Vergonha
Os pássaros cantavam no topo das árvores enquanto o sol preguiçoso fazia brilhar as cores da natureza. A casa já fora completamente arrumada. A mesa de café da manhã estava posta. Faltavam apenas algumas pessoas na refeição, então, sob as ordens da marquesa, Adelaide foi chamá-las. O primeiro quarto o qual bateu foi no de Azarado, já que a mãe exigia a presença dele cuja responsabilidade de anfitrião não podia ser negligenciada.
Visto que o marquês não respondia, Adelaide entrou no cômodo. Quando olhou na cama colocou a mão sobre a boca e arregalou os olhos. Havia uma mulher ali. Mas uma ordem direta de Bianca não podia ser ignorada, por isso Adelaide optou por abrir as janelas para acordar o marquês.
A mulher assim fez e de fato o barulho e a claridade acordaram o casal sobre a cama. Antes que Adelaide se virasse após arrumar as cortinas, o homem abriu os olhos e piscou confuso, focando o olhar. Olhou para o lado e primeiro viu a camisola branquíssima que estava manchada de vermelho escuro, no tom de marrom seco. Sentou-se na cama para cair no mais profundo abismo quando viu que tirara a inocência dela.
Sim, dela. De Ofélia.
A moça estava deitada ao lado do marquês com a camisola manchada.
Azarado, nu, deu um salto da cama e começou a tremer e chorar enquanto pronunciava palavras de negação. E Ofélia finalmente acordou.
Quando o fez, deu um grito que todos nos quartos do corredor ouviram. O primeiro a aparecer no quarto foi Pedro, que não cria na cena que via. Adália veio atrás, mas ele não deixou que ela entrasse. O terceiro foi o senhor Weirtz que se pôs furioso e esbravejava fazendo um escândalo.
Clementine e Marcel saíram de seus respectivos quartos ainda sonolentos para investigar a bagunça. E por último, Sorte fez-se. A moça sabia qual era o quarto de Azarado por isso estranhou a comoção no local. Ela passou por todos sem que conseguissem impedi-la de prosseguir rumo à grande decepção.
Até pelo irmão conseguiu passar e entrou no quarto.
Quando viu a cena, sentiu o coração sumir. Os olhos encheram-se de lágrimas e o corpo todo tremeu. Ela sabia o que aquilo significava. Ninguém precisava explicar.
Fora duplamente traída de uma forma que não tinha conserto. Nem mesmo Clementine creu nos próprios olhos, tamanha a desgraça que se desenrolava.
Sorte engoliu em seco e começou a chorar. Só quis fazer uma única coisa e foi exatamente o que fez: Arrancou a aliança do dedo e jogou na cara do homem.
Depois virou as costas e partiu. Como estava; de camisola e penhoar. Andou até o fim do corredor, desceu as escadas, caminhou até o fim de outro corredor e desceu as escadas, em seguida correu pelo meio do salão, sentindo o piso frio sob os pés descalços. Passou pelo rol de entrada e saiu na varanda que atravessou em uma corrida cega.
Desceu mais uma pequena escada e saiu na grama macia sobre a qual a sola de seus pés descalços pousava breve.
De uma janela Pedro gritou que o esperasse, mas ela não ouviu, estava surda, muda e cega pela dor. O peito parecia oco, como se tivesse vomitado o coração. O cabelo voava ao vento, solto, selvagem.
Sorte atravessou os jardins correndo, a face vermelha do sol e cheia de suor. A borda da camisola encheu-se de carrapichos espinhentos, mas ela não se importava.
Correndo, atravessou pastos verdes pisando sobre paus e pedras que machucavam as solas de seus pés. A pele se abria retalhada, e enchia-se de terra vermelha. Sorte tropeçou e caiu muitas vezes, a roupa ficava imunda a cada vez que se levantara com os joelhos sangrando mais e mais. Ao sangue juntava-se a terra e a folhas de capim enquanto ela corria.
