Legacy
Os Flashs das câmeras quase me cegaram.
Eu sentia meu queixo travar por manter por tanto tempo aquele sorriso. Nas primeiras vezes que posei para fotos, foi difícil vencer a caibra que tomou meu maxilar, agora, acostumado com a rotina, tudo que havia era um leve desconforto, mas o tédio daquele primeiro dia, esse sim, era o mesmo todas as vezes que ficava cercado por aquelas máquinas fotográficas.
– Agora, apoie uma das pernas na outra cadeira. – Pediu Harriet, a fotógrafa, apertando mais uma vez o botão da máquina ao me ver fazer a pose que pedira. – Muito bem Dylan, vamos fazer agora uma pausa de dez minutos e depois voltamos, tudo bem?
Eu desfiz o sorriso no meu rosto e massageei minhas bochechas. Aquele trabalho era muito exaustivo.
– As fotos ficaram ótimas. – Nathan jogou uma garrafa de água para mim, que a segurei no ar, não demorando a abrí-la e beber metade em menos de dois minutos.
Nathan Roberts era meu melhor amigo e acompanhante em todos os meus compromissos. Era praticamente meu assistente, pois fazia a função de um. Sabia todas as minhas tarefas, horários e o que deveria fazer em cada uma delas. Coisas que eu honestamente não sabia.
– Quero saber é quando vou poder ir embora. Não aguento mais sorrir. – Confessei, cansado e irritado de ainda estar ali.
– Seu irmão ligou, avisando que seu professor de esgrima desmarcou a aula hoje. Vai ter um tempo livre. – Nathan avisou.
Aquele sim era um motivo para sorrir.
– Está me dizendo que tenho a tarde toda livre?!
– Sim. – Nathan sorriu de volta. – É exatamente isso, mas...
– O quê? Lá vem notícia ruim...
– À noite, temos a festa da Versalle, lembra?
Eu pus minhas mãos no rosto. Merda. Havia me esquecido completamente. Hoje haveria um dos maiores eventos da minha maldita carreira de modelo, assim como para a empresa dos Turner.
– A Lyn. – Nathan assentiu.
– Ela vai receber o prêmio de...
– Pesquisadora do ano, eu sei.
– Dylan, sabe como é importante pra ela que você vá. Ela é sua cunhada.
Era assim. Nathan ADORAVA exercer a função que deveria pertencer a minha consciência, mas já que a matei a muito tempo, era bom ter alguém disposto ao trabalho.
– Beleza. Duas horas, depois vou me divertir. – Suspirei, me dando por vencido.
– Esse é meu garoto! – Nathan falou, não controlando sua felicidade.
Depois de mais duas horas torturantes de sessão de fotos, no quarto, na sala, na piscina, no jardim, na cozinha e de centenas de entrevistas sobre a minha volta a Sydney após anos fora do país, chegou finalmente o final da manhã e pude entrar direto na limusine para casa.
Enquanto observava a praia pelo vidro de trás, Nathan estava sentado ao meu lado, parecendo decepcionado ao usar o celular.
– Com quem está falando? – Perguntei, vendo o loiro girar os olhos como sempre fazia quando estava irritado.
– Mercedes. Parece que meu irmão está fora de novo. – Nathan confessou, nitidamente incomodado.
Acho que esse era um dos motivos que me sentia tão bem junto de Nathan, o que se devia ao fato de nossas vidas serem muito parecidas. Muito novos com muitas responsabilidades, pais que estão muito longe para cuidar de nós como deveriam e irmãos mais velhos que sempre pensam estar certos. Porém, Alek Roberts, irmão de Nathan, assumia quando errava.
Devon Turner assumir que errou? Mais fácil um raio cair na cabeça dele.
– Dylan, ainda não entendi porque quis voltar para Sydney. – That, como era seu apelido, comentou. – Achava que queria ir pra Itália justamente para conseguir ser mais independente.
Eu suspirei. Sabia que uma hora ou outra ele ia me vir com aquele assunto. E ali, dentro de uma limusine no trânsito caótico da Austrália, eu não tinha como fugir daquela conversa.
– Eu só achei que era a hora de voltar pra casa.
Nathan me encarou com aquele olhar de quem sabia que eu estava mentindo.
– Você não está tentando me enganar, está, Turner? – Ele ergueu a sobrancelha. – Lembra que eu estava lá. Estou do seu lado, agora. Pode se abrir comigo?
– Olha, eu falei, se acredita ou não o problema é seu. – Respondi, virando o rosto.
