Aurora

Azarado abriu os olhos e sentiu arder a retina pela fumaça que preenchia o ambiente. Não sabia onde estava. Enxergou a madeira roliça do teto da construção e começou a tossir. A boca estava amarga, seca, a garganta arranhava estranha.

Tentou se levantar, mas sentiu muita moleza. A vontade de se entregar à penumbra cheia de fumaça era forte, intensa.

Respirou fundo e tentou se levantar outra vez. À base de muita paciência, colocou-se na vertical. Ouviu vozes do lado de fora da construção onde estava. Não entendia aquele idioma que parecia não ter a letra ele.

O aroma inebriante das ervas que eram queimadas em um braseiro no canto da pequena casa de palha fazia com que sentisse a cabeça leve demais. Demorou a ordenar os pensamentos e perceber que o corpo estava tão banhado em suor como se tivesse tomado um banho, o peito via-se nu, usava apenas calças e a barba fora raspada. Quando passou a mão pelo rosto magro, sentiu a pele lisa.

Chegou à entrada da construção, que era fechada por uma cortina de palha trançada, e apoiou a palma da mão na lateral do batente. O braço doeu sob a pressão do gesto e ele viu o machucado onde a seta da zarabatana lhe acertara. Estava roxo, quase preto, e fedia.

Assim que saiu da construção para o ar fresco da manhã, viu Elegante preso em um poste próximo a uma das casas de palha e madeira. O cavalo parecia bem. As crianças trançaram e enfeitaram a crina do animal. Azarado pensou que seu corcel realmente fazia jus ao nome, era de fato muito elegante, principalmente com aquelas penas nos longos pêlos da crina.

Uma mulher, baixa como as outras, de pés desnudos, pele bronzeada, padrões vermelhos pela pele e colares tão numerosos que lhe cobriam os seios, tentou se comunicar com ele. Foi inútil. Ela pensou que aquele homem era de fato um fraco e que não merecia o animal que tinha. Ao mesmo tempo Azarado fazia cara de idiota e tentava compreender o que ocorria.

A mulher se sentiu exausta de tentar conversar com aquele homem alto, porém fraco e de olhos da cor das folhas das árvores. Ela deixou então que um homem centenário de rosto enrugado e olhos perspicazes tentasse se comunicar com Azarado. O homem usava um grande ornamento de penas de araras e tucanos que encimava a cabeça como uma coroa. 

O velho tentou falar com Azarado, mas, vendo que ele não compreendia, resolveu gesticular. Apontou para o próprio peito e falou o próprio nome então apontou para o peito do jovem, para que ele dissesse o nome, porém não teve efeito.

— Não compreendo. — Foi o que o ex-marquês disse.

O homem desistiu de tentar se comunicar, em vez disso, gesticulou para que Azarado o seguisse e andou um passo. Porém o jovem ainda ficou em dúvida. O idoso deu um suspiro impaciente e falou para a filha dele, que estava ali perto, que o estranho era completamente aparvalhado. Como poderiam se comunicar com alguém que não entendia nem os gestos mais simples?

A filha perguntou o que o pai queria fazer e ele explicou. Ela expressou compreensão e olhou para o rosto de Azarado que assistia tudo com a boca meio aberta. A moça suspirou, depois andou até o jovem, pegou a mão dele e o guiou até a entrada de uma construção de onde vinha um cheiro terrível.

A jovem soltou a mão de Azarado e falou para o pai que era preciso lidar com o estranho da mesma forma que lidava com as crianças e o velho balançou a cabeça em negativa.

O senhor indígena entrou na construção, mas Azarado não o seguiu. O homem se viu obrigado a voltar e empurrar o estranho para dentro da construção. O cheiro era insuportável. No centro do lugar, havia um corpo imóvel deitado em uma esteira de madeira. Estava coberto de folhas e os cabelos espalhados pelo chão ao lado da cabeça pareciam sujos de terra.

O idoso chegou perto da pessoa e apontou para o rosto, depois chamou Azarado com a mão para que olhasse também.

Ele se aproximou e fitou.

Sentiu o coração palpitar quando o olhar focou na máscara lívida que era o rosto imóvel. Os olhos fechados, lábios secos, machucados por toda a pele.

Azarado caiu de joelhos e investigou melhor. Chegou a enfiar um dedo no machucado do próprio braço para ter certeza de que não sonhava. Ardeu como o inferno, então certamente ainda estava vivo. O velho sentiu anseio de bater no imbecil quando o viu cutucar a ferida em processo de cura, mas preferiu poupar energia.

O jovem Almeida passou a mão no rosto frio e pálido da pessoa abaixo de si. Colocou o dedo frente o nariz da mulher e confirmou que ela ainda respirava. Começou a chorar com sentimentos confusos enquanto acariciava os cabelos ondulados e castanhos que estavam imundos.

