Feridas incuráveis
Marcel apeou do cavalo, pois o caminho estava escorregadio demais para seguir com o animal, e seguiu a pé. Baltasar amarrou as rédeas dos cavalos em uma árvore e andou seguindo os passos do jovem francês.
Baltasar arrancou o facão da cintura e com um golpe só arrancou a cabeça de uma cobra cascavel que deslizava sorrateira na direção de sorte. O estrangeiro não ficara alarmado porque não conhecia o barulho do guizo na ponta da calda, mas o homem negro que era experiente e tinha sabedoria acerca da fauna local, logo se atentou ao som característico.
Marcel deu um pulo de espanto, mas depois se recompôs e seguiu até Sorte que continuava desacordada. Já escurecia. Precisavam tirar a moça dali.
Quando a puxou da água, os pés e a perna estavam enrugados do tempo passado dentro do córrego. O jovem francês sentou-se no chão, apoiou-a em seu colo e deu batidinhas no rosto da mulher enquanto a chamava pelo nome. Aos poucos Sorte recobrou a consciência.
— É melhor sair desse mato, senhor. Está escurecendo. — Baltasar alertou.
Marcel apoiou Sorte em pé a segurando de um lado e Baltasar a segurou do outro. Não cometeriam o erro de carregá-la no colo porque o lugar estava demasiado escorregadiço.
Depois de alguns minutos saíram no pasto. Baltasar soltou a moça a fim de buscar os cavalos que ficaram para trás e as pernas de Sorte cederam. Marcel tentou segurá-la, mas não foi rápido o suficiente, caiu ajoelhado ao lado dela. Lívida, enlameada, machucada e triste, Sorte olhou no fundo dos olhos dele e começou a chorar.
Marcel a abraçou contra o próprio peito enquanto engolia em seco. Sentia as lágrimas molharem a camisa que usava. Na ânsia de procurá-la, o homem nem se vestira direito. Estava apenas de calça, camisa solta e botas. Queria chorar também, mas segurou. Sorte devolveu o abraço com toda a força que ainda tinha. Tremia de frio devido o tempo na água e nem um casaco ele tinha para cobri-la.
A jovem começou a falar contra o peito dele e foi preciso afastá-la para entender.
— Ele disse para eu confiar. — Disse enquanto chorava, os olhos vermelhos e inchados. — E eu confiei! Confiei de todo o coração!
Sorte deu um tapa débil no peito do francês.
— Eu confiei. — Concluiu decepcionada.
— Sempre haverá outros caminhos, Sorte. — Marcel falou com uma seriedade que era rara de ver em seu rosto. — Sempre.
Ele a segurou forte contra o próprio peito, como só tinha segurado Clementine, e se fez muralha para que ela pudesse desabar.
— Algumas feridas são incuráveis, Marcel. — Sorte respondeu com suas últimas energias. A força minguava aos poucos enquanto ela se entregava aos braços do jovem francês.
— Sim, algumas feridas são incuráveis. Ainda assim haverá outros caminhos. E em alguns deles você aprenderá a conviver com a dor e viverá apesar dela. — Discorreu com seriedade. — Você conseguirá, porque é a própria sorte. E a sorte nunca perde.
A mulher não ouviu as últimas palavras, pois adormeceu.
— A sorte nunca perde. — Marcel repetiu.
Pedro chegou ao mesmo tempo em que Baltasar. O irmão de Sorte encontrara Elegante pelo caminho, em um pasto dos Weirtz, e intuiu para onde a irmã fora. Seu palpite fora certo.
Mal aguentou olhar para a irmã, deitada no capim e aparada por Marcel. Encontrava-se imunda, lacerada, lívida e desacordada.
Com cuidado, Marcel e Baltasar a colocaram sobre o cavalo, junto com Pedro, na frente do corpo dele para que a segurasse entre os braços. Os homens montaram os próprios cavalos. O francês seguiu Pedro para abrir as porteiras e colchetes pelo caminho e Baltasar voltou para levar Elegante até a fazenda.
