Monstros da meia noite

Era tarde da noite quando Pedro finalmente chegou com o médico. Poucas horas antes, um enviado do marquês chegou transportando os pertences que ficaram para trás e uma longa carta com um pedido de desculpas onde Bianca explicava que jamais imaginariam a má índole do filho e que nunca pensaram que algo daquela natureza aconteceria. Dizia também que sabiam da gravidade da situação e que nada poderia reparar o estrago daquele erro terrível, mas caso pudessem fazer algo, qualquer coisa, estavam à disposição.

Adália suspirou após ler a carta, pensava que seria uma união e tanto caso as famílias tivessem se ligado através do casamento.

Pedro chegou exausto e faminto. Adália ajudou a preparar um banho quente para o marido. Depois serviu o jantar para ele e o doutor Astronildo.

O médico examinou Sorte e ficou preocupado com a intensidade da febre. De toda forma ele continuaria ali, pois estava tarde e quando era esse o caso, dormia na casa dos clientes. Com sua permanência no local, poderia avaliar a melhora ou a piora do estado de saúde da jovem.
Todos se recolheram ao quarto e pouco tempo depois começou uma chuva de intensidade mediana.

Era meia noite em ponto quando Sorte começou a gritar e todos convergiram novamente para o quarto da moça.

— Monstros! Os monstros querem me pegar! — Gritava enquanto e revirava sobre o colchão. — Monstros! Monstros!

Sorte gritava e chorava.

— Não há monstro algum. — Adália tentava conversar com ela. — Estamos seguras aqui.

— Há monstros, Adália! Eles... Eles... Eles planejam meu fim. — Falou desesperada.

Adália começou a orar um padre nosso enquanto o médico tentava acalmar a jovem. Não foi fácil. Por uma hora Sorte repetiu a mesma ladainha de que monstros planejavam seu fim e chorou. Às vezes pedia ajuda, e outras que se afastassem, mas sempre com muita intensidade, como se vivesse o que dizia.

O médico conseguiu dar um chá de camomila e ela dormiu, felizmente até a manhã, quando acordou sem febre e um pouco perdida porque Adália dormira abraçada a ela.

A cunhada acordou assim que Sorte fez um movimento leve. Fazia tempo que não dormia na mesma cama.

— O que passou? — Sorte questionou vendo as olheiras escuras da mulher.

— Você teve muita febre e começou a delirar. — Adália explicou.

— Não me lembro. — O olhar de Sorte ficou perdido. — Só me recordo de acordar e ver Azarado nu com Ofélia, depois corri, montei Elegante, bati a cabeça e caí... E Marcel. Lembro-me como um sonho. Isso tudo...

Sorte olhou para as feridas no próprio corpo e ficou assustada. Havia muitos curativos cheios de emplastros. Os pés estavam inchados e era impossível andar. O joelho ficara dolorido, o rosto arranhado e machucado. Sobretudo partes internas doíam devido à queda que tomara.

— É tudo verdade... — Adália sentou-se no colchão enquanto explicava. — Ele a encontrou naquela mata onde seu irmão levava você para pescar.

O olhar de Sorte pesou de tristeza.

— Por que eles fizeram isso comigo? — A jovem abraçou o próprio corpo. — Eu só quis morrer. Eu sabia que seriam obrigados a casar. Enganei-me tanto assim com ele?

Adália levantou-se da cama impotente diante daquele desafio. Sem saber resposta para aquela questão. Mas contra fatos nunca há argumentos. Várias pessoas presenciaram o ocorrido, então só podia ser real.

Em vez de oferecer uma resposta, Adália contou sobre as desculpas pedidas pelos marqueses.

— O marquês e a marquesa enviaram uma missiva. Nela explicam a vergonha que sentem e pedem as mais sinceras desculpas. — A ruiva disse. Ao mesmo tempo Pedro entrou no quarto com uma bandeja de alimentos somente para a esposa, pois pensou que a irmã ainda estaria inconsciente.

— Bom dia, minhas mulheres prediletas! — Tentou soar animado. — Tenho a obrigação de buscar mais comida.

— Vá mesmo! — Adália entrou no jogo. — Inclusive para mim. Veja Sorte, que absurdo, apenas três pães, duas bananas, dois ovos fritos, leite, chá e mel. Como pode ser tão mesquinho?

— Faltou o café. — Sorte falou e esboçou um sorriso tristonho, pelo menos era um sorriso.

