Noivado
Azarado acordou cedo demais, como sempre fazia quando estava agitado. Tomou café da manhã na cozinha, sentindo o cheiro da lenha que queimava no fogão.
Conversava com Nana, animado, explicando que tinha uma novidade e em breve anunciaria para todos.
Depois saiu para a lida do dia. Conversava com Elegante enquanto cavalgava, sobre sua vontade de se casar o mais rápido possível.
- Sei que não a conheço bem, Elegante. - Falava para o cavalo ao mesmo tempo em que contava as cabeças de gado. - Mas acho que fomos feitos sob medida. Eu trouxe um presente para ela. Um bibelô. Espero que ela goste.
O homem começou a rir de si por conversar com o animal, mas aquele era seu melhor amigo. Tinha a mãe também, mas há coisas que um homem não consegue desabafar com os pais. Nessas horas ele sentia falta de um irmão.
O marquês voltou para casa e foi se banhar. Tinha um cômodo dentro do quarto onde ficava a tina de metal. Azarado fechou os olhos e relaxou enquanto pensava em Sorte. Como seria a festa de noivado? Em qual das propriedades? A quem convidariam? Não adiantava ficar ansioso, decidiu que era melhor sair logo daquela tina e ir à propriedade do cunhado.
Pedro era um gênio, na opinião do marquês. Apesar de o aviso soar um pouco ofensivo, saber que a futura esposa administraria os próprios bens era um alívio. Seria menos responsabilidade para ele e Sorte poderia acompanhá-lo nas viagens de negócios, para colocar os próprios negócios em ordem também. E ele teria com quem conversar sobre os obstáculos e problemas que surgissem pelo caminho. Não seria obrigado a remoer sozinho quando um assunto o incomodasse porque a esposa o entenderia.
Simples e prático. Como se fossem marcados para se unir em matrimônio.
Azarado saiu da tina e se enrolou na toalha. Pegou a espuma de barbear, a navalha e começou a tirar a barba por fazer. Deslizava a lâmina devagar pela pele do rosto quando se pôs a refletir que aquilo em suas mãos era uma arma e tanto.
O marquês terminou o processo do barbeado, coçou os pêlos do peito ainda úmidos e andou sobre o carpete macio até o próprio guarda roupas. Já sabia qual traje vestir. Até poderia pedir ajuda para não amarrotar a roupa, mas iria a cavalo até a fazenda dos Olivares e Sorte já estava acostumada ao desalinho dos homens do campo.
Aproveitaria para mostrar Elegante.
Azarado desviou do guarda roupas e foi até o criado mudo onde pegou o livro que emprestara. Já terminara de ler e precisava devolver. Pensou em escrever um bilhete e colocar entre as páginas, mas desistiu. Acabou embrulhando o livro da mesma maneira que o tinha recebido e colocou sobre a cama.
Pegou também o presente que comprara durante a viagem e colocou junto. Havia dois objetos dentro do embrulho de papel. Um deles custara uma pequena fortuna. Era encomenda para outro nobre, mas Azarado resolveu a questão com dinheiro. O rapaz que o atendeu mentiria ao outro cliente que ainda não recebera o produto e encomendaria outro. Já o outro objeto, era apenas um bibelô barato, mas bonito, que ele encontrava pelo caminho.
Pensou se deveria entregar a aliança de noivado ou guardar para o dia da festa e resolveu que depois seria melhor.
Finalmente o marquês se levantou e andou até o guarda roupas para se vestir. Pararia de pensar em Sorte e a veria pessoalmente.
Quando abriu a porta que estava destrancada, foi surpreendido por um par de seios brancos que se lançaram bem na direção de sua face. O homem, assustado, pulou para trás e viu Clementine cair de gatinhas no chão. Nua.
- O que está significa isso? - Questionou indignado.
A mulher se levantou e andou na direção do marquês que começou a ficar com o membro rijo diante da visão dos mamilos intumescidos.
Azarado andava para trás à medida que Clementine tentava alcançá-lo, até que encontrou a cama como obstáculo.
- Vamos, mon amour. Você gostava de moi* na Inglaterra, agora estou aqui para continuar de onde paramos. - Falou enquanto abraçava o tórax do homem paralisado.
Sentir os mamilos contra a pele nua fez uma parte sua gritar, ainda assim o homem pegou Clementine pelo ombro e a afastou de si.
- Você está fora de seu juízo perfeito, Clementine! Ponha-se para fora daqui ou não respondo por mim. - Ordenou irritado.
- Mas e nosso amour? - A francesa reclamou.