Assim que Baltasar chegou, encontrou o marquês sentado no estábulo. Francisco sabia que eles voltariam pra aquele lugar, pois estavam com três cavalos da fazenda. Quatro, se incluíssem Elegante.
— Senhor Chico. — O empregado cumprimentou. — Vai pegar friagem.
— Não pegarei Baltasar. — Francisco falou. — Encontraram a moça?
— Encontramos. — Baltasar desceu do cavalo e começou a desarrear o animal. — Está toda machucada, mas viva. O irmão e o francês a levaram.
— Que vergonha. — Francisco colocou as mãos sobre o rosto. — Nada que eu faça vai ser suficiente para me desculpar com ela.
Baltasar tirou o freio do cavalo, depois a sela e o baixeiro de proteção.
— Não é o senhor que deve desculpas, marquês. — Falou. — É o seu filho.
— Olivares não deixará o tolo se aproximar nem que seja para dar a vida, Baltasar. — Francisco falou com o não tão velho amigo. — Reclamei meu título novamente. Deus sabe que eu queria descansar deste fardo, Baltasar. Entretanto, não posso deixar que Azarado suje o bom nome de Diamantais.
— Está certo de que o problema é este, Francisco? — Baltasar ergueu uma sobrancelha. Olhava para o marquês com ambas as mãos apoiadas na cintura.
— Não, Baltasar, não é. O problema é que aquele Weirtz é louco por um título, mas esta não é a questão. O problema é ele ser um verme repugnante. — Francisco desabafou. — Muitos rapazes de bem já fizeram a corte àquela menina, mas os pais não aceitaram o compromisso.
— É sim um homem ambicioso, senhor Francisco. Infelizmente não há o que fazer. — Baltasar concluiu.
— Não, não há. Tudo que podemos fazer é humildemente oferecer nossas desculpas, eu e a marquesa. Enviaremos uma carta junto com os pertences deles que ficaram aqui. — Francisco fez uma pausa e se levantou com alguma dificuldade, apoiando-se na bengala. — Bianca pegou o anel de volta.
Baltasar arregalou os olhos.
— Há anos que a senhora Bianca não usa o anel de noivado. — As palavras saíram com mais perplexidade do que ele imaginara.
— Eu sei Baltasar. Foi até alargado para o dedo de senhorita Sorte, fica frouxo no de Bianca, mas ela se recusa a deixar outra pessoa usar aquela aliança. — Suspirou. — Ai de nós, os pais, que por bem ou por mal carregamos os fardos de nossos filhos.
— Nem me diga senhor marquês.
Francisco fez um curto cumprimento com o chapéu e saiu do estábulo, mais tranquilo porque acharam a moça. Se tivesse desaparecido ou morrido, seria um fantasma que os acompanharia até o túmulo.
Quando Marcel e Pedro chegaram à sede da fazenda, Adália andava de um lado para o outro na área do alpendre. Já anoitecia e a iluminação lá fora era paupérrima. Ela refletiu que o espaço do dia passara sem ser sentido, tamanha a confusão, mas se levantaram já ao meio dia. A condessa sentiu alívio ao ver que Pedro encontrara Sorte, mas ficou agitada quando percebeu o quanto estava ferida.
A mulher sentiu tonturas, porém segurou-se para não desmaiar.
Matilde pediu que preparassem um banho quente e buscou no quintal algumas ervas que ajudariam as feridas a não infeccionar. Marcel desceu do cavalo e foi chamar Tomaz, Feliciano e Cristino para que ajudassem a descer Sorte. A moça começara a ter febre. O clima era de pânico.
Pedro não ficou na fazenda, sabia que podia deixar a irmã aos cuidados de todos ali. Eles sim eram de confiança, pois sempre ajudaram a cuidar dela. E pensar que nenhum fora convidado para o noivado devido uma convenção idiota. Pedro tivera tempo de repensar isso durante a manhã e tinha resolvido dar uma segunda festa na fazenda, para aqueles que não puderam ir.
Confiou neles e foi pessoalmente buscar o médico.