O Roberts apoiou os braços sobre as pernas, sem tirar os olhos de mim.
– Dylan, fala a verdade uma vez na vida, saímos ou fugimos de Milão?
– Eu falei pra você jamais tocar nesse assunto de novo, Roberts. – Lembrei a Nathan que ainda queimava seu olhar em meu rosto.
– Tudo bem, vou engolir essa sua desculpa por enquanto, mas lembre que seu irmão e a Lyn já tem problemas o suficiente, não quer ser mais um quer? – Fiz que não com a cabeça. – Bom. Então, por favor, fica longe de encrenca, tudo bem? Não queremos que o que aconteça em Milão se repita aqui.
Quando a limusine estacionou de frente ao edifício do meu irmão, já passava do meio dia. Nathan desceu antes de mim para pegar a bolsa e quando o vi novamente estava com seus óculos escuros no rosto.
Apertamos para o elevador subir até a cobertura. No momento em que as portas abriram, já estávamos dentro do apartamento do meu irmão.
A cobertura tinha uma enorme janela de vidro, com uma vista perfeita da Sydney Opera House. Um sofá vermelho comprido em forma de L decorava a sala com uma TV LCD premium das versões mais novas, assim como o Xbox one em uma estante de vidro. Uma escada em espiral levava ao andar de cima, e abaixo dela, uma pintura de Devon e Lyn, como aquelas que se via em casas antigas, era exposta para quem cruzasse o corredor.
– Uau. – Nathan assobiou. – Me apaixonei por esse apê.
– Não é como se nunca tivesse estado aqui antes. – Respondi, largando minha mochila em qualquer lugar e me deitando com tudo no sofá.
Bastou meu celular ter o mínimo resquício de internet para que uma chuva de mensagens começassem a chegar, todas de um mesmo remetente.
– Kimberly? – Nathan perguntou, com uma cara de entediado. Eu assenti. – Diz que você morreu e quem está falando são os caras que encontraram seu corpo.
Eu tive de sorrir com a resposta, e realmente pensei em cogitar a ideia.
– Mas ora vejam, quem é vivo sempre aparece. – Uma mulher loira de azuis piscina que eu conhecia muito bem descia as escadas, usando uma bela roupa de grife. – Que saudade, Dyl!
Ela correu e me abraçou, me surpreendi com o gesto, retribuindo instantes depois.
– É bom te ver também, Lyn. – Ela sorriu, virando-se e abraçando Nathan.
– Como foi a sessão de fotos? Você e seu irmão, sempre pondo assuntos do trabalho antes de si mesmos. Sair do avião e já ir para uma sessão de fotos? Isso tem cabimento? – Lyn balançou a cabeça, como se estivesse prestes a dizer "essas crianças de hoje".
– Ele ia ter esgrima também, mas o professor desmarcou. – Nathan contou, sentando-se no sofá. – De novo, eu amo esse apê.
Lyn riu.
– Adoramos te receber também, Nathan. – Ela respondeu. – Maisie, nossa governanta, deve ter preparado algo para os dois, vou ver se já está pronto.
– Lyn... – A chamei. – Cadê o Devon?
– Perth. – Ela respondeu. – Teve uma reunião de emergência e só poderá voltar em duas semanas.
– Mas e a sua premiação? É sua noite de homenagem não é?
– Dyl, eu estou acostumada, fora que, não é a primeira vez que recebo um prêmio. – Ela apontou para a estante onde uma fileira de troféus estava exposta.
– Modesta. – Ralhou That.
Nathan subiu para tomar banho enquanto comecei a explorar o apê. Estava diferente da última vez que vim, Talvez porque Lyn estivesse muito tempo livre e sempre arranjasse uma oportunidade para redecorar.
– Não pode ser... – Estava no andar de cima quando vi meu piano em um dos quartos. Exatamente o mesmo de quando eu ainda era um garotinho.
– Foi difícil, mas eu consegui achar em um leilão de Liverpool. – Lyn estava parada na porta. – Quero muito que se sinta em casa, Dylan. Significa muito para o Devon. E para mim. Não queremos que vá embora de novo. Ficamos mais seguros com você aqui.
– Eu não sei, tenho andado com uns problemas... Não quero incomodar vocês.
Lyn sentou na beirada da cama do quarto e fez sinal para que eu sentasse ao seu lado. Embora relutante, acabei obedecendo.
