3. O Agasalho do vovô
Ocean olhou para o próprio corpo, sua roupa suja e a camisa rasgada. A veia na sua testa começou a pulsar, nervosamente, e quando a saliva passou pelo pomo da garganta, foi bastante audível. Levantou os olhos para a secretária, reparou nas meias com desenhos infantis, e as mãos começaram a tremer sem parar.
— O senhor está bem? — Amelie mostrou-se preocupada com aquelas reações mistas, parecia querer controlar algo sem controlo. Como resposta viu-o dar-lhe costas e começar a andar todo sujo pela rua abaixo. Teve que respirar fundo e buscar todo altruísmo que habitava sua alma. — Não pode andar por aqui assim. Mesmo todo acabado, com essa sua pinta vai chamar atenção.
Sky então parou, de trás, suas costas largas subiam e desciam pela respiração acelerada, parecia entrar em conflito consigo mesmo.
— A esta hora, até nós do bairro dispersamos para as nossas casas. Acho melhor vir comigo, assim pode se lavar e trocar, e chama um dos motoristas. — Sugeriu se aproximando dele, com os chinelos de cor vermelho.
— Ninguém pode saber que estive aqui, entendeu? Ninguém. — Os dentes estavam cerrados quando disse aquilo, e sua voz rouca tinha o poder de levantar qualquer saia. Mas ser mulherengo não era algo que o definisse.
— Mas o que faz aqui? — Repetiu a pergunta, começando a caminhar do lado do chefe.
— Ninguém, também se aplica a senhorita Jones — murmurou um quanto impaciente, as mãos afastadas do corpo para não encostar na própria roupa suja, fazia com que andasse como um robô.
— Se estou ajudando, pelo menos poderia saber. — Estava curiosa como nunca, pois pessoas como Ocean, jamais desciam à Bronx.
— Não lembro de ter pedido sua ajuda. — Mal-humorado como sempre, e Amelie cogitou se aquele homem não andaria com algo enfiado no...!
— Mas parece que aceitou — contrariou. — Mas se não quer falar, não irei insistir.
— Ótimo.
Andaram em silêncio até chegar ao pequeno prédio de dois andares, era do estilo antigo mas estava bem conservado e com a pintura intata. A senhora do segundo andar era uma idosa solitária que muito sabia da vida alheia, e adorava ditar ordens como se fosse a dona do edifício. Exigia tudo sempre bem organizado, e as irmãs Jones não podiam colar nem chiclete na parede que dava barulho.
Entraram no apartamento, e sem os habituais saltos, Amelie se sentiu minúscula diante dele. Trancou a porta.
— Eu ia convidar para sentar, mas não dá não é? — Tentou fazer alguma graça, mas o leve dilatar das narinas perfeitas, fez com que entendesse que aquele era um homem sem humor. Fechou os lábios e levou as mãos ao colarinho para ajuda-lo a abrir os botões da camisa. Ocean segurou a mão dela com força, muito antes de se aproximar do farrapo que vestia.
— Não. Me. Toque! — Soltou a mão feminina devagar, sem olha-la diretamente. E por alguma razão, Jones se sentiu desprezada.
— O quarto de banho é ali.
O leve aceno de cabeça serviu como confirmação, e se virou a caminho de lá quando esbarrou com Bruna pelo caminho. Ela soltou um grito agudo.
— Nossa que mendigo gato é esse, irmã? Posso dar banho nele? — Brincou com um sorriso no rosto. Era muito bonita, com a pele clara, cabelos escuros até aos ombros e um corpo avantajado e cheio de atributos sensuais, visíveis mesmo por baixo daquele pijama comprido.
— É o meu chefe! — Disse a mais velha sem graça, e viu sua irmã saltar do caminho com as faces coradas. Deixou-o entrar no banheiro.
— Amelie, o que vocês estavam fazendo que deixou as roupas dele, todas acabadas desse jeito? — Brincou mais uma vez. — Eu estava dormindo e escutei passos.
