o9| Deixe a neve cair
Em um minuto eu segurava a chave
No outro as paredes estavam fechadas contra mim
E eu descobri, que meus castelos se apoiavam
Sobre pilares de sal e pilares de areia - (Viva La Vida - COLDPLAY)
Beep. Beep. O som irritante do despertador invadiu meus pensamentos e arrancou-me dos sonhos. Ele marcava oito horas da manhã, eu não dormira muito afinal. Senti que algo úmido descia pelo rosto, levei a mão até as bochechas e meus dedos encontraram a boca de Lieff. ÓTIMO. Além de dormir em cima de mim ele também babou em meu rosto. Tentei sair debaixo do seu corpo quente e pesado. Tomei cuidado para não acordá-lo, ainda estava irritada com os joguinhos de ontem. Vesti uma meia-calça térmica preta, depois um short jeans e um casaco vermelho para completar. Hoje seria um belo dia, pelo menos eu queria acreditar que sim.
Não encontrei muitas coisas na geladeira, compras teriam de ser feitas. Verifiquei no armário, também não tinha nada. A ração de Haru estava no fim junto com a massa para assar seus biscoitos. Voltei ao quarto para pegar dinheiro, aproveitando e colocando um gorro na cabeça, nunca se sabe. Os gêmeos ainda dormiam. Indaguei onde estaria a Coisa. Desci as escadas e lá estava ele, sentado no pequeno sofá e observando a neve cair lá fora. Ele estava diferente, seu corpo estava mais forte e parecia um pouco maior. Como se sentisse minha presença, seus olhos encontraram os meus. Senti um aperto no peito, aquilo não era bom. Estar sozinha com ele significava perguntas a serem respondidas.
- Bom dia – balbuciei de má vontade.
- Oi – murmurou, cravando seus olhos frios em mim.
- Vou para a cidade comprar algumas coisas e resolver minha matrícula na faculdade – não entendi porque estava dando satisfações para ele, mas ali estava.
- Faculdade... – repetiu, enrolando a língua. – Posso ir?
- Não – murmurei, tentando não fitá-lo.
- Espere, eu quero ir com você – pediu. – É chato ficar sozinho após tanto tempo.
O modo como ele falava me deixou muito desconfortável. Algo ruim parecia emanar dele. O jeito que arrastava as palavras o fazia parecer com o barulho que as cobras fazem. Aquele cacoete que ele fazia me causava repulsa. Parecia ser falso e sínico. Quando fungava e passava a língua rapidamente sobre os dentes, eu sentia vontade de correr para longe. Lili podia não ter percebido, mas esse cara era ruim, e isso era evidente no modo como olhava para os outros.
- Lili logo vai acordar, e vocês podem conversar a vontade – passei o peso de uma perna para outra, tentando disfarçar o desconforto.
- A luz não me afeta mais, posso ir. Nós temos que conversar Sora.
O modo como pronunciou meu nome me fez ter calafrios. Ele voltou a fazer o cacoete. Não consegui ver outra saída. Assenti em silêncio e fui pegar um dos casacos de Lieff, acho que ele não gostou daquela blusa. Eu não havia caminhado desde que o morto-vivo aparecera, então decidi não pegar o carro.
- Vamos lá. O que houve com aquela outra blusa? – perguntei.
- Nada, ela estava suja – ele pareceu desconfortável com aquela pergunta.
Saímos na gélida ventania da manhã. Olhei para o pálido sol que tentava aparecer entre as grossas nuvens cinzentas. Acima das árvores, vários abutres pairavam sobre a clareira mais próxima, acho que algo estava apodrecendo por ali. Acompanhei o olhar da Coisa, ele olhava na direção dos abutres com o rosto franzido. Talvez estivesse sentindo o cheiro de algo morto como ele. Chegamos até a grande ponte que separava a floresta fria da cidade. Nunca consertaram aquela ponte, pelo menos desde que cheguei aqui.
Ela parecia secular, com grandes lobos esculpidos em pilastras e dragões na outra ponta. Era um pouco assustadora, mas combinava com o local. Em algum lugar da minha mente, já achei tê-las visto em outro lugar. Esbarrei na Coisa quando ele parou de andar, contemplando a ponte velha. Seu olhar transparecia saudade, seus dedos deslizaram pela erva-daninha que crescia em volta do grande lobo cinzento.
- Era o meu lobo – disse. – Se chamava Hélio, o melhor de toda a matilha. Ele sumiu dois dias antes da minha doença. Acho que sabia que algo ruim ia acontecer comigo, os lobos sentem a dor de perder um amigo.
- Eu sinto muito – foi a única coisa que consegui dizer.
- Sente muito pelo o quê? – perguntou. – Por mim ou por você?
Aquela pergunta foi como um soco no estômago. Fiquei enjoada com o rumo da conversa. O tipo de situação que tentei evitar finalmente viera à tona. Olhei para a Coisa, que devolveu o olhar com frieza. Ele sabia que eu estava fugindo, tentando escapar do inevitável. Dei as costas para ele e continuei a caminhar, tinha problemas mais importantes para resolver. Ele apressou o passo e se igualou ao meu lado.
- Não pode fugir sempre, vamos ter que resolver algumas coisas – falou, irritado com minha postura.