– Sabe Dyl, quando eu te conheci, estava no Ensino Médio e você tinha a altura do meu joelho. – Eu quase ri. – Mesmo tendo só oito anos, você era o garoto mais inteligente que eu já tinha conhecido. Sabia o que estava havendo comigo e seu irmão muito antes de nós mesmos.
– Como assim?
– Teve um dia que eu e seu irmão fomos te ver na ala das crianças. Jogamos basquete e tudo mais, não deve se lembrar porque era só um garotinho na época. – Ela contou. – Depois de jogarmos, você me disse que seu irmão era apaixonado por mim, e eu neguei, mas no final das contas, você estava certo.
– Sempre estou né? – Brinquei.
– Não vamos exagerar. – Ela respondeu. – O que quero dizer é, não importava a situação, você jamais se deixava abalar. Não quero que deixe de ser assim, nunca, ouviu Dylan? Em tempos difíceis, você era a única razão para que seu irmão levantasse a cabeça e seguisse em frente. Desde aquela época, eram só você e ele contra tudo. Não deixe isso mudar.
Eu assenti. Lyn sorriu, acariciou meus fios negros e me deixou sozinho com meus pensamentos.
Toquei com meus dedos frios na madeira do piano, percebendo o quanto estava conservado. Eu não tocava há anos. Sentei-me de frente a ele e comecei a dedilhar sobre as teclas, ouvindo a melodia que deixava o instrumento.
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Fiquei ali por mais tempo do que já imaginei. Nathan saiu do banho e disse que era a minha vez, pois Lyn já chamava para comermos. Embora não quisesse, tive que deixar meu piano ali e me preparar para comer.
Quando terminei o banho, desci as escadas e vi Lyn no sofá, ninando um bebê que dormia em seus braços. Sorri ao ver aquele pedaço de gente que nem sabia quem eu era ou o que era e já amava tanto.
– Hey, Emeraude. – Cocei o pequeno queixo com meu indicador e ela sorriu pra mim. – O Tio estava morrendo de saudade de você, pequena.
– Ela está meio agitada desde ontem. Nessas horas, só o Devon consegue acalmá-la. – Lyn explicou, ainda ninando-a em seus braços. – Emeraude é muito apegada a ele.
A pequena abriu os braços em minha direção e Lyn entendeu o recado, me obrigando a sentar no sofá e a colocando delicadamente em seus braços.
– Acho que Emeraude também acha você parecido com o Devon, no final de contas.
Fitei aquelas orbes verdes que havia herdado de minha família. Aquele era o marco que provava que Emeraude era uma Turner.
Enquanto Maisie, a governanta baixinha e sorridente, servia a refeição, eu observava Emeraude lentamente cair no sono em meus braços.
– Senhor Dylan. – Maisie me chamou, falando baixinho para não despertar a pequena. – O jantar está servido.
Eu assenti, me movendo o mínimo possível para que minha sobrinha não acordasse. Subi as escadas lentamente e ao chegar em seu quarto, a pus delicadamente no berço.
Na hora que voltei para a mesa, Nathan já repetia.
– Maisie, você arrasa. – O loiro elogiou, servindo-se de mais macarrão. – O que você põe nesse molho?
A governanta sorriu, dando de ombros.
– Receita secreta, senhor Nathan.
Já havia começado a comer quando a campainha tocou freneticamente, ensurdecendo meus tímpanos. Ouvi o choro de Emeraude no andar de cima. Todo o esforço para não acordá-la em vão. Maisie limpou as mãos no avental que usava e correu para abrir a porta.
– DYDY, FINALMENTE TE ENCONTREI AMORZINHO! – A última pessoa que eu queria ver, que torcia para que entendesse meu vácuo como um término entrou sem se apresentar na sala de refeições.
Ela era uma loira magra e esguia, de olhos azuis, assim como Lyn, mas sua antipatia já era percebida na maneira com que andava e apoiava os óculos escuros no alto da cabeça. Usava uma roupa de praia e carregava uma cadeira de sol na mão esquerda.
– Desculpe-me, senhor Dylan, ela já foi entrando e não consegui pará-la. – Maisie se justificou. Senti pena dela.
– Tudo bem, Maisie, obrigado. Pode ir checar se Emeraude está bem? – Pedi e a boa senhora assentiu, correndo para atender minha sobrinha. – O que você quer, Kimberly? Falei para não vir aqui!
– O que poderia fazer, Dydy? Você não responde minhas mensagens!
Kimberly Sparks era a filha de um dos maiores parceiros da Turner em Sydney, o dono da maior emissora de tevê do país, Ferdinand Sparks, além de ser minha namorada. Já tento terminar há meses, mas ela é tão maluca que sempre acha um jeito de desconversar e me manter preso a ela. Maluca.