— Foi assaltado. — Respirou fundo em resposta. — Não sei o que...
Ocean abriu a porta novamente, parecia indignado com o que ia pedir.
— Tem alguma camisa que me sirva? — Perguntou contrariado.
— Não tem nada, nem aqueles agasalhos do vovô dariam e...
— Os agasalhos do vovô! — Amelie sentiu uma luz acender na sua cabeça.
— Não mana, deixa o homem andar de tronco nu pela casa! — Se empolgou com a ideia, e em seguida soltou uma gargalhada que até o chefe da irmã, arregalou os belos olhos cor de mar.
— Vai lá ao baú encontrar alguma que possa servir ao senhor Sky — pediu com a voz baixa.
— Vou sim. A ver se o senhor Sky me leva até ao céu. — Aceitou e saiu a rir, arrancando um riso da irmã mais velha, pelo trocadilho que fez do nome em inglês e português.
— Desculpe, minha irmã é...
— Não se preocupe. — Os lábios não riam, mas os olhos pela primeira vez pareceram divertidos ao de leve.
— Eu ia dizer divertida. — Concluiu.
Bruna voltou segundos depois com um velho agasalho de lã, era de várias cores e sorriu quando entregou ao homem taciturno.
— Foi o melhor que consegui. Na verdade, ela pegou os gostos únicos de nosso falecido avô. — Brincou mais uma vez e gargalhou sem hesitar.
A mão grande chegou a tremer quando recebeu a peça de roupa.
— Não tem água quente. — Informou Amelie quase sem graça. — Mas posso aquecer na chaleira e...
— Não pretendo tomar banho aqui. — Cortou e voltou a fechar-se dentro do quarto de banho.
As irmãs se entreolharam.
— Que homem, Amelie, que homem.
— Apenas meu chefe, e já deu para perceber que não é nada simpático. — Adiantou antes que a mais nova começasse a ter ideias descabidas.
— Eu ia adorar ter um cunhado desse. Já viu a pinta? — Persistiu nas suas fantasias.
— Bruna, acho melhor parar de ler contos de fadas ao Marlon. Estás sonhando alto — disse, e andou até a sua bolsa para tirar o telefone para chamar um táxi.
— Mana, desde que o Marlon nasceu que nunca mais abriu as pernas. Imagina o monte de teias aí dentro?
— E você que nunca viu a forma de um pau? — Rebateu, e as duas riram sem parar. Fez a chamada explicando com detalhes onde morava.
— Se eu que nunca vi o formato de um pau, tenho sonhos. Imagina você que já experimentou e está há seis anos sem? — Continuou a conversa, tinha os bonitos olhos ensonados, mas queria continuar a fofocar.
Quando Amelie ia responder, viu o homem parado ali a olhar para elas. Agradeceu por ser escura, pois suas bochechas queimaram, e segurou o riso por vê-lo naquele agasalho colorido e nada a ver com os habituais ternos caros.
— Senhor Sky. Chamei um táxi, e tem aqui o dinheiro da corrida. — Tentou parecer séria, e se aproximou para o entregar.
— Eu posso pagar quando chegar a casa — respondeu sem receber as duas notas amarrotadas.
— Se não quer que ninguém saiba de nada, não acha melhor pagar e descer do táxi de uma só vez?
— Eu devolvo o seu dinheiro pela manhã. — Após pensar, aceitou levar.
— Bem, boa noite para o senhor mendigo chefe gato da minha irmã. — Despediu Bruna já a bocejar. Logo cedo tinha que ir trabalhar.
— Boa noite. — Sky respondeu se dirigindo já para a porta, a secretária abriu e o acompanhou até ao carro verde e amarelo que o aguardava. Ele entrou no carro, e respondeu com a cabeça quando ela o despediu. — Senhorita Jones?
— Sim?
— Não pense que por me ter ajudado e ter ficado acordada até tarde, pode chegar atrasada amanhã na GaSky. Entendido? — De dentro do carro, seus cabelos ainda molhados lhe conferiam um charme total.
