela disfarçar a incompetência dela na hora de conseguir um simples emprego - subi na bicicleta e pedalei até chegar a uma concessionária, era onde Rose trabalhava - Que chique e sofisticado, isso sim é um sítio perfeito para trabalhar

Logo que entrei, os meus olhos se perderam na beleza daqueles carros topo de gama, mas um homem vindo em minha direção me trás de volta para terra.

- Em que posso ajudá-la, miss?

- Yin - respondi dando a mão pra ele - Eu vim ter com Rose...

- Ela estava mesmo a sua espera, por favor acompanhe-me - passamos por vários carros bonitos chegando ao fundo da loja onde havia uma porta, e ele abriu revelando ser o escritório de Rose, e ela estava bem concentrada em seu computador - Sra. Rose, a menina Yin está aqui para vê-lá.

- Obrigada, O'neill, pode deixar-nos a sós - respondeu delicadamente, então ele saiu e eu entrei fechando a porta - O que você achou do meu pequeno negócio?

- Pera aí, isso tudo é seu? - disse surpresa, eu não contava com essa - Desde quando?

- Desde sempre - levantou da sua cadeira e tirou uma foto que estava pendurada na parede e me entregou. Parecia bem antiga estava uma moça com um homem jovem e bonito, com um bigode bem peculiar - 1969, foi esse ano que decidi abrir essa concessionária juntamente com o meu amigo George, e essa beleza atrás de nós foi o primeiro carro disponível no estabelecimento, um Shelby Cobra GT500 de 1968, o melhor carro naquela época na minha sincera opinião.

- Vejo que você estava bem feliz naquele dia, e onde está ele hoje?

- Ele envelheceu e acabou ficando com uma demência mais cedo do que eu esperava, e hoje em dia eu vou pelo menos uma vez por semana visitá-lo no retiro de idosos no outro lado da cidade - Entreguei a ela a foto para devolver a parede - Essa é a parte ruim de ser imortal, já faz 20 anos que troquei de corpo outra vez, mas o desgosto de saber que não posso nem amar alguém sem ignorar o facto de que irá embora a qualquer momento me atormenta.

- E Belzebu?

- Aquele psicopata não tem a coragem de dar o próximo passo, acho que tem medo de eu amolecer ele de alguma forma, bem, eu não mereço ser levada a sério de qualquer jeito, o meu passado não permite.

- Não sejas tão dura contigo mesma, mais cedo ou tarde, eu sei que vais encontrar alguém que fique do teu lado para sempre - tirei a marmita da pasta - Pode ser que Miguel esteja disponível, nunca se sabe.

- Não sejas tonta, mas tens razão, nunca se sabe - Demos umas risadas, e ela recebeu das minhas mãos - Agora vai que eu tenho a certeza que Alfred está ansioso pela marmita dele.

- Sei disso, eu já estou indo - despedi-me dela e saí do edifício. Quando eu subi de novo na bicicleta, por um momento me senti sendo observada, então olhei a volta, mas não tinha nada de anormal - Que estranho.

Pedalei por mais uns 15 minutos, e cheguei a um dos sítios onde Alfred trabalhava, o ginásio. Ele nunca gostou de fazer apenas uma coisa, então decidiu que teria vários empregos em ramos diferentes.

Quando entrei, ele estava dando aulas de autodefesa para alguns adolescentes.

- Me desculpa, pequenina, mas queria saber o que você acha disso? - perguntou um gigante todo musculado sem camisa aparecendo na minha frente. Ele flexionou todos os músculos exibindo as suas veias grossas por todo o seu corpo - Algo te agrada?

- Acho que você exagerou um pouco demais no suco - respondi com uma cara de nojo, não entendia as mulheres que eram atraídas por amontoados de carne rígida como ele - Que tal dar uma descansada?

- Como assim, dar uma descansada?

- Você sabe, parar por um tempo, às vezes temos de saber quando parar e aceitar que o fim da corrida chegou... - bastou alguns segundos para eu rever as minhas palavras, e reconhecer a minha hipocrisia - Olha, esquece o que eu disse, continua assim, só certifica que o seu coração aguenta o tranco.

- Pode deixar, pequenina, eu não irei decepcionar ninguém - agradeceu e andou todo feliz para fora do estabelecimento. Eu tinha razão em pedir ele para dar uma descansada, mas não tinha o direito de falar se eu não tinha feito o mesmo até agora.