– Dydy, por que não me avisou que estava de volta? Teria esperado você no aeroporto, amorzinho. – Observei Nathan girar os olhos. Kimberly também. – Vejo que ainda anda com esse traste.
– E eu vejo que ainda é uma mesquinha mal educada. Nada mudou. – Nathan rebateu, e Kimberly se sentiu insultada.
– Dydy, vai deixar esse pobretão falar desse jeito com a sua namorada?! – Ela provocou, e eu tomei um gole de meu suco, querendo ignorar o estresse que aquilo me causaria.
– Kimberly, Nathan é meu amigo, pode tratá-lo bem por favor? E Nathan, seja mais educado com ela também.
Os dois sorriram falsamente um para o outro.
– Estão comendo? Dydy, sabe que não pode exagerar em carboidratos, glúten, protéinas e vitaminas também Evite lactose se puder. – Kimberly avisou.
– Então, o que eu vou comer? – Perguntei, já me estressando. Será possível que nem comer eu podia?
– Água. – Nathan ironizou.
– Até pode, mas não exagere, muitos sais. – Kim acrescentou, respondendo como se achasse que Nathan estava falando sério.
– Kim, olha, eu agradeço a visita e a preocupação, mas será que pode ir embora? Estou um pouco cansado e queria mesmo dormir.
Kimberly cruzou os braços.
– Mas Dydy!
– E eu já pedi MIL vezes para não me chamar assim. – Enfatizei. Maisie surgiu novamente no cômodo. – Maisie, pode levar a senhorita Sparks? Obrigado.
Maisie praticamente arrastou Kimberly para fora e Nathan sorriu.
– Olha, cara, se quiser ir embora de novo, podemos levar a Maisie?
***
Eu me olhava no espelho com aquele terno e gravata. Lembro a primeira vez que vesti um daqueles, ansioso para saber como seria o primeiro evento em que iria como um homem, representando o interesse dos Turner, e agora, não controlava o meu desejo de voltar atrás e fazer tudo diferente.
– Olhe como está lindo, meu pequeno! – Minha mãe sorria, de trás de mim, apenas com sua cabeça aparecendo no espelho. – Já está crescendo, meu Dylan!
Joanne Turner ajeitou a echarpe em seu pescoço e dobrou as pernas para ficar da minha altura.
– Mãe, eu já sou crescido! Sou um homem! – Esbravejei, cansado de ser tratado como criança.
– Ah, perdão... – Joanne riu de mim. – Meu Dylan já não é mais uma criança.
– Eu ainda vou usar isso por muito tempo? É desconfortável. – Eu confessei, afrouxando o nó da gravata.
– Receio que sim, meu amor. – Minha mãe se pôs a arrumar o nó novamente. – Você é um Turner, ainda irá a muitos eventos como o dessa noite. Na ausência de seu pai e do seu irmão, você é o herdeiro da empresa, e deve lutar para manter o império que nossa família construiu.
Joanne olhou o filho com tristeza. Dylan não era um homem. Era apenas uma criança. Porém, ele tinha de pensar ser adulto. As responsabilidades com a empresa tinham de ser pensadas desde cedo. Ela se sentia culpada. Estava roubando a infância do filho. Assim como roubara a de Devon quando tinha aquela idade, e como a do marido também fora roubada na época que Reginald Turner, pai de seus filhos, tinha a idade de seu caçula.
– Não importa o quanto esteja ferido ou magoado, querido. Ou o quanto sinta medo. Os Turner não podem demonstrar nenhum sentimento ruim. Nós somos os Turner. – Joanne repetiu, a mesma lavagem cerebral que fizera em seu primogênito, estava fazendo no caçula.
– Nós somos os Turner.
– Isso meu amor. – Ela sorriu em resposta. – Agora vamos, é hora de irmos.
– Terra para Turner, está aí? – Nathan entrou em meu quarto, vestindo o paletó. – O motorista já está passando. Está pronto?
Eu olhei meu reflexo no espelho uma última vez. Devon não estava. Os investidores sim. Eu era o alvo de suas perguntas e de quem eles iriam querer as respostas. Eu não poderia gaguejar, pensar, ou protelar, apenas responder. Nós somos os Turner.
Ajeitei o nó de minha gravata, da maneira que minha mãe me ensinara. Suspirei fundo e ouvi aquela mentira deslavada que sempre dava deixar os meus lábios:
– Estou.
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