— Sim senhor.
E o táxi partiu.
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Eram seis da manhã quando entrou na empresa. Amelie não tinha roupas "menos vistosas", por isso procurou por duas peças pretas para as combinar entre si, e calçou um sapato raso cor-de-rosa claro, a combinar com o cachecol. Não estava feliz por isso, mas precisava seguir em frente naquele emprego sem sofrer represálias diárias. Ainda assim, a grande borboleta que trazia presa no seu cabelo, não passava despercebida.
— [...] Foi o senhor Sky que quis assim. Vou ensinar aquilo que a senhora Pistachio não consegue para a sua escolhida. — Ouvia a voz de Malvina a medida em que as portas do elevador deslizavam para os lados, e avistou as duas paradas junto a mesa de secretária. Olharam-na de cima abaixo.
— Bom dia. — Amelie passou reto para o seu lugar e guardou a bolsa no armário.
— Está diferente. — Vera cruzou os braços junto ao peito. — Eu soube o que aconteceu. Não posso permitir que façam isso com você!
— Não é questão de permitir. Esta empresa gera milhões, e imagina uma figura importante aparecer para uma reunião e se deparar com um palhaço na secretária do CEO? — De uma maneira impossível, Rubilout conseguia estar ainda mais bonita, com um vestido até aos joelhos e uns sapatos de salto básico, creme. A confiança era nítida naquela mulher.
— Penso já termos falado sobre isso. Preferia agora que nos focássemos no trabalho — pediu com certo pesar, ao lembrar do vestido laranja que tanto queria usar naquela manhã. Abriu o seu computador, inseriu as senhas e se concentrou no que tinha que fazer antes do diabo chegar. Aliás, mal tinha dormido naquela noite, pensando no que acontecera e no que estava por trás da presença dele em Bronx.
Seis e meia em ponto, o apito do elevador soou e todas mulheres endireitaram a postura. Mesmo com o famoso mau-feitio, a beleza era inegável. Usava um terno de três peças, cinzento e uma gravata azul escura. Parou de frente para as três, com o sobrolho sempre unido, e a barba bem aparada se enquadrava perfeitamente no seu rosto.
— Bom dia — disse sem mexer muito a boca, e dirigiu o olhar da cor do céu e do oceano, para a mais jovem. — Senhorita Jones, na minha sala.
Deu meia volta e usou o cartão para destrancar e entrar. As outras duas olharam para Amelie.
— Não fiz nada. — Levantou as mãos ao ar em sua defesa, e perseguiu o homem esquisito. Ouviu a porta atrás de si se fechar, e assistiu calada enquanto Ocean ligava e arrumava suas coisas.
— Terá de tratar dos meus documentos novos, cartões do banco foram cancelados, então terá que pedir que mandem novos. Agende uma viagem para mim, lhe enviarei um e-mail com os detalhes. — Falava como sempre sem olha-la, e seus olhos corriam a tela a sua frente. Amelie quis saber o que acontecia na vida daquele homem para ser assim. — Sente-se.
Acomodou-se na cadeira ao lado, com as mãos em cima da mesa. Viu os olhos correrem para o seu pulso que tinha um relógio da barbie. Sky suspirou.
— Não sou um homem ingrato. Tenho conhecimento da sua ajuda. — Abriu a pequena carteira de couro. Tirou algumas notas. — Pelo táxi.
— Só lhe dei vinte dólares. — Negou as notas de cem que lhe foram entregues.
— Pois bem, eu queria que pedisse qualquer coisa em forma de aceitar o meu agradecimento. — Os lábios eram finos e bem delineados, e a forma calma e pausada como falava, deixavam-nos mais atraentes.
Amelie franziu o cenho, não iria pedir nada em troca pelo que fez, mas quando Ocean lhe estendeu a sacola, algo lhe veio à mente.
— O agasalho do seu avô. Mandei lavar e está impecável. — Disse.
— Tem uma coisa que poderia fazer e que ia-me deixar satisfeita — murmurou e logo pelo tom de voz, soou a traquinice.