— Buscarei. — Pedro colocou a bandeja sobre a cama e se voltou para a saída.

— Não quero. — Sorte o interrompeu. — Não tenho fome.

— Mesmo que sem fome, você vai comer. — Pedro respondeu sem olhar para ela. — Não a deixarei se matar sem comida enquanto estiver debaixo do meu teto.

— Mas Pedro...

— Não. — Falou incisivo. — Isso não é negociável. Não deixarei minha única irmã morrer por um crápula e uma vagabunda.

— Ele está certo, querida. — Adália apoiou ao marido. — Não vale minguar e morrer por quem não tem consideração por você.

Pedro saiu do quarto para buscar mais comida e Sorte suspirou.

Pensou que eles não entendiam o que ela sentia. Não era vontade de morrer, era falta de forças para viver. Não conseguia ter energia para nada, nem mesmo para respirar direito. Se o próprio corpo não fizesse tudo sozinho, ela mesma não conseguiria continuar. Queria se deitar na cama e entregar o corpo àquele vazio crescente.

Os jovens sempre pensam que os mais vividos não entendem o que eles sentem, pois são sofrimentos exclusivos da pouca idade. Entretanto, não podem estar mais enganados. Claro que em todos os âmbitos da vida há exceções. E de uma geração para a outra, as lutas não são as mesmas. Cada qual com suas batalhas para vencer. Ainda assim, quem tem mais experiência quase sempre entende as dores que a vida traz.

Adália viu nos olhos da cunhada que ela pensava estar sozinha naquele momento. É verdade que ela e o marido não sentiam a mesma dor de Sorte, nunca tinham sentido, na verdade. Mas imaginavam como era pelo simples exercício da empatia.

Não adiantava debater com Sorte, só podiam obrigá-la ao básico enquanto processava aquela dor.

Quando Pedro voltou ao quarto, trouxe o doutor Astronildo a tiracolo. O médico como sempre fora muito gentil. Ao examinar a moça, concluiu que ela estava com um pouco de febre e precisaria de dias sem sair da cama, mas se seguisse todas as prescrições logo estaria saudável.

— Sinto muito pelo ocorrido, senhorita Olivares. — O médico disse, mostrando que a notícia já se espalhara. — Ainda assim, considerando seu histórico, foi loucura sair a esmo. É milagre que esteja viva. Espero não mais atendê-la em tais condições.

Sorte abaixou o olhar, envergonhada. Sabia que precisaria lidar com julgamentos e com sermões. Principalmente porque ela era a traída e todos das redondezas comentariam o mesmo assunto por meses, quiçá anos.

Por mais medíocre que fosse, havia uma alegria em saber que o novo casal também não teria paz. Principalmente por o título de Azarado ter sido retirado pelo pai. Ninguém o respeitaria como antes e seu nome faria moradia nas bocas mordazes.

— Serei mais cuidadosa, senhor. — Sorte prometeu ao médico.

— Menos mal, senhorita. Logo sua cunhada terá criança e é bom que esteja bem para ajudá-la. — O médico disse enquanto fechava a maleta para partir dali.

Sorte sentiu-se um estorvo. A cunhada estava grávida e volta e meia era obrigada a dispensar cuidados com ela como se fora uma criança. Devido a isso decidiu que quando estivesse boa, passaria uma temporada longe dali. Na corte ou em uma de suas fazendas. Precisava atentar das demais propriedades e não havia momento melhor.
Por isso tratou de recuperar o corpo.

Naquele mesmo dia à tarde, Marcel apareceu para uma visita de cortesia.

Adália subiu para perguntar se a moça tinha interesse em vê-lo e Sorte foi incisiva ao dizer que sempre o receberia. Devia a vida ao jovem Marcel e uma desfeita não estava em questão.

— Deixe-o subir. — Sorte pediu, mas em seguida se arrependeu. — Espere!

Adália olhou assustada.

— Como está meu cabelo? — Perguntou.

— Despenteado. — A cunhada respondeu.

— Alcance a escova, por favor. — A moça pediu.

— Deixe que eu lhe penteie os cabelos. Suas mãos ainda estão com curativos. — Adália determinou.  — Não entendo sua lógica, Sorte. Está toda machucada e ele te viu em estado pior, por que ainda se preocupa com cabelos embaraçados?

— Porque se porventura ele resolver fazer mexericos ao maldito Azarado, quero que diga que estou bonita. — Sorte explicou enquanto Adália penteava as madeixas.