- Não ligues o Igor, ele sempre é assim, só espero que ele não exploda de tanto músculo acumulado - disse Alfred rindo ao meu lado me dando um susto - Acho que você tem algo pra mim.

- Oh, sim, aqui está - tirei a última marmita da minha pasta e entreguei para ele - Você estava mesmo a espera disso.

- Hoje o dia será longo pra mim, ainda tenho coisas pra fazer, então essa pequena refeição vai me ajudar a ir até o fim do dia - Passou a mão na minha cabeça me fazendo vibrar como um cachorrinho que estava sendo mimado pelo dono - Muito obrigada, Yin.

- Eu posso te ajudar, isso se tiveres a fim... - falei corando um pouquinho.

- Não precisa, e eu quero você a 100% para o nosso treinamento amanhã de manhã.

- É amanhã? - Olhei para o celular, havia me esquecido completamente - Mas eu irei para a escola...

- Então é melhor descansar mais cedo, porque nada nesse mundo vai fazer você escapar ao inevitável.

- Tá legal, eu já estou indo - Saí derrotada de lá. Não estava com vontade de ir para a escola toda partida, mas parecia que não havia como escapar - E assim o meu dia chegou ao final.

- Acho que não - disse Pedro aparecendo de repente - O que foi, minha visita foi imprevisível?

- O que você faz aqui, seu desgraçado? - Era estranha a aparição dele por aqui, então meti a mão dentro da minha pasta agarrando a pistola, era provável que ele veio me punir por fazer aquele serviço para Lúcifer.

- Podes acalmar os ânimos, que eu vim em paz, eu apenas quero conversa... - disse ele levantando as duas mãos para o alto.

Em poucos minutos, nós estávamos sentados em um restaurante de fast food perto do ginásio.

- O que você quer de mim? - perguntei zangada, ainda estava tentando desvendar o que ele queria de mim - Qual é o trabalho dessa vez?

- Se continuares a tentar adivinhar, mais tempo eu ficarei aqui, e eu sei que você não quer isso - disse dando um gole no seu copo de café, eu cruzei os braços sem mudar a minha expressão de poucos amigos - Vou deixar você fazer uma pergunta, porque eu não gosto de trabalhadores revoltados, e talvez a tua percepção sobre mim mude, nem que for um pouco.

- Tens a certeza disso, talvez a minha mãe possa fazer essa pergunta para você.

- Olha aqui, não fui eu que decidi sentar e tomar um cafezinho com a mamãe sabendo que ela poderia pegar fogo a qualquer momento, você desrespeitou o contrato, agora assuma as consequências dos seus atos! - disse apontando o dedo para mim. Por mais que eu odeie ele por ter feito aquilo, a razão não deixava de estar do lado dele - Você já não é aquela garota mimada que tinha tudo e todos se ajoelhavam perante você, agora é uma caçadora, então tens de te adaptar a cada situação e aprender com os erros, tal como todo adulto nessa esfera que chamamos de terra.

- Você quer uma pergunta, certo, eu farei uma boa pergunta para você - Esperei uma empregada passar e puxei a bandeja de alumínio vazia das mãos dela e mostrei para ele o seu reflexo que estava distorto - Como diabos você acabou desse jeito, de todos os apóstolos você foi o melhor deles, porra, até Alicia meteu você na frente de Miguel quando ela fez um Top 5 dos santos que ela mais gostava, então, explica pra mim aqui e agora.

- Acho que eu devo ao menos isso, então se prepara que lá vem a história - Recebeu a bandeja das minhas mãos e devolveu para a garçonete - Desculpe o comportamento da minha sobrinha, ela é um pouco... inconsequente, nós vamos querer dois expressos, e qual é a especialidade da casa?

- O prato especial de hoje é o de sempre, asas picantes e peito de frango.

- Obviamente, nem sei o porquê me dei o trabalho pra perguntar, então só os dois expressos então.

- E uma porção de asas picantes - falei com um sorriso malandro no rosto.

- Sério isso?

- O que foi, já que estou aqui e você vai pagar, por que não aproveitar?

- Francamente...

- Eu trarei os vossos pedidos daqui a nada - disse a garçonete, se afastando rapidamente devido ao constrangimento que ela estava sendo submetida.