— E o que seria? — A sobrancelha subiu lentamente.
— Bem... Eu queria que usasse o agasalho do vovô, e desse uma volta comigo lá em baixo na receção. — Pressionou os lábios para não rir.
Sky franziu.
— Senhorita Jones, eu tenho muito trabalho para fazer. Não estou para brincadeiras sem hora. — Irritou-se levemente.
— Então tudo bem. Com licença. — Amelie se levantou, e ele apenas destrancou a porta ignorando-a por completo.
Voltou a sua sala, e Malvina já trazia o café, toda empertigada, como se quando tocasse o chão não andasse, desfilasse num chão feito de baunilha.
Durante a manhã as três trabalharam em conjunto, trocando acirradas conversas de acordo com cada experiência. A tensão entre Pistachio e Rubilout era visível, mas a primeira sempre levava de melhor.
— Esse estresse todo é a falta de um namorado, Malvina. O senhor Sky está muito bem com a sua noiva, e não espere o casamento ser anunciado para finalmente desistir de o conquistar. Ripostou a certa altura, esquecendo toda a ética possível.
— Vou fingir que não ouvi isso, e preparar o café para o elegante homem que idolatra uma velha caduca. — Levantou-se alisando a saia do vestido, e olhou para Amelie completamente imparcial concentrada nos seus afazeres. — Venha! É suposto que aprenda como se prepara um café decente.
— Eu sei fazer café. — Afirmou, e viu a bela mulher abrir a boca mas se calou quando a porta da sala do diabo se destrancou e o presidente da GaSky saiu vestido com um agasalho ridículo e com o maxilar rijo.
— Para o que olham? Não tem trabalho? — Vociferou com a habitual respiração acelerada como se acabasse de mergulhar dentro de uma pocilga. — Senhorita Jones, venha comigo.
A estagiária tinha a boca aberta, e se levantou quase petrificada, seguindo-o cheio de pressa para dentro do elevador. As portas se fecharam e os espelhos refletiam um homem completamente diferente do habitual.
— Não acredito que fez isso! — Segurava o riso entre dentes. Ocean a olhou de lado.
— Se eu não fizesse, ficaria em dívida. E eu sou um homem que se importa com agradecimentos. — Estava sério como nunca, e quando chegaram ao térreo, foram alvos de olhares de todos funcionários que ali circulavam, mas em nenhum momento ele vacilou, continuou a andar para frente com o mesmo ar carrancudo. — Espero que aproveite os minutos de piada.
— Se eu dissesse que não estou me divertindo, seria mentira, senhor Sky. — Os olhos escuros por trás dos óculos, estavam molhados por conta dos risos. — Mas tenho uma curiosidade.
— Qual é? — Quando chegaram ao fim, e voltaram em direção ao elevador, os risos já tinham tomado conta do lugar.
— Se sentiria bem em andar assim todos os dias? — Acompanhava os passos apressados dele, sem perder o encalço.
— Óbvio que não! — Nunca na vida tinha visto peça de roupa mais horrível, estava bem longe das suas roupas caras de marca e elegantes.
— Então, é assim como eu me sinto quando sou obrigada a vestir aquilo que não gosto.
Ocean Sky parou de andar, e fixou o olhar na secretária, como raramente o fazia. Engoliu em seco.
— Aquelas suas roupas coloridas lhe fazem sentir bem? — Indagou.
— Para o senhor são apenas roupas coloridas, mas quando eu as visto, me sinto como o senhor se sente nos seus ternos caros. De bem comigo e confiante. — Apontou para o traje que trazia. — Esta, não sou eu.
Os olhos a perscrutaram de cima abaixo, e depois Sky seguiu até ao elevador. Passou o código de segurança, e os dois entraram para o silêncio do ascensor.
— Apenas diminua o tamanho dos saltos. — Decidiu falar quando estavam perto do último andar.
— Obrigada.
As portas se abriram, e os dois saíram.
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