A condessa sorriu pensando que há vaidades ininteligíveis demais para que sejam questionadas. O rosto da moça estava completamente machucado e inchado como o resto do corpo, mas era o cabelo penteado que a poria bela outra vez. Pelo menos assim ela julgava.

Após Sorte permitir que Marcel subisse, o jovem apareceu no quarto. Trazia em mãos um embrulho de tecido. Bateu na porta que estava aberta com os nós dos dedos, apenas por educação, e adentrou o recinto.

Bon après midi*, mademoiselle Sorte. — Marcel cumprimentou. — Sei que é inútil perguntar como está, mesmo que por educação.

— Boa tarde, senhor Marcel. — Sorte devolveu o cumprimento. — Talvez seja inútil, pois minha aparência fala por mim. Entretanto, eu posso perguntar como estás.

— Melhor que isto é impossível! Acordei com saúde, isso é o que mais importa. — Respondeu enquanto puxava o banquinho lilás da penteadeira para sentar-se ao lado da cama.

Depois de acomodar-se, Marcel estendeu para Sorte o embrulho que tinha em mãos. A moça pegou o pacote quente e abriu. Era comida muito aromática que a fez salivar de gula, foi impossível não sentir vontade de comer.

— Parece delicioso. — Sorte disse com os olhos brilhantes. O cheiro estava bom e a apresentação impecável.

Marcel pegou uma faca e uma colher de dentro do bolso traseiro da calça e entregou para a jovem. Os talheres estavam enrolados em um guardanapo.

— Peguei na cozinha antes de subir. Sua cunhada que entregou. — Explicou. — Coma despreocupadamente, eu e Clementine fizemos essa e outra maior que ficou lá embaixo, para sua família.

— Clementine? — Sorte lançou na torta um olhar duvidoso.

Marcel riu.

— Não se preocupe, ela não te mataria. E se o fizesse, iria preferir um tiro. — Disse divertido. — Clementine odeia desperdiçar comida.

Sorte estreitou os olhos.

— Se é verdade, então prove primeiro esse... — Sorte acenou na direção do prato que tinha formato arredondado. Era basicamente uma torta recheada de toucinho defumado, creme de leite e queijo.

— Quiche Lorraine. — Marcel completou.

Então tirou um pedaço da quiche e comeu.

— Receita francesa? — Sorte perguntou.

Oui. — Ele respondeu. — Receita francesa preparada por franceses. É quase o mesmo que ter um pequeno pedaço da França em seu quarto.

Sorte cortou um pedaço da quiche e mordeu. Revirou os olhos de prazer quando sentiu a comida tocar o paladar e Marcel sorriu orgulhoso. Não há elogio maior a um cozinheiro que uma reação natural.

— Isso está delicioso! — Sorte disse de boca cheia. — Coma também.

Marcel aceitou. Pegou um pedaço e acompanhou Sorte.
Depois de devorarem quase a quiche inteira, ambos suspiraram satisfeitos.

— Então o senhor cozinha? — Sorte perguntou. Sentia a barriga cheia e uma satisfação momentânea que só comida dá aos que apreciam uma boa culinária. — Isso é raro.

Oui. — Marcel respondeu. — Não nasci em berço de ouro. Minha família é quase como a sua, a diferença é que somos apenas eu e Clementine.

Sorte olhou curiosa.

— Como conseguiram se relacionar com a aristocracia? — Indagou perplexa. Os círculos aristocráticos eram demasiado cerrados, principalmente o inglês.

— Através de chantagens e negociatas. — Replicou tranquilo. — Nobres também tem segredos e dívidas. Aproveitamo-nos disso.

— Isso não é muito nobre. — Ela julgou.

— O que é nobre, afinal? — Marcel confrontou em tom suave. — Trair a esposa? Matar adversários? Maltratar os filhos? Dizimar nações inteiras e escravizar por território? Isso é nobre? Sinceramente, as pessoas perdoam qualquer atrocidade de quem tem um título. Não me admira que minha irmã quisesse um a todo custo.

— Sua irmã queria perdão através de um título? — Sorte franziu o cenho.

— Não. — Retrucou direto. — Minha irmã queria uma vida pacífica e livre de preocupações. Talvez tivesse conseguido se não fosse a pequena paixão que nutriu pelo ex-marquês. Tantos velhos ricos e com o pé na cova, ela escolheu justamente um jovem vigoroso e teimoso com título provisório.

— Ela pode ser amante dele. — Falou magoada. As palavras saíram cáusticas.

