Ironias

O salão de bailes de Vossa Alteza, duquesa Úrsula Moraes Firmosa, brilhava sob a suave misteriosa iluminação de castiçais e candelabros dourados alimentados por óleo importado. Um grupo de músicos, que se encontrava em um canto meio escuro do recinto, executava amplo repertório de canções animadas. Tratava-se de um misto que intercalava composições da moda europeia e outras advindas da terra. O fato é que, os acordes preenchiam o salão.

Por ser noite quente, muitos convidados aproveitavam o ambiente fora do salão, onde tomavam o ar fresco da noite. Casais apaixonados esgueiravam-se pelos cantos em furtivas demonstrações de amor enquanto se deleitavam com o brilho das estrelas ou a beleza das plantas bem cuidadas do jardim. Os corações que ainda não se viam arrebatados pela paixão, tinham grandes chances de quedar-se ao sentimento naquela noite - dadas as condições favoráveis para um romance.

Os bailes de senhora Úrsula eram eventos muito ilustres, reconhecidos em toda a região e até mesmo na corte. Também pudera, pois a comida era sempre saborosa, impecável e servida em abundância, assim como as bebidas. A decoração nunca se repetia, pois a sinhá era caprichosa e colocava as pobres mucamas cansadas com suas exigências e mimos de aristocrata. As miseráveis mulheres e crianças faziam um trabalho tão perfeito, que ao fim de toda festa, Úrsula Firmosa se via coberta de elogios.

A questão é que Úrsula vinha de uma longa e rara linhagem de duques e duquesas brasileiros. E a mulher fazia por onde ser aclamada entre o mais alto círculo social, formado exclusivamente por seus semelhantes. Sua fama era tamanha, que até mesmo membros de casas nobres européias davam o ar da graça em suas residências. Algo que só podia ser visto com frequência em eventos do Imperador.

O duque era um homem gentil, dentro das possibilidades da epoca e de seu título. Muito dado à diplomacia e às suas ocupações obrigatórias inerentes ao cargo que ocupava.

Naquela noite junina de mil oitocentos e trinta, os duques recebiam nada menos que cento e cinquenta e cinco convidados. Todos arrumados com muito esmero a fim de apresentar suas figuras com todo o garbo e elegância. Os esforços não foram vãos. Via-se que das mais jovens às mais velhas damas, todas usavam as melhores vestes que podiam comprar e que a imaginação fora capaz de conceber. Os cavalheiros, trajados em gala, mostravam-se muito alinhados, com os cabelos recém aparados, penteados e lustrosos.

Talvez houvesse um bêbado ou dois que não estivessem tão elegantes assim, mas esses só seriam comentados com discrição, apesar de amiúde.

Inserida neste ambiente encontrava-se senhorita Sorte. A jovem observava os casais que rodopiavam no centro do salão. Enquanto isso, sua amiga Ofélia buscava uma bebida. O conde, irmão de Sorte, insistira no argumento de que a presença dela era importante no evento, afinal, a jovem deveria ser vista pela sociedade para que negociassem um bom casamento.

A verdade é que ela não tinha pretensão de casar, mas isso era algo que jamais poderia dizer em alto e bom tom sem ser acusada de negligência com o bom nome da família. E verdade maior era que o irmão não tinha muito interesse em casá-la, entretanto tentava não transparecer.

A dama de companhia de Sorte sentara-se em uma cadeira a um metro e meio de distância. Serena, mas alerta como um gavião. Apreendia todos os pormenores da recepção para repassarem em ocasião posterior.

Sorte sentia inveja das moças que podiam dançar. Infelizmente sua condição não permitia tal proeza. Não que sofresse de alguma doença ou deficiência, mas desde criança era tão azarada que chegava ao nível do desastre. Sempre que se desatinava, desencadeava uma série de acontecimentos ruins, por isso calculava todo e qualquer passo que dava.

A amiga Ofélia a alcançou enquanto segurava dois copos com limonada. Sorte observou brevemente a moça que era uma beldade loura, de pele branca como a porcelana e olhos azuis como o céu. Uma raridade por aquelas cercanias, que chamava muita atenção dos homens casadouros. Aliás, naquele momento mesmo havia pelo menos dois deles olhando para Ofélia, como onças prestes a atacar.

— Sorte! — Ofélia chamou entre dentes pela terceira vez. Já se cansava de manter o copo estendido para a amiga que divagava com o olhar distante.

— Minhas desculpas. — Sorte finalmente entendeu o que ocorria e pegou a bebida, com todo cuidado para não derramar no vestido azul claro de Ofélia. — Agradeço pela limonada.