As mulheres da casa precisaram banhar a moça inconsciente, pois ela não acordava nem por milagre.
Quando abria os olhos, murmurava algo sem sentido e voltava a dormir. A febre estava demasiado alta.
Foi chorando que Adália lavou os pés retalhados cujas feridas estavam tão sujas de terra que foi preciso esfregar uma bucha vegetal até que sangrasse. As pernas passaram pelo mesmo processo, mas os cortes não eram tão profundos, exceto nos joelhos. Os cabelos deram trabalho demais para serem penteados, pois havia folhas, lama e nós. As unhas estavam quebradas e foram aparadas em tamanho curto.
Foi necessário trocar a água da tina duas vezes até a moça finalmente ficar limpa.
Vestiram-lhe uma camisola asseada e a cobriram com um lençol. Adália calculou que ela não comia e nem bebia água desde o dia anterior, por isso forçou-a a tomar um copo de água. Marcel, preocupado, pedia informações para qualquer uma que aparecia em seu caminho. Até que Adália o autorizou a subir para visitar Sorte.
Ele entrou no quarto com certo receio. Olhou para Adália abatida e depois para a moça deitada, que murmurava coisas desconexas.
— Preciso voltar e levar os cavalos, madame. Sinto muito por tudo isso. — Falou com seriedade e Adália anuiu com a cabeça. — Se não houver problema, amanhã volto para visitá-la.
— Não há. — Adália respondeu esgotada.
— Quer que eu leve a bota do ex-noivo? — Perguntou solícito.
Adália olhou com estranhamento.
— Que bota? — Questionou.
— Aquela no corredor, madame Olivares. — Explicou.
Vira a bota quando passara até o quarto.
Adália agradeceu por Pedro não estar ali para ouvir aquela revelação. Ele deixara no corredor a bota que fora encontrada no quarto da irmã e ninguém se importara em tirar.
— Pode levar senhor Marcel. — Autorizou.
O homem a cumprimentou e partiu.
Azarado ficou perto da janela do próprio quarto sentado no chão e abraçado às pernas dobradas até ver Marcel chegar com o cavalo que Pedro levara. Chorara durante todo o dia. Não teve forças nem mesmo para tomar um banho. Nada doía mais que o coração. Descobrira da pior maneira possível que era um crápula. Um lixo humano.
Estava devastado. Sentia como se algo tivesse morrido por dentro. Não tinha fome ou sede, apenas vontade de chorar por ter perdido alguém que se tornara, aos poucos, o centro de seu mundo.
Ouviu quando Marcel entrou no corredor e posteriormente no quarto de Clementine. Foi atrás dele para ter notícias. Saiu do quarto como estava. Descalço e com camisolão de dormir. Não costumava usar, mas era a coisa mais fácil de vestir que tinha.
Arrastou-se pelo corredor até o lugar de onde vinha a voz de Marcel. Clementine mostrava-se preocupada com Adália.
—... Ela está bem. Tentando ser forte, mas muito abatida. — Marcel falou.
— Espero que nada ocorra com ela e com o bebê, Marcel.
— Clementine ponderou preocupada. — É arriscado que haja um aborto espontâneo.
— Não vai acontecer, irmã. Não se preocupe. — Marcel a confortou.
— E a moça, como está? — Clementine indagou ao mesmo tempo em que Azarado entrou no quarto.
Ambos olharam para ele com uma espécie de piedade.
— Péssima. — Marcel respondeu e o coração de Azarado parecia apertado entre espinhos. — Completamente machucada e delirante de febre. Encontramos desmaiada com a maior parte do corpo dentro de um córrego.
Felizmente eu a segui quando ela correu e vi para onde ia, o resto do sucesso da busca devemos a Baltasar. E também o fato de dela não ter sido picada por uma serpente, já que ele a matou a tempo.