— “Nón”. — Marcel olhou para o teto, nitidamente preocupado.

— Ele não a quer? — A jovem estava confusa.

— Não, mademoiselle. Minha irmã tem um motivo maior. — Revelou.

Sorte continuou encarando a face de Marcel. Queria uma resposta, não era preciso expressar oralmente porque a expressão falava por si.

— Segredarei à senhorita porque é de longe a melhor pessoa que encontramos nesse lugar. Todavia, não pode deixar que a notícia se espalhe. — Alertou.

— Prometo guardar seu segredo. — Sorte firmou o compromisso.

Ele esperou dois segundos antes de jogar a bomba no colo da anfitriã.

— Clementine está grávida. — Sorte colocou uma mão sobre a boca. Ficou nitidamente assustada. — Não é de Azarado, posso garantir. Devido esta ocorrência minha irmã irá implorar para ficar protegida e escondida na fazenda dos Almeida até o dia de dar a luz, depois vai embora para algum lugar. Somos perseguidos e ela quer manter a criança em segurança.

Sorte ficou longos minutos em contemplativo silêncio enquanto fitava o cobertor que cobria as próprias pernas. Marcel começou a se perguntar se era um sinal de que deveria partir e cogitou a ideia, mas antes que enfim se despedisse da jovem Olivares, ela resolveu dizer algumas palavras. Que o surpreenderam, na verdade.

— Ela quer tanto ser mãe que abandonaria as próprias ambições? — Questionou.

— Não. — Marcel respondeu. — Ela quer tanto ser uma boa mãe que vai se voltar apenas para o lado bom de si.
Sorte pensou por mais alguns minutos.

— Diga a ela que caso queira não se fará preciso implorar. — Falou determinada. — Posso abrigá-la em uma de minhas fazendas. São distantes daqui e ninguém os reconhecerá. Estará segura.

As palavras da jovem Olivares surpreenderam ao francês que coçou o próprio queixo com o polegar e o indicador.

— Por quê?

— Porque todas as pessoas merecem uma segunda chance, Marcel. Principalmente aquelas que estão implorando por uma. — Sorte respondeu enquanto olhava para a expressão surpresa de Marcel. — Posso levá-los comigo. Partirei assim que estiver bem o suficiente para uma viagem de carruagem.

— O que vai pensar sua família? — Marcel contestou atônito.

— Nada. Pedro passou a mim o controle e a posse de toda minha fortuna para que eu administre e é exatamente o que farei. — As palavras saíram secas. — Ao contrário de meu ex-noivo, tenho autoridade real sobre o que é meu. Meu corpo, meu coração, minha mente e minhas propriedades. Agora se me der licença, preciso descansar.

Sorte deitou-se de costas para Marcel, mas ainda disse algumas palavras antes de fechar os olhos.

— Transmita meus agradecimentos pela quiche. E tenha cuidado pelo caminho. Até mais ver.

Oui. — Ela não viu o sorriso nos lábios dele.

Marcel abaixou a cabeça e saiu. Encontrou Adália na sala onde recebia visitas. Os últimos raios de sol batiam no cabelo castanho avermelhado enquanto a mulher bordava algo.

Quando ela se deu pela presença do francês levantou os olhos e sorriu. Agradeceu pela quiche e pela visita que fizera à cunhada. Transmitiu os agradecimentos de Pedro pelo socorro no dia anterior. O jovem respondeu que não fizera mais que sua obrigação como cavalheiro, e que faria novamente se fosse preciso.

Marcel voltou para a fazenda Almeida enquanto Sorte chorava sozinha.

Fingiu-se de forte até quando conseguiu, mas ainda doía muito por dentro e chegou um momento em que precisou evadir a tristeza em lágrimas. Principalmente quando chegou à conclusão de que a terrível Clementine era melhor que seu ex-noivo e a mulher que ela chamara de amiga.

Azarado passou o dia todo sem sair do quarto. Não comeu, não bebeu, não se dignou a falar com ninguém. Apenas ficou perdido nas lembranças enquanto sentia o peso do grilhão da culpa preso em seu tornozelo.

Sabia que Marcel saíra para visitar Sorte, pois ouvira Clementine responder sem vontade quando Ofélia perguntou a ela no corredor.

“Meu irmão foi fazer algo por mademoiselle Olivares, oui? Não se intrometa, menina.” Foram as palavras exatas de Clementine.

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Bon après midi: Boa tarde.

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