Vida longa e plena

Montado no dorso de um cavalo do conde, Azarado chegou à casa a família em companhia de Astronildo. Não fora com Elegante, pois o animal já se esforçara além da conta no dia anterior, merecia pelo menos uma semana de descanso e cuidados.

O jovem e o médico encontraram um batalhão de empregados pela casa. Alguns limpavam o chão, outros se aprontavam para seguir o marquês que levaria para a corte o terrível Weirtz. Trataria de exigir pena severa pessoalmente. Isso se o homem não morresse pelo caminho, já que o estrago no braço foi pior do que o relatado.

- Onde está mamãe? - Azarado perguntou para Adelaide, a quem encontrou no corredor. Segurava uma bandeja de comida em mãos, que pela forma, era para Mirtes.

- Está em seu aposento. - Respondeu. - Doutor Astronildo, seja bem vindo. Temo que não possa acompanhá-los, pois sua mãe foi incisiva sobre não deixar a pequena Mirtes sozinha.

- Como está a criança, Adelaide? - O médico questionou.

- Traumatizada. Não entende completamente que ocorreu. Senhora Bianca tentou explicar com palavras amenas, mas o senhor entende que ela viu com os próprios olhos... - Explicou.

- Sim. - O médico concordou. - Ela já sabe que a mãe está morta?

- Ainda não. A marquesa respeitou o pedido de Ofélia, ela deseja contar pessoalmente. - Informou.

Adelaide pediu desculpas e pôs-se a andar até o quarto da criança. Seu perfume fino junto ao vestido de tecido bom e perolado deixavam um rastro sofisticado pelo caminho.

- É uma das pessoas mais elegantes que conheço. - O médico comentou enquanto se dirigiam ao quarto.

- Digo o mesmo. - Azarado concordou. Já viajara por toda a Europa e ainda assim, Adelaide era uma das pessoas mais elegantes que já conhecera.

O jovem bateu à porta do próprio quarto e ouviu a voz da mãe perguntar quem era. Ele respondeu e ela permitiu a entrada. Olhava para a porta quando viu o filho entrar. Estava amarrotado com uma roupa apertada e curta nos braços e nas pernas.

- O defunto era menor que você, filho? - A mulher questionou e sorriu.

- Pedro não é lá um homem tão grande. - Respondeu enquanto se aproximava da cama onde Ofélia estava deitada vestida em um de seus camisolões. - Se eu não fizera dieta nos últimos dias, não haveria roupa que me servisse.

Ofélia, que estava acordada, riu fraca e levou a mão ao abdome dolorido.

Encontrava-se estropiada e tinha febre, mas estava consciente e olhava curiosa para os que chegavam. Os olhos azuis pareciam serenos.

- Atualmente ninguém deseja usar as próprias roupas. - A marquesa brincou enquanto acenava para as largas vestes de Ofélia.

- Finalmente essas peças encontraram alguma utilidade. - Azarado comentou enquanto sentava-se na cama. - Se Ofélia desejar, pode ficar com todos.

O jovem pegou uma mão de Ofélia e segurou entre as suas. O rosto da moça tinha marcas negras e estava inchado.

- Quero todos. - Ofélia falou devagar. - São confortáveis e quentes.

- Será preciso fazer as barras. São longos para você. - Bianca falou.

- Não, eu gosto assim. - A moça retrucou. Então perguntou sobre Sorte. - Como ela está?

- Viva. Acordada e muito fraca. - Azarado e Ofélia assistiram Bianca se levantar e ir cochichar com o médico em um canto do cômodo. - Ela disse para eu vir e voltar.

- Sorte sempre foi uma pessoa maravilhosa. - Ofélia comentou e suspirou. - A culpa que senti quando pensei que ela morrera... Foi terrível.

- Sinto muito pelos seus pais. - Azarado mudou o tópico.

- Eu não. - Ela respondeu. - Sinto um pouco por minha mãe, que como eu, agia guiada pelo medo. Não sinto nada pelo crápula que chamei de pai. E sinto imensamente triste por Mirtes. Sem intenção salvou minha vida, mas infelizmente assistiu a tragédia.

- O que fará agora? - Azarado questionou.

- Sinceramente não sei. - A moça desviou os olhos, preocupada. - Não tenho dinheiro. Vai demorar até que os bens de Weirtz passem para nós.

- Você me pareceu animada em mudar de ares para a corte ou para a Europa, se ainda desejar, posso sustentar esses planos até que você possa se prover. - Ofereceu.

- Sorte não irá gostar. - Ofélia disse com tristeza.

- Não se preocupe, ela não é mesquinha. Sorte abrigou os Desfleurs na própria fazenda. - Azarado a confortou.

- Sim... - Ofélia refletiu em silêncio. - Aceito a oferta e os camisolões.

- Pois bem.

- Lembre-se menina, pode ficar em minha casa o tempo que precisar ou quiser. - Bianca, que ouvira tudo, interferiu na conversa. - E precisamos de tempo para que eu possa atender seu pedido.