- Acaso delira? É isso, um delírio! - Azarado afastava-se na direção do guarda roupas enquanto dispensava a mulher. - Dei-lhe um beijo e você entendeu como uma promessa de amor eterno.
- Foi mais que um beijo, Pierre. - A mulher invocou-o pelo nome do meio.
- Não tente mentir para mim, Clementine! Bebi em demasia, mas ainda me lembro daquela noite. Sei que dormi em um dos sofás da casa de Albert e você no outro, nada tivemos. - Contou exasperado com a insistência.
- Pierre... - A mulher começou a chorar e Azarado ficou com o coração pesado, mas tinha certeza do que dizia.
Recebera a mulher em sua casa somente porque ela era importante para os negócios Clementine derrubou homens de seus postos com a força de sua vontade, apenas por se sentir ofendida. Mas eram fracotes. Ele era diferente, tinha pulso firme e a certeza de que ninguém o julgaria pelo que fez no passado, em tempos de aventura.
A não ser o próprio senso moral, mas a consciência não pesaria apenas por um beijo. Não. Logo às vésperas de ficar noivo não aceitaria aquela tentativa de chantagem emocional.
Azarado jogou apenas uma camisa sua em Clementine e apontou a porta de saída.
A mulher vestiu a roupa e andou de cabeça baixa até a porta, mas antes de sair, quando estava com a mão na maçaneta, virou-se para o marquês e fez uma pergunta inesperada.
- Por que sua bota não tem o outro pé?
Azarado olhou sem entender o motivo da pergunta.
- É que tenho um petit* problema com "organizaçón". - Falou e depois saiu.
Azarado suspirou e olhou para o teto. Depois se pôs a arrumar, queria chegar antes do almoço.
Sorte também acordou cedo, ajudou a fazer o café da manhã e depois foi para o banco debaixo dos pés de manga, de onde viu Tomaz passar com alguns pés de couve. Os pássaros cantavam alegremente enquanto o sol nascia e ela aspirou o ar fresco e úmido da manhã. Tinha cheiro de terra molhada de orvalho e folhas verdes.
Refletiu sobre os dois importantes passos que daria. Por fim fez um apontamento mental de que deveria urgentemente analisar as situações das propriedades.
Talvez viajar para visitá-las junto com seu irmão, antes que Adália tivesse os bebês. Dependendo de quando casasse, poderia viajar com Azarado e apresentar as terras que a ela pertenciam. Era bom que Azarado soubesse das condições dela, como Adália contara outro dia, assim poderiam basear o relacionamento no companheirismo e na compreensão mútua, e não apenas no amor.
O amor é importante, mas a vida é longa e complexa demais para depender apenas dele.
Um marido precisava ter outras qualidades além de ser amoroso. Sorte via no relacionamento do irmão com a cunhada. Havia companheirismo, lealdade, fidelidade e resiliência. Sim, eles já se desentenderam como todo casal um dia. Divergências existem entre seres humanos, mas é preciso ter humildade para sentar e conversar sobre os problemas. Analisar os pontos de vista com maturidade e chegar a uma solução que agrade ambos os lados.
Era isso que Sorte queria de um marido.
- Em que pensas, colibri? - Adália a assustou com sua fala.
Sorte nem vira a cunhada chegar.
A moça olhou para a casa enquanto Adália se sentava no balanço, ao lado da cunhada.
- Penso em como Pedro sempre foi um bom exemplo. Um modelo de referência. - Sorte disse enquanto olhava as mãos cruzadas sobre o colo. Com um polegar alisava a unha do outro. - Os homens dizem que as crianças são trabalho das mulheres, mas ele sempre esteve presente. E também, vejo o casamento de vocês como um ideal para mim.
Adália sorriu emocionada.
- Claro que meu irmão não pode sozinho levar todo o mérito pela relação. A esposa dele também é uma referência para mim. - Ela sorriu para a cunhada e viu que uma lágrima corria pelo rosto da mulher.
Adália inspirou e expirou com força antes de falar.
- Quando me casei com seu irmão, tive um pressentimento de que não seria fácil. E não foi. Sua mãe morreu, depois seu pai, e de repente nos vimos sozinhos com um bebê. Claro que contamos com a experiência de Matilde e tenho muita gratidão por isso, mesmo assim não foi fácil. Algumas vezes não dormi, com receio de não ser suficiente para você. Outras vezes quem não dormiu foi seu irmão. Muitas e muitas vezes o surpreendi chorando sozinho pelo medo que tinha. Era aí que eu entendia minha função dentro da nossa união.
"Eu guardava meus medos e o abraçava. Eu o acolhia nesses meus braços tão mirrados e ele desabafava a dor.