- Pode começar, o palco é todo seu... - falei me aconchegando na cadeira - Mas tenta não dar muitas voltas.

- Certo, sua abusada. No primeiro contato que tive com o nosso criador, ele mostrou pra mim o lugar onde todos não merecedores da sua graça eram jogados.

- O inferno?

- Exato, eu vi as várias formas que as pessoas eram punidas devido ao seu maior pecado, e acredita que não foi nada agradável ver tudo aquilo, mas nunca imaginei que no final da visão, Ele faria uma proposta daquelas para um simples e insignificante humano como eu..., ser o responsável principal pelo julgamento dos mortos em nome dele.

- Viraste praticamente um semi deus quando aceitaste a proposta, o que tem de ruim nisso?

- Bem, eu também pensava do mesmo jeito e até que a experiência foi agradável no início. O trabalho era tranquilo e eu tinha vários anjos para me auxiliar, mas...- Por um segundo ele teve receio de falar, mas continuou - A inquisição veio, foi aí que vi e meti na cabeça que a humanidade não merece a salvação, se eu soubesse das coisas que veria nessa época e noutras mais pra frente, eu nunca teria aceitado o trabalho, talvez nem deixaria o nosso Messias se sacrificar por nós.

- Eu não entendo..., o que você viu assim de tão grave que te deixou revoltado desse jeito.

- Seria menos ruim se fosse apenas algumas vezes, mas vejo coisas absurdas quase todos os dias, quer ouvir uma? - Se inclinou, aproximando o rosto dele até perto de mim e começou a falar baixinho - Há 2 semanas, aqui mesmo na Califórnia, mais pra perto de Los Angeles, havia um senhor de meia-idade feliz e sucedido, ele tinha a vida completa e perfeita, mas sabe o que ele faz quando a sua sobrinha de 8 anos vai passar uns dias na casa dele?

- Estupra ela? - perguntei cruzando os braços - Você sabe muito bem que esse tipo de coisa nojenta não é de hoje e acontece sempre em todo canto dessa terra.

- Seria menos ruim se fosse apenas isso, mas parece que ele tinha uma espécie de tesão por órgãos - só por essa descrição já tinha noção do que vinha a seguir, mas ele continuou, me causando um desconforto bem enorme - Ele enche a criança de morfina deixando ela em um estado vegetativo, e a coloca em uma mesa abrindo a sua barriga com um bisturi puxando o seu intestino para fora e ainda preciso falar aonde ele enrolou aquilo para se satisfazer?

- Pode parar aí, você acabou de me deixar sem apetite pelo resto do dia - Por um instante eu senti um grande enjoo, mas tive de me controlar para não fazer uma cena - Como você consegue falar uma coisa dessas com tanta tranquilidade?

- Imagina ter de aturar situações similares a essa todo santo dia? - A garçonete chegou e pousou as coisas na mesa - Muito obrigado, olha Yin, eu posso até me tornado algo superior, mas a minha mente continua sendo a de um simples humano, e a mesma não foi feita para ser submetida repetidamente em situações assim.

- Mas você hoje ainda está aqui, eu tenho a certeza que qualquer um já teria colapsado em seu lugar - Olhei para minha mão direita que ainda estava tremendo, estava assim desde aquela aventura com Lilith - Nem faz 3 meses que estou aqui e já sinto que vou enlouquecer.

- Eu compreendo, mas se Deus não estava errado em me escolher para isso, eu espero ter feito o mesmo em tornar você uma caçadora - começou a girar a colher em seu café - Mas como todo mundo diz, se Deus permitiu é porque faz parte dos planos dele.

- Certo, acho eu.

Cada um de nós deu um gole em seu café ao mesmo tempo.

- Bem, foi bom conversar contigo, mas agora é a hora de trabalhar - após Pedro dizer isso, ouvi gritos de várias pessoas e quando olhei era Igor caído perto do balcão agarrando no seu peito todo musculado, e várias pessoas foram até ele tentando auxiliar, mas não demorou muito para ele parar de respirar mantendo os olhos abertos, sinalizando a sua morte.

- Então você estava aqui para lev... - Quando olhei, nenhum vestígio de Pedro se encontrava presente, era como se eu estivesse todo esse tempo sozinha - E o desgraçado nem despede...

Fim de Capítulo.

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