Ofélia lançou em Sorte um olhar de avaliação que encontrou uma expressão de desilusão mal disfarçada. Tomou um gole de sua limonada e abriu a boca para tecer um comentário sobre fé na felicidade, mas Divino Tancredo se aproximou repentinamente e chamou sua atenção.

— Senhorita Ofélia Weirtz, concede-me a honra de acompanhá-la na próxima contradança? — Solicitou galante.

Divino era alto, de postura ereta e rosto um tanto estreito. Havia harmonia em suas feições, apesar de ser um pouco magro. Um conhecido e notório sabichão que jamais perdia no carteado.
Ofélia lançou um sorriso doce e piscou três vezes em uma sequência rápida.

— Temo não poder atender ao pedido. — Respondeu.

Em um franzir de cenho, Divino mostrou sua indignação com a recusa.

— Como não? Outro cavalheiro ao acaso já lhe solicitou a próxima contradança? — Proferiu as palavras com despeito de quem recebeu a mais terrível das desfeitas.

— Certamente não. — Ofélia respondeu com ar inocente e depois abaixou o volume da voz, mesmo assim Sorte pôde ouvir o que ela disse. — Mas o senhor há de convir que não deva parecer conluiada de alguém que não cumprimentou Vossa Graça.

Só então o homem ergueu os olhos para a figura de Sorte, que observava no mais compenetrado silêncio. Ria internamente da face apatetada e Divino, mas manteve a face impassível, como fora treinada para fazer.

— Perdoe-me, Vossa Graça. — Pediu com humildade forçada. — Sou um tolo.

— Pois não se preocupe senhor Tancredo. Apenas peço que me chame “senhorita”, pois Vossa Graça é o conde de Pedra Negra. Ademais, penso que a senhorita Weirtz deva aceitar o convite para a contradança. — Sorte estimulou a amiga que era solidária demais para deixá-la solitária.

Divino sorriu satisfeito e roçou os lábios na mão de Sorte para demonstrar gratidão. Tão logo a próxima dança começou, levou Ofélia consigo em um ritmo gracioso. No rosto, ostentava um sorriso tão satisfeito que quase chegava às orelhas.

Sorte suspirou desejando um pouco daquela alegria, mas logo o pensamento se dispersou quando viu o conde de Pedra Negra, seu irmão, acompanhado da condessa, Adália. Ambos conversavam com o jovem Sebastião Cintra, um dos pretendentes desejáveis. Sorte já podia imaginar as intenções do irmão.

A jovem ia se perder em mais divagações sobre obrigatoriedades quando, em um repente, uma voz grave sussurrou em seu ouvido:

— Apenas me siga, Vossa Graça. — E sem esperar resposta, o homem que ela não reconheceu, pegou sua mão e a conduziu para junto dos casais que dançavam.

Felizmente Sorte aprendera sozinha a coreografia. Afinal, foi necessário aplicar os passos com urgência enquanto o homem alto de olhos verdes e cabelos negros a conduzia.

— Perdoe minhas maneiras intempestivas, Vossa Graça. — Pediu, sem notá-la, no entanto. O homem fitava algum ponto além de sua cabeça.

Sorte pensou em responder, mas concluiu que tanto fazia. Não sabia que milagre fizera aquele homem conduzi-la até o salão, nem como não tinha tropeçado nos próprios pés e tombado ao chão, mas temia estragar aquele momento sublime caso dissesse uma palavra errada. Por isso preferiu manter o silêncio diante do desconhecido.

Ela só não contava que justamente seu silêncio atrairia para si a atenção do homem alto, que lhe fitou o par de olhos castanhos como se fosse o único ponto no mundo onde pudesse ancorar o próprio olhar. Sem ação diante do contato inédito e inesperado, Sorte sentiu o rosto esquentar. Constrangida, baixou o olhar para o peito largo coberto por tecidos finos.

— Senhorita Olivares, novamente peço que me perdoe. Precisei de uma ocupação urgente e ironicamente todas as moças que conheço estão com outros pares. — Explicou com voz grave e límpida.

— Não há problema senhor... — Ela quase estacou o passo e tropeçou no próprio pé quando percebeu que não sabia quem ele era. Se sabia, não lembrava.

Porém o passo não foi estacado e nem houve tropeço. O homem conduzia tão perfeitamente que dançar com ele se assemelhava a flutuar. Sorte não tinha dificuldade em segui-lo.