Quase chegando ao território dos Weirtz, encontrou um cavalo pastando. Era Elegante, o cavalo de Azarado. Sorte parou de correr e começou a andar na direção do animal. Ele se aproximou dela, pois estava familiarizado com sua presença. Arriscando tudo, a jovem montou no pêlo do animal e usou a crina para guiá-lo até um caminho que ela conhecia. Entre a mata, sem porteira ou colchete.
Quando a animal se pôs a galopar a jovem deitou o corpo em seu dorso e chorou desesperadamente.
O único que teve a esperteza e a agilidade de segui-la foi Marcel. No entanto não tinha um cavalo para continuar o caminho atrás dela e impotente a viu partir sobre o lombo do corcel.
Tirou o chapéu e voltou resoluto a pegar um cavalo e tentar procurá-la. Sorte deixou rastros de sangue pelo capim.
Assim que a jovem Olivares saiu do quarto, Pedro começou a gritar furioso. Xingava o marquês com os piores nomes que já aprendera, sem poupar Ofélia, a quem chamou de vagabunda traiçoeira. Os olhos da moça encheram-se de lágrimas. Adelaide avisou que Sorte estava no jardim e Pedro gritou que ela esperasse depois se voltou para Azarado em quem acertou um murro bem colocado.
O marquês não reagiu.
Furioso, Pedro acertou soco atrás de soco até derrubar Azarado no chão. A platéia assistia. Inclusive Bianca, chocada, com lágrimas nos olhos e uma mão sobre o coração. Francisco a segurou para não interferir, pois era questão de honra. Não ficariam do lado do filho, era incorreto. Assistiria Pedro limpar o nome da irmã como preferisse, mesmo que fosse com uma tragédia. Adália desmaiou e Clementine a acudiu, preocupada, pois o senhor e a senhora Weirtz estavam mais incomodados com a filha lá dentro. A jovem francesa arrastou o corpo de Adália para longe de todos aqueles pés antes que alguém lhe pisasse e Adelaide apareceu com sais para acordá-la.
Clementine não se importava com a rivalidade antiga naquele momento. Queria Azarado sim, mas não a ponto de desejar mal de uma mulher grávida, principalmente aquela, que queria tanto a criança e que seria uma excelente mãe, como a sua própria não pôde ser.
Dentro do quarto, Pedro chutava o abdome de Azarado que ainda não reagia. Estava entregue e sangrava sobre o tapete com o rosto cheio de fissuras. Pedro já tinha se arrumado para o café da manhã por isso estava de traje completo incluindo a arma que sacou da cintura e apontou para Azarado.
Ao mesmo tempo, no corredor, Adália recobrou a consciência.
- Madame comtesse. - Clementine chamou a atenção dela e ergueu três dedos. - Quantos dedos a senhora aqui vê?
- Três. - A mulher respondeu um pouco zonza.
- Muito bem. - Clementine sorriu.
Dentro do quarto Pedro pronunciava sua sentença final.
- Eu poderia matá-lo, verme. Mas não o farei. - As palavras ácidas saíram cobertas de escárnio. - Deixarei que conviva com a vergonha de ter traído a pessoa mais inocente que já conheceu na vida. Todos os dias você se lembrará do rosto de minha irmã. Todo santo dia, quando olhar para a face dessa meretriz traiçoeira - apontou a arma para Ofélia - você se lembrará da pessoa mais extraordinária que já cruzou seu caminho. Você murchará aos poucos sem o amor daquele coração e mergulhará em uma tristeza tão profunda e tão irreversível, que desejará o alívio da morte. A morte com a qual não te agracio.
Pedro guardou a arma no coldre e cuspiu no chão ao lado do marquês. Depois saiu do quarto e catou a esposa no colo.
- Obrigada, senhorita Desfleurs. - Adália agradeceu.
- Me chame por Clementine. - A jovem sorriu com tristeza.
No estábulo, Marcel montava em um cavalo arreado e com a companhia de Baltasar, partiu atrás de Sorte. Não podia deixá-la sozinha naquele estado.