Astronildo e Azarado olharam para elas com curiosidade.

- Nada demais. - Bianca dispensou o assunto com as mãos. - Ela pediu lições de tiro.

Azarado riu divertido.

- Eu também aprendi com ela. - Azarado sussurrou e piscou com um olho. Ofélia riu breve, pois o corpo doía demais. - Cuidado Ofélia, se seguir os passos de minha mãe, se tornará uma excêntrica.

- Excêntrica e livre. - Ofélia replicou. Então engoliu seco. - Me responde algo com sinceridade?

- Sim. - Azarado concordou um pouco surpreso.

- Achas que sou desprovida de inteligência? - Indagou.

Sempre ouvira aquilo a vida toda, achava difícil acreditar em outra coisa por mais que o coração dissesse que deveria.

- Ofélia... - Azarado, um pouco chateado, acariciou as costas da mão dela. - De onde tirou tal pensamento bárbaro?

- Responda. - Ela pediu.

- Óbvio que não, Ofélia! Você é muito inteligente. Não entendo este pensamento sem pé nem cabeça. - Finalmente respondeu.

- Tem certeza? - Questionou.

- Ofélia... Você foi minha esposa durante dias. Pude vê-la de perto, é claro que tenho certeza. - Afirmou.

- Meus pais não me deixavam ler antes de dormir. - Ela explicou. - Diziam que estragaria minha beleza.

- Ora, mas que bobagem! - Bianca intrometeu-se. - Leio todos os dias e sou linda.

Azarado levantou-se da cama e beijou o rosto da mãe.
- A mais bela. - Falou.

- Só diz isso porque é uma cópia de minha imagem. - Bianca falou para Ofélia, que riu.

- Ambos são muito belos. - Ofélia rebateu.

- Ela me acha belo, no entanto não quis dormir comigo. - Azarado brincou. - Que ironia, não?

- Você é belo, mas não o amo. - A moça replicou.

- Conversa para boi dormir, filho. - Bianca acariciou a testa de Azarado. - Ela não quis se aproximar porque sua aparência tem se assemelhado à dos espantalhos de nossa horta.

Astronildo riu enquanto se aproximava da cama para examinar Ofélia. Tinha preparado algumas misturas para passar sobre os ferimentos.

- Mãe! - Azarado exclamou indignado.

- É a verdade, filho. - A marquesa comentou com ares de inocência.

- É bom que me achem desajeitado, sobra mais de mim para minha amada Sorte. - Falou enquanto enchia o peito de ar.

- Pobre coitada. - Bianca disse. - Espero que o amor a cegue até que você se restabeleça.

Ofélia riu e depois gemeu de dor.

- Terríveis! Vocês são terríveis. - Azarado marchou do quarto.

Na verdade não se importava em ser atraente para outra pessoa que não fosse Sorte, mas se a própria mãe o chamava de desajeitado, era porque a aparência estava paupérrima.

- Vamos começar o exame. - Astronildo falou. - Na verdade você está melhor do que imaginei.

- Agradeça a Adelaide. - Bianca disse enquanto observava o médico fazer seu trabalho.

- Essa gente entende de medicina como ninguém. Um dia ainda nos submeterão aos seus ensinamentos. Ouça o que digo. Quem cuidou de Sorte sabia bem o que fazia. - Comentou e depois continuou o serviço em silêncio.

Bianca também ficou em silêncio enquanto refletia que um dia, aqueles a quem chamavam de "os pretos" e tratavam como animais, ainda revolucionariam o mundo e tomariam o poder para si. E ela torcia para que isso acontecesse. Talvez dessa maneira os que se achavam superiores aprenderiam como outros seres humanos devem ser tratados. Sua única tristeza é que não estaria viva para assistir a virada da mesa.

Ainda bem que Bianca não viveu para ver o sistema adaptar-se de modo que os afrodescendentes continuassem submetidos, mas de outras maneiras. Ainda assim lutavam, lutam e lutarão pela liberdade e vida plena que a si pertencem. E à luta, se unem aqueles que um dia foram vistos apenas como selvagens, mas cuja voz não poderá ser calada. Aqueles, cuja memória foi apagada paulatinamente. No entanto, bravios, resistem. À mercê, mas resistem.

Azarado, em outro quarto, olhou-se no espelho e viu o desmazelo sobre o qual a mãe falara. Pois bem, trataria de mudar aquilo.

Primeiro ocupou-se de tomar um bom banho que serviu para relaxar o corpo e a mente. Depois, com a ajuda do valete do pai, aparou os cabelos e fez a barba. Colocou uma roupa bem alinhada que apesar de larga, ainda lhe caía bem. E depois se perfumou com loção pós barbear.

Procurou o pai que se aprontava para partir e deu-lhe um abraço.

- Finalmente alinhou-se, filho. - Francisco falou.