As pessoas jamais saberiam, mas o que realmente aconteceu foi que Sorte fora lançada a alguns metros do local do acidente. Índios que caçavam pelas redondezas passaram por ali logo pela manhã e a encontraram completamente machucada, mas viva. Sem saber que fim dar a ela, os caçadores carregaram-na para a aldeia, onde trataram suas feridas. Era difícil, a carne se deteriorava rápido, mas faziam o que estava ao alcance.

Contudo, ela precisava de uma ajuda melhor.

Quando o homem capturado chegou à aldeia no dia anterior, o chefe teve a ideia de deixá-lo levar a moça para ter ajuda dos iguais, que entendiam de cura para quem tem pele pálida. Era exatamente o que o velho tentava fazer, mas Azarado dava muito trabalho. Naquele momento, por exemplo, começou a chorar desesperado e não havia espaço para tentar uma comunicação.

— Sorte. — Azarado chamou enquanto chorava sobre o rosto lívido. — Acorde.

O homem emoldurou o rosto da moça com ambas as mãos enquanto a via respirar fracamente, imersa em um sono profundo do qual não sairia facilmente.

Azarado viu o velho descobrir o corpo dela, nu, e mostrar as feridas que apesar de tratadas, não davam muitos sinais de melhora. Sorte precisava de um médico, urgentemente. Como carregá-la dali sem fazer com que piorasse era um problema de difícil solução.

Depois de algum tempo pensando, o ex-marquês puxou o senhor até o lado de fora e desenhou no chão a ideia que tivera. Daria trabalho, mas se todos ajudassem, certamente conseguiriam. Pela grande qualidade dos trançados que vira até então, era certo que seriam capazes de executar o projeto.

O velho cacique entendeu o projeto de Azarado e assinalou para ele com gestos positivos. Convocou a todos que estavam na aldeia a fim de ajudar para que o casal fosse despachado o mais rápido possível. Os homens buscariam buriti para tirar a casca e as mulheres fariam o trançado. Azarado ajudou os homens no processo de corte e transporte.

Enquanto o filho trabalhava desesperadamente, colaborando com as pessoas boas a quem devia a vida, Bianca e Francisco juntavam um grupo de hábeis rastreadores que seguiriam no encalço do homem que ainda não retornara. Os empregados da fazenda tinham costume com a busca e com se coordenar dentro das matas, achariam nem que fosse a batida do ex-marquês.
As pernas de Ofélia já estavam doloridas pela cãibra e os joelhos em carne viva da posição na qual passara a noite, mas a moça não desistia da única coisa que podia fazer pelo marido. Estava de mãos atadas, mas a boca ainda podia pronunciar com fervor as palavras da oração.

Mirtes, conduzida por Adelaide, deu bom dia para a irmã e depois foi brincar do outro lado da casa onde ficavam os aposentos das crianças. Havia muitos brinquedos por ali, a maioria de quando Azarado era pequeno, outros, comprados para eventuais visitas. A eles, a pequena juntara os próprios divertimentos, e lá ficava por muito tempo.

A carruagem do conde saiu da fazenda carregando o casal enlutado rumo à vila. Quando chegaram ao lugarejo, foram recebidos pelo padre e por mais algumas dezenas de pessoas tristes que davam os pêsames e prestavam suas últimas homenagens para Sorte.

— Era uma moça tão gentil. — Uma senhora disse para a condessa, cuja cabeça não parava de doer.

— Uma jovem tão bela. Na flor da idade. — Divino Batista suspirou com ares trágicos.

— Lembro-me do sorriso que iluminava a todos nós. — Alguém comentou com outra pessoa logo atrás do conde. — Uma pena que tenha morrido traída.

— Dizem que ela tinha um caso com o francês. — Alguma pessoa sussurrou em meio à multidão.

Pedro tinha vontade de mandar todos para o inferno, mas estava na casa de Deus e não deveria sequer pensar aquilo. No entanto, a amargura do luto não deixava escapar que todos abriam a boca para falar de sua falecida irmã, mas nenhuma daquelas pessoas fora ajudá-lo a escavar a maldita terra onde o corpo da finada poderia estar.

Não.

O único que demonstrara algum sentimento pela falecida Sorte, fora o ex-marquês. E muito se admirava Pedro da ausência e tal figura no funeral da irmã. Logo ele, que movera céus e terra desde quando a conhecera, não estava ali para dar adeus.

Adália parecia passar mal por três pessoas. Estava pálida em demasia, mas seguia firme. Não se deram ao trabalho de fazer um caixão ou comprar um pronto. Quanto ao túmulo, depois arranjariam uma lápide no cemitério da família. Por ora, o que importava e urgia, era o âmbito espiritual.

Foi a missa mais longa da vida de Pedro, se comparava apenas com aquelas nas quais dissera adeus aos pais. Em ambas as ocasiões passadas, Pedro segurara a irmã no colo, por todo o tempo das passagens para que nada ruim lhe acontecesse. E no fundo para que ela soubesse que ele a protegeria.