Pedro colocou Adália na carruagem para casa com a companhia de uma Matilde muito preocupada com o estado dos nervos da marquesa. O veículo partiu para a fazenda dos Olivares.
O conde dirigiu-se ao estábulo onde Joaquim, que terminava de arriar um cavalo, repassou uma mensagem de Marcel. O francês contara a direção na qual seguira, o estado de Sorte e pedira para dizer que não esperaria, pois pretendia evitar um mal maior.
Pedro montou o cavalo e seguiu o rastro do jovem.
Dentro do quarto do marquês, Azarado chorava sobre o colo da mãe. Já chegara a todos os estágios citados por Pedro e queria morrer, com todas as forças que tinha desejava o gélido e petrificante beijo da donzela de negro. Bianca ficara feliz por Pedro não matar seu único filho, mas sabia que ele morreria por dentro a cada dia.
Principalmente porque seria obrigado a casar com alguém a quem não amava.
- Esse maldito desonrou minha filha! - O senhor Weirtz esbravejou enquanto a esposa espantada via o desenrolar de tudo.
- Ele se casará com ela. - Francisco Almeida afirmou.
- E quem garante isso!? - Weirtz falou irritado.
- Eu garanto! - Francisco arrumou a postura e se impôs com firmeza enquanto olhava nos olhos do ambicioso a sua frente. - Eu, Francisco Almeida, Marquês de Diamantais que estou reavendo meu título neste momento e minha palavra vale ouro.
- O senhor não pode fazer isso! - Weirtz rebateu.
- Sim, eu posso! A transferência era provisória. E doravante me dirija com o tratamento que me cabe: "Vossa Graça". - Diamantais exigiu ao mesmo tempo em que apontava o indicador para a face de Weirtz. - Agora, me dêem licença que preciso conversar com eles.
Ele não esperou resposta. Apenas fechou a porta na face do casal Weirtz. Assustada, Clementine assistia tudo em silêncio. Descobriu naquele momento que Azarado era marquês apenas de maneira provisória. Se tivesse casado com ele, não teria o título.
A moça se virou e foi para o quarto.
O casal Weirtz desceu para tomar o café da manhã em seu mais novo segundo lar.
No quarto, Ofélia chorava com o lençol apertado contra o corpo. Tornara-se um contêiner de mágoas e sentimentos ruins. Calada, assistira toda a extensão da desgraça e sob o peso das palavras de Pedro, visualizou o futuro maldito que a esperava. Longe dos pais sim, mas sem amor. Teria paz e liberdade, porém jamais seria tocada ou olhada com ternura. Não tinha como voltar atrás, estava feito.
O marquês explicou em tom áspero que eles se casariam em breve, não havia escolha. Azarado não herdaria o título de marquês e quando os pais morressem, ele só ficaria com a casa da cidade. Bianca pegou a aliança do chão e colocou no próprio dedo. Estava reavendo a jóia de família e disse que quando morresse, queria ser enterrada com ela.
Azarado não se importava.
Sorte sobre o lombo de Elegante embrenhou-se no mato. Não sabia quanto tempo havia passado, mas sabia para onde ia. O irmão a trazia ali para pescar. Era bem longe, no fundo da fazenda, mas era tranquilo. Tudo corria normalmente, entretanto o cavalo tropeçou em uma raiz e arremessou a moça que bateu a cabeça no galho de uma árvore e caiu desacordada com o corpo no córrego e a cabeça no barro da margem.
Marcel e Baltasar procuraram por horas, mas só encontraram uma pista quando viram Elegante vir de determinada direção. Baltasar suspeitou de que Sorte estava perto da comunidade dos forros da fazenda Diamantais. Que não ficava longe da divisa com a fazenda de Pedro Olivares. As crianças sempre pescavam naquele lugar, havia algumas trilhas na mata.
E em uma delas os dois homens encontraram as marcas da passagem de Elegante.
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