Era tão novo e você tão pequena. Depois de tudo ele me agradecia por ser paciente ao que eu respondia com um sorriso. Meus dias de dor também chegaram quando perdi meu pai e minha mãe. Você era pequena demais ainda, provável que não se lembre de meu luto."
"Foi um período difícil e muito triste, mas Pedro me abraçava até o choro passar. Eu não conseguia cuidar de você, no entanto não foi preciso, ele e Matilde dividiram as tarefas. Ao fim dos dias, Pedro sempre me dizia uma palavra gentil e de esperança. Por isso a dor amainou."
Adália limpou uma lágrima dos olhos.
- Lembro que senti vontade de sair da dor quando ouvi você chamar meu nome. "Por que a 'Dadáli' não 'tá' aqui?", você perguntou durante um jantar. Eu ia à latrina e ouvi. Seu irmão ia responder que eu dormia, mas me sentei à mesa e pedi um prato, decidida a viver. "Dadáli, eu 'tava' com 'xaudade'.", você falou com toda inocência. Então eu levantei a cabeça e deliberei que se ainda estava viva, deveria viver. Nossa família se reergueu, mas então Pedro adoeceu.
"Foi a pior epoca de todas. Ele morria a cada dia e eu não sabia o que fazer. Morri aos poucos sem poder curá-lo. Toda noite eu rezava tanto, mas tanto. Foi preciso cuidar dos negócios e todos os empregados das propriedades me ajudaram. Meu pai não me criou para ser uma mulher forte. Ele me criou para ser uma dona de casa delicada e alienada. Felizmente esse não foi meu destino e nem é o seu."
Adália enxugou o rosto e sorriu.
- Fizemos nosso melhor por você enquanto travávamos nossas batalhas pessoais e amadurecemos à força. Sinto tanta gratidão agora, porque vejo que fiz tudo certo. Tenho tanto orgulho. Sinto-me um pouco tua mãe. - Adália pegou a mão de Sorte. - Agora você vai seguir seu caminho, mas ao contrário de mim quando jovem você é dona de suas próprias vontades. Da sua verdade. E você sabe a direção de casa, caso algo dê errado. Sempre estaremos de braços abertos para te acolher. E pés firmes no chão, para suportar a força dos vendavais inesperados.
Sorte abraçou a cunhada e uma mão pousou sobre o ombro dela. Quando olhou para cima, viu Pedro chorar.
O conde foi chamar a esposa e a irmã para o desjejum.
Azarado chegou pouco tempo depois. Da outra vez fora com outro cavalo, mas em ocasião do noivado escolheu Elegante para mostrá-lo a Sorte.
- Bom dia, senhor. - Matilde o cumprimentou.
Sorte desceu as escadas, ansiosa. E Adália apareceu vinda da cozinha.
- Pedro nos espera na sala. - A condessa indicou o caminho.
Os três seguiram para o cômodo onde Pedro esperava em um cochilo tranquilo e com o próprio chapéu tampando o rosto. A esposa andou até ele e o sacudiu fazendo-o acordar assustado.
- O que é? A vaca já pariu? - Perguntou antes de assimilar a realidade à própria volta.
- Ainda não, Pedro. - Adália respondeu zangada. - No entanto, Azarado já chegou.
- Ah! Sim... Sim. - Pedro falou enquanto se recompunha.
Sorte e Azarado riram do homem.
Azarado tirou de dentro do bolso interno do casaco verde dois embrulhos que entregou para Sorte e depois se sentou no sofá. A jovem agradeceu ao marquês e começou a abrir o pacote retangular que não era o próprio livro.
Todos assistiram cheios de expectativas.
Os olhos de Sorte brilharam quando ela viu um livro.
Contente, pegou o objeto e leu o que havia na capa. Era um livro de Camões, poeta cuja obra o marquês usara para se declarar na noite anterior. Quando ergueu o livro, a jovem viu embaixo uma moldura para retratos. Era mediana, de metal prateado e intrincado a toda a volta do espaço central, como ramos e folhas de uma videira azulada.
- Impressionante. - Adália murmurou ao lado dela enquanto observava os detalhes moldados por algum artesão.
- Sim! - Sorte exclamou com olhos brilhando de alegria e agradeceu de novo a Azarado - Sou grata.
- Não por isso. - O homem respondeu sem jeito enquanto passava a mão na nuca.
Sorte se ausentou um pouco para guardar os presentes no próprio quarto, mas logo estava de volta.
- Por onde começaremos? - A moça disse enquanto entrava na sala.
- Espero que os mais experientes nos conduzam. - Azarado olhou para Pedro e Adália.