- Pai! - Azarado ergueu uma sobrancelha, indignado. - Isso não é o mais importante.

- Não. Tens razão. - Falou. - Entretanto, temos sorte de Mirtes não ter pesadelos com sua terrível figura.

Azarado fechou a cara e o pai gargalhou.

- Vais partir para a corte? - O filho perguntou, mesmo sabendo a reposta.

- Sim, pretendo usar minha influência para conseguir uma boa pena para Weirtz. - Falou. - Nem o dinheiro salvará do castigo.

- O dinheiro deve passar para as filhas. - Azarado determinou.

- Claro. Cuidarei disto pessoalmente. Como deve ser. - Francisco informou enquanto calçava as botas. - O que fará a partir de agora?

- Tentar seguir o curso de minha vida com a mulher que amo. - Respondeu ligeiro.

- Filho, você sabe que ela pode ficar com sequelas. Não sabe? - Questionou.

- Sinceramente não cheguei a pensar nisso. Deve ser porque não tem importância. - Retrucou.

- Você diz agora, mas a convivência muda a maneira como vemos o outro. - Francisco disse ao levantar o olhar para o filho.

- Mudou a maneira como vê a mamãe? - Azarado cruzou os braços frente ao peito e franziu o cenho.

- Mudou. - Francisco fez uma breve pausa antes de continuar. - Antes eu a via como uma bela jovem que me enchia de desejo. Ah... Volúpia juvenil. Agora... Agora a vejo como pilar do meu mundo. Não sei mais como é viver sem Bianca.

- Um pilar com uma mira certeira. - O filho brincou.

- Tem olhos de águia essa minha esposa. - Francisco riu. - Não devia ser surpresa, ela consegue ver um bordado mal feito a quinhentos metros de distância.

- Me lembro do dia em que cismou que a barra do vestido da duquesa estava mal feita. - Azarado recordou.
Sem aviso, o marquês abraçou o filho.

- Quando e voltar, o título de marquês volta para você. Ficará em definitivo. - Avisou.

- Já me acostumei a viver sem o peso de Diamantais. - Azarado comentou enquanto o pai o soltava.

- Prepare-se. Desejo me livrar desse peso e nunca mais voltar a tê-lo sobre mim. Se filho não serve para isso, fui enganado quando me aconselhavam a ter um.

- Filho serve para dar desgosto, pai. - Azarado retrucou com humor.

O pai riu e ajeitou o bigode antes de responder:

- De fato.

De lá Azarado desceu para encontrar Weirtz amarrado com armas apontadas para a própria cabeça. O braço estava porcamente amarrado com um pano qualquer. Provavelmente Astronildo o amputaria antes da viagem.
- O que quer por aqui, frangote? - O homem truculento perguntou do chão onde estava sentado.

- Nada em particular. Eu moro por aqui e posso ir a todos os recintos assim que julgar necessário. - Azarado respondeu em tom de deboche.

- Maricas, teu pau não ergueu para foder aquela vagabunda. - Weirtz falou.

- Você tem toda a razão. E ser chamado de maricas não me incomoda. - Azarado retrucou com tranquilidade. - Já se me chamassem de Possidônio Weirtz... Eu ficaria possesso de raiva. Como poderia aceitar ser chamado de algo pior que a merda do meu cavalo?

Azarado ergueu o chapéu em um cumprimento falsamente polido e virou as costas.

- Passar bem, senhor Weirtz. Que seus aposentos na prisão e posteriormente no inferno, sejam de seu agrado.
Assim Azarado disse adeus a Weirtz.

Na fazenda Olivares, Pedro e Adália conversavam com Sorte.

- Você ainda deseja se casar com ele, Sorte? - Pedro questionou.

- Sim. - A moça respondeu, havia pouco tempo que acordara de um longo cochilo.

- Tens certeza? - Pedro perguntou novamente enquanto fazia bico.

- Sim. - Ela respondeu outra vez.

- Mas Sorte... - Ele começaria a debater, no entanto Adália o parou com um tapinha no ombro.

- Já chega Pedro! Cedo ou tarde ela vai se casar, não será capaz de protegê-la até a morte. - Advertiu.

Uma mensagem foi entregue no quarto pela própria Matilde.

- Dos Silva e dos Desfleurs. - Adália falou enquanto lia. - Desejam melhoras e dizem que estão muito felizes com a notícia. Clementine zomba que já estava farta dos desmaios de Marcel.

- Ora, é um fracote. Apenas damas desmaiam em face do perigo e da dor. - Pedro disse e rápido como um tiro foi o tapa que Adália deu em sua nuca.

- Não gosto desse tipo e afirmativa, Pepito. Se voltar a repetir isso, pego minha criança e sua irmã e vou morar na Flor Bonita junto aos Desfleurs. - Reclamou.

- Não está mais aqui quem falou. - Pedro resmungou.

Sorte riu. O casal de Ponte Negra ainda era seu favorito.

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