— Que grosseiras as minhas maneiras, ainda não nos vimos depois que voltei da Europa. — Ele disse com um tom de humor, como se não acreditasse que mudara tanto ao ponto de uma pessoa não reconhecê-lo. — Sou Azarado José Pierre Álvares e Almeida, marquês de Diamantais.

A jovem engoliu em seco enquanto sentia o próprio coração dar um sobressalto no peito. O homem tinha um título nobiliárquico mais significativo que o do conde. E não era qualquer marquês, tratava-se do poderoso Diamantais.

— P-p-perdoe-me a impertinência, Vossa Graça. Não o reconheci. — Sorte tentou controlar o maxilar trêmulo e falar de maneira polida, mas a vontade que tinha era de correr a esmo e enfiar-se debaixo de uma das mesas do banquete.

O marquês gargalhou e se aproximou um pouco mais para que apenas ela pudesse ouvir o sussurro. Era melhor prevenir, pois as fofoqueiras tinham audição perfeita para tudo que fosse alicerce de um bom boato.

— Quem precisa ser perdoado sou eu, senhorita Sorte Maria Henrieta de Olivares. Arrastei-a sem seu consentimento, como um bruto sem educação. — Desculpou-se.

Sorte sentiu o coração acelerar ainda mais e as palmas das mãos começaram a suar em demasia. Nem mesmo as luvas de renda seriam capazes de disfarçar aquela umidade.

— Sabemos da hierarquia social que nossos títulos nos concedem, esteja certo que não posso ignorar sua posição. — Respondeu tentando olhar nos olhos de Azarado, mas só conseguia focar nos lábios um pouco carnudos. — E não há o que perdoar, foi muita gentileza de sua parte solicitar-me para uma contradança.

Não era o que Sorte realmente pensava, mas era o que deveria ser dito para não causar uma indesejável ofensa.

A dança findou-se sem maiores contratempos. Imediatamente a jovem soltou a mão do marquês, cumprimentou-o e, sem esperar uma resposta, saiu na direção de Ofélia, que estava do outro lado do salão ainda acompanhada de Divino. Com o coração repleto de alegria por, finalmente, depois de vinte e quatro anos de vida, ter dançado em um baile com alguém que não fosse seu irmão Pedro, Sorte não percebeu as dezenas de olhares que estavam cravados sobre sua figura. Também não percebeu que o duque anfitrião dava alguns passos para trás e que consequentemente entraria em seu caminho.

Alguns segundos depois a tragédia anunciada tornou-se realidade vivida. Sorte se deu conta do anfitrião que entrava em seu caminho e tentou desviar, mas do outro lado estava Elaine que recebia uma taça de vinho tinto das mãos do distinto senhor Cunha. Na tentativa de estacar o passo, Sorte tropeçou no próprio pé, inclinou-se em um ângulo estranho e pisou na barra do vestido, tombando ao chão. No processo, empurrou Elaine sem querer, e a mulher derrubou metade do vinho em seu próprio vestido e a outra metade nos trajes de Cunha, que tentou acudi-la. Ao menos conseguiu mantê-la em pé.

Sorte caiu de gatinhas no chão do centro do salão no exato momento em que os músicos começaram a tocar outra música. Um par desavisado girou na direção de Cunha que estava parado no espaço reservado para a dança e esbarrou nele, empurrando-o para frente. O homem se chocou contra Elaine que, surpresa, deixou a taça de cristal cair no chão enquanto seu próprio corpo quedou sobre o de Sorte, que tentava se levantar sozinha, mas estava embaraçada nos tecidos da veste e na anágua que armava a saia do vestido.

Sorte, surpreendida pelo peso inesperado, não conseguiu manter a sustentação e literalmente beijou o chão. Sentia-se tão humilhada e surpresa que automaticamente jurou se trancar na propriedade da família e morrer lá, sem outra vez dar as caras para a sociedade.

Cunha ajudou a irritada e chorosa Elaine a se levantar e o duque anfitrião ofereceu sustentação para Sorte se colocar em pé. Com os olhos marejados, a jovem não resistiu. Quando finalmente se pôs novamente na vertical, correu na direção da primeira saída que enxergou.

Escandalosamente erguia a saia do vestido, para não tropeçar outra vez. O penteado repleto de cachos via-se desfeito e as lágrimas corriam pelo rosto. Só conseguia pensar que tudo que podia dar errado durante a dança, aconteceu depois. Antes, enquanto bailava, não seria culpada pela tragédia, pois todos entenderiam que o par a conduzira mal. Mas depois... Bem, era uma vergonha que teria que carregar.

Que ironia.

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