O homem verteu lágrimas de culpa. Não cuidara da irmã como deveria. Maldito fosse pela ideia de deixá-la independente. Sorte era competente sim, muito. A seriedade com a qual tratara dos negócios e o interesse que tinha neles mostravam que ela estava pronta para a administração dos bens, mas, era azarada. Uma vida entregue às desventuras. Fatalidades, infortúnios, contrariedades e mazelas. Sempre fora cristã e rezara naquela mesma igreja pedindo bênçãos, mas as preces foram atendidas? Por que Sorte não tinha proteção mesmo se ajoelhando por livre e espontânea vontade perante o Senhor?

Pedro sacudiu a cabeça para espantar aqueles pensamentos. Sentiu Adália colocar a mão em seu peito. A mulher chorava como se tivesse perdido um filho. Desconsolada. Era melhor voltar para casa logo, pois a exaustão não faria bem para a grávida.

Doutor Astronildo estava na igreja para dar adeus à moça que fora uma de suas clientes mais frequentes. O casal Olivares dirigiu-se ao médico e pediu que ele fosse até a fazenda.

Uma chuva fina começou a cair.

A velha marquesa montada a cavalo seguia ao lado do marido, frente ao grupo que encabeçavam. Chegaram ao local onde o acidente ocorrera e já era tarde. Puseram-se a investigar em busca de pistas enquanto a chuva engrossava. Estava difícil, até que um dos empregados encontrou uma espora de Azarado.

A partir daí o grupo se embrenhou na mata enquanto a chuva caía forte fazendo estardalhaço contra as folhas.

Pouco antes, os habitantes da aldeia finalizaram o projeto de Azarado. Uma espécie de cesta que ele prenderia em Elegante como se fora um arreio, mas ao invés de ficar em cima do dorso, ficaria na lateral da barriga. Era um grande desgaste para o pobre animal, contudo se não fosse daquela maneira, não conseguiria carregá-la em segurança.

A chuva fina começava a cair quando os locais colocaram Sorte na cesta completamente coberta por grandes folhas, pois estava nua. Azarado fez um gesto sobre o coração na intenção de agradecer. Não sabia que funcionara, pois o homem de cocar mandou um de seus iguais pegar o cabresto do cavalo e guiar o jovem pela mata fechada.

Foi o que o homem fez e sob a chuva que caía, levou Azarado até um caminho próximo da estrada. O ex-marquês não saberia voltar naquela aldeia nem se quisesse. O indígena largou a rédea e apontou um caminho, que Azarado seguiu com cuidado.

O homem estava tão empenhado em salvar a jovem Sorte que se esquecera de procurar pelo restante das roupas. Apenas de calça, sentia a água fria cair em suas costas e deslizar por toda a pele nua. A intensidade da chuva aumentou, o barulho tornou-se mais alto e ficou mais difícil seguir em frente no meio das árvores devido à baixa visibilidade. Apesar dos obstáculos a desistência não era uma opção. A vida de sorte estava única e exclusivamente nas mãos dele e por isso lutaria até a própria morte para dar a ela uma chance de sobreviver.

Perdido em pensamentos nefastos que lhe faziam vincar a testa, Azarado mal pôde acreditar quando avistou um cavaleiro de capa negra entre as árvores. Era um dos empregados da fazenda Almeida que procurava por ele. Baltasar o avistou também e ficou surpreso. Assim que confirmou se tratar do ex-marquês tocou um berrante para chamar os demais membros do grupo de busca.

O longo instrumento feito de chifres, comumente usado para tocar o gado da fazenda, gemeu em uma nota grave e prolongada. Azarado não esperou por ali, continuou seguindo o caminho para fora da mata porque se desistir não era opção, parar também deixou de ser.

Quando emergiu do espaço entre as árvores para o local aberto perto de onde a carruagem acidentara, o jovem Almeida ouviu a voz da mãe.

— Meu Deus! — A mulher tapou a boca com uma mão enquanto com a outra segurava a rédea do cavalo. — Filho!

A mulher chorava, mas era impossível ver as lágrimas debaixo de tanta chuva.

— Mãe, eu a encontrei! — Azarado gritou. — Ela está viva, mas está morrendo!

O pai saiu da mata e se alinhou ao lado do cesto improvisado onde viu Sorte coberta por folhas. O homem arrancou a própria capa e jogou sobre a enferma para protegê-la. Um trovão ribombou no céu que estava escuro, carregado de nuvens pesadas atípicas para a epoca.

— Preciso encontrar o médico! — Azarado dividiu com o pai sua preocupação primeira.

— Venha rápido, mas com cuidado! — Francisco disse com o cabelo colado na testa e água entrando pela boca. — Vá direto para a fazenda dos Olivares! Irei até a vila para chamar Astronildo!

O velho marquês incitou o cavalo a correr e saiu em um galope acelerado. Bianca e os demais acompanharam o filho. O caminho lamacento era difícil para Elegante que estava desequilibrado, os cascos escorregavam na lama.

Com extrema dificuldade Azarado e o grupo de busca se colocaram rumo à fazenda Olivares.

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