Clementine cobriu a boca com as mãos. Pensara sim em prejudicar o relacionamento de Sorte e o marquês, mas jamais a deixaria chegar naquele estado. Por isso incentivara o irmão a conquistá-la, queria uma troca. Por mais que o plano fosse desprezível, Marcel era a melhor pessoa que Clementine conhecia. Não seria castigo para moça alguma casar-se com ele, muito pelo contrário, seria um presente.
Porém, tudo afundara. E afundara muito. A francesa se sentia tensa demais com aqueles acontecimentos e rezava para que Sorte Olivares continuasse viva, com saúde, e principalmente, para que Adália não perdesse a criança gerada com tanto amor.
Os ombros de Azarado começaram a sacudir enquanto um choro silencioso caía. Tudo que Marcel disse foi:
— Eu trouxe sua bota. — E apontou para a bota no canto perto da porta.
Azarado olhou e franziu o cenho. Teve vontade de perguntar como Marcel sabia, mas desistiu.
O jovem francês retirou-se do quarto e partiu até a cozinha em busca de comida.
Azarado pegou a bota do chão e Clementine ousou articular algumas palavras.
— Sinto muito por tudo isso. — A mulher falou com seu sotaque carregado.
— Você não sente. Quis nos separar a todo custo. — O homem lançou sobre ela um olhar ensandecido.
— Sim, eu quis. — Ela olhou para o chão, envergonhada. — Mon Dieu*, como eu quis! Não serei hipócrita de negar, Azarado. Porém, eu queria destruir a relação, não as pessoas.
— Essa sua ética ridícula é risível. — Azarado riu amargo.
— É sim. — A mulher admitiu humilde. — Contudo, é a mesma ética que me impediu de deitar na cama de um homem bêbado. Por mais que eu te quisesse, nunca me aproveitei de você inconsciente. E não me aproveitaria mesmo hoje.
— Londres, Clementine...? Você disse...
— Sim, eu disse. — Ela cortou. — E você afirmou categoricamente que não se lembrava. Você estava certo, Azarado. Não há como se lembrar de algo que nunca aconteceu. Feliz de você que confiou na sua memória e na sua integridade. Uma pena que agora não possa confiar mais. E pior, não vai poder confiar em ninguém. Não tem como confiar em outros se não confia em si.
— E se agora eu te quiser como amante? — Perguntou tresloucado.
— Não quero. — Clementine respondeu pronunciando o queixo para cima.
— Porque não tenho mais o maldito título. — Azarado a humilhou.
— Também, me garantiria mais proteção, mas o motivo maior não é este. — Pontuou sem se importar com as palavras cruéis. Clementine era realista, sabia que provocara aquilo.
— E qual é seu “motivo maior”? — Ele debochou com suas palavras àsperas.
Clementine suspirou e colocou uma mão sobre a barriga.
— Acho que estou grávida. E já adianto o filho não é seu. — Revelou.
Azarado arregalou os olhos, espantado.
— Não pode ser verdade. De quem é? — Questionou.
Clementine virou-se de costas para ele antes de responder.
— É melhor você não saber. Apenas imploro que me deixe refugiada aqui até que dê a luz a mon enfant*. — Pediu. — Algumas pessoas querem me matar, não é seguro voltar para a grande civilização.
— Você precisa pedir para o marquês. — Azarado replicou azedo.
O homem pegou a bota, saiu do quarto e foi para o próprio quarto onde se jogou na cama.
Sim, Clementine decidiu que faria aquilo que lhe fora sugerido, assim que confirmasse a gravidez. Preferia implorar de joelhos a abandonar a criança no mundo.
Não queria deixar um filho sem mãe, pois sabia bem a dor de ser órfã e se morresse em mãos de seus adversários, era exatamente o que aconteceria.
Do corredor Ofélia ouvira toda a conversa antes da saída de Marcel. Sentia-se uma cadela sarnenta, detentora de todos os pecados sobre a terra. Voltou para o próprio quarto e começou a chorar outra vez. Seu único consolo era a esperança de uma vida longe dos pais.
Em outra alcova, o senhor Weirtz comemorava a vitória parcial.
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Mon Dieu: Meu Deus.
Mon enfant: Minha criança.
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