- Primeiro precisamos escolher o lugar. - Adália tomou as rédeas da situação. - Vocês têm três opções. Nossa fazenda, a fazenda dos marqueses ou nossa casa na vila.
O marquês olhou para a noiva em busca de aclaramento das ideias.
- Penso que depende de quantos convidados teremos. - Sorte se pronunciou. - A casa na vila é pequena, como sabem.
- É melhor recepcionar em minha casa. Não importa o tamanho da recepção, ficará bem acomodada naquele lugar. - Azarado determinou.
Sorte concordou.
- Noturna ou diurna? - Pedro questionou.
- Noturna. - Sorte respondeu.
- Diurna. - Azarado falou ao mesmo tempo.
Ambos trocaram olhares assustados. Estavam diante do primeiro desafio.
- Noturna? - Azarado perguntou meio desconcertado. - Os jardins de mamãe são tão bonitos, podemos escolher um dos caramanchões. E eu não gosto da ideia de uma recepção noturna. Pessoas estranhas pela casa... E elas podem se perder no labirinto.
- Mas Azarado, faríamos a alegria de todos. Essas gentes, principalmente as moças, esperam ansiosas por uma oportunidade de usar trajes noturnos. - Argumentou. - E a recepção não precisa se delongar. Além disso, você não pode reclamar de pessoas estranhas andando pela sua casa, já que está recepcionando os Desfleurs.
O marquês sentiu uma ponta de acusação na voz de Sorte. O casal do condado assistia impassível enquanto o par a sua frente solucionava o problema. Era um teste.
- Do que me acusas? - Disse direto. - É diferente, Sorte. É do seu conhecimento que é diferente. Clementine está relacionada aos negócios, não a um prazer pessoal.
- Não gosto dela. - Sorte desabafou o que guardara para si. - Não gosto de como ela toca seu corpo e da maneira que te devora com o olhar.
- O senhor Marcel não fica atrás, e você se divertiu muito com ele. - Azarado devolveu. Estava ferido por aquele assunto mal resolvido.
Colocar uma máscara não foi benéfico para a relação de ambos.
- Eu segui com o senhor Desfleurs porque você tinha outros planos com sua amada Clementine, a "frrançais". - Sorte ironizou e se levantou do sofá. Azarado se levantou também. - O que queria que eu fizesse? Que ficasse triste e emburrada em um canto enquanto você desfilava com a galinha francesa a tiracolo?
Azarado massageou a testa com as pontas dos dedos enquanto a outra mão repousava na cintura.
- Eu não fiz algo demais, apenas a levei para conhecer padre Antoine e depois ela foi dançar, Sorte. Você precisa confiar em mim. Todos são testemunhas de que eu estava lá, inclusive o conde e a condessa. - Se defendeu.
- Você não entende, Azarado! A questão não é essa, e sim o fato de você não fazer nada para afastá-la. Você foi passivo em relação à situação e eu aceitei porque nosso compromisso ainda não é oficial, - Sorte chorava as emoções represadas enquanto pronunciava as palavras com raiva. - Todavia e quando for? O que devo fazer quando uma mulher se pendurar em você? Sorrir e fingir que não me importo enquanto você aceita tudo?
O corpo de Sorte já convulsionava pelo choro. Azarado enxergou além do véu da amargura quando a jovem explicou o que a afligia, então se sentiu culpado. Sim, ele fora passivo e não fizera tudo que podia para garantir o bem estar da relação. Se Marcel levou duas moças nos braços, porque ele não fizera questão da companhia da própria noiva?
O marquês diminuiu o espaço que havia entre ambos e a puxou para o próprio peito, onde Sorte deitou o rosto úmido de lágrimas. O homem a abraçou e encostou o queixo no topo da cabeça dela.
- Eu errei. Perdoe-me. - Pediu arrependido. - Eu poderia ter feito mais por nós.
Sorte o envolveu com os próprios braços.
- Não tem problema. Desculpe-me o descontrole, não gosto da galinha francesa. - Sorte pediu desculpas e o marquês riu do apelido.
- Se quer saber, também não gosto dela, mas não posso expulsá-la. - Azarado apoiou as palmas das mãos nos ombros de Sorte e a afastou para fitá-la nos olhos. - Você precisa confiar em mim.
- Confiarei. - Ela puxou o ar com força e expirou pela boca.
- Pode ser noturno. - Azarado falou por fim. - Mas eu escolho as bebidas e isso é inegociável.
- Combinado. - Sorte riu.
Adália apertava a mão de Pedro enquanto assistiam a resolução do conflito. No fim das contas, aprovaram o desenrolar da situação.
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Moi: Mim/Eu
Petit: Pequeno.
Mon amour: Meu amor
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