- Tudo bem, nós vamos ter essa conversa sim. Mas quando chegarmos em casa. Tenho que resolver a minha matrícula da faculdade – grunhi.
Ele respondeu com um resmungo e continuamos a nossa caminhada até a cidade. Grandes casas de madeira foram surgindo a nossa frente. Com sua arquitetura meio barroca e gótica, Blizzard era um perfeito cenário para o Conde Drácula. Aquele pensamento me fez esboçar um sorriso, que logo se transformou em uma risada. A Coisa me olhou de soslaio, me fazendo rir freneticamente. Grandes nuvens de vapor saiam da minha boca à medida que a risada aumentava. Ele recostou-se a mim e também riu, sem saber o real motivo.
- Não toque em mim! – me afastei rapidamente, espantada com a repentina aproximação.
Ele me lançou um olhar taciturno e voltou a fazer o cacoete. Pensei que iria morrer ali mesmo, mas ele tentou aliviar a tensão tentando sorrir, o que o fez ficar grotesco.
- Do que estamos rindo? – perguntou.
A Coisa ainda me olhava meio carrancudo e continuou exibindo seu sorriso torto, o que o fez ficar com a aparência mais medonha do que já estava antes. Passei a mochila para as costas e foi inevitável não voltar a rir. Apalpei as maçãs do rosto, tentando conter a onda de risos. Depois de todo aquele estresse, acho que eu meio que merecia.
- Agora posso saber o motivo de tanto riso? – perguntou, passando a mão em seus cabelos negros, removendo alguns flocos de neve.
- Você me faz lembrar de um dos maiores personagens da literatura vampiresca – falei.
- E quem seria?
- Um vampiro asqueroso e terrível – falei, me sentindo ótima por xingá-lo indiretamente.
Ele me lançou um olhar fulminante. Continuamos a nossa caminhada até a cidade em silêncio. Retirei meu mp3 do casaco e pus os fones. A Coisa olhava para o aparelho com curiosidade, ele devia se sentir perdido com tudo. Apertei o play e deixei a música rolar. Olhei para a Coisa e vi que ele tentava me falar algo.
- O que? – perguntei, retirando os fones.
- O que é isso nos seus ouvidos, e o que você está segurando? – indagou, apontando para o mp3 surrado.
- Ah, isso é um aparelho que serve para escutar músicas, e isso – apontei para os fones. – Serve para não incomodar ninguém, sabe, você escuta a música só para você.
- Ah, você está me dizendo que várias vozes estão ai dentro?
- É tipo isso – resmunguei, ele teria que aprender bastante se quisesse sobreviver nos dias de hoje. – Vem aqui – o puxei para mais perto e ele se surpreendeu com meu repentino toque.
Retirei um de meus fones e o encaixei em sua orelha. Ele arregalou os olhos e sorriu. Senti que um novo ataque de risos estava vindo, mas contive. Deixei que desfrutasse aquele momento. Ele me olhou serenamente e perguntou se havia outras músicas, assenti e mudei para a música Viva La Vida, do Codplay. Ele gostou dessa, porque me pediu para repeti-la. E assim foi o resto de nossa caminhada até a cidade. Quando chegamos, guardei o mp3 junto com os fones e me dirigi até a cafeteria mais próxima, com a Coisa em meu encalço.
Empurrei a pequena porta de vidro, nela tinha um adesivo redondo com uma garota bonita segurando um copo de café quente. O melhor café quente vinha dali, o ambiente era sempre bem aquecido. A Coisa me viu retirar o casaco e também começou a remover o seu. Andei rapidamente até ele e segurei suas mãos, que já haviam desabotoado o terceiro botão.
- Ai! – guinchei, levei um choque pelo contato.
- Tudo bem com você? – perguntou, me varrendo com seu olhar esquisito.
- Sim, deve ter sido um pequeno choque térmico. Não retire seu casaco, você não está vestindo nada por baixo – falei, rindo do inusitado.
- Ah, certo – fez o cacoete.
- Vamos nos sentar ali – tentei desviar minha atenção de seu cacoete e apontei para a mesa dos fundos. – Ali vamos ter uma visão privilegiada da cidade.
Quando sentamos, esperei um tempinho. O café estava meio lotado, mas valia a pena esperar. A neve começava a cair com mais frequência, dificultando os transeuntes. Observei a Coisa tentar entender o que estava escrito no cardápio, quando Tris veio nos atender.
- Olá Sora, quanto tempo – falou, abrindo um sorriso. – Tudo bem com você?
- Tudo ótimo, eu acho... – a Coisa começou a chiar como uma cobra enquanto tentava entender aquelas palavras. – Como vão as coisas por aqui? – indaguei, tentando desviar a atenção de Tris para mim.
- Por aqui tudo bem – ele olhava desconfiado para a Coisa, que começou a fungar também, aquele maldito cacoete estava me tirando do sério. – Droga de neve, será que algum dia vamos nos livrar dela? – sorriu. – Olá, me chamo Tris, é novo por aqui?
Prendi a respiração quando Tris se apresentou para a Coisa, que ergueu o rosto e voltou a exibir seu sorriso medonho.
- Olá, sou Nero. Já moro aqui faz muito tempo...
- Acho que vou querer um café expresso – interrompi, para que ele não falasse mais do que devia. – E você, vai querer algo?
Ele me olhou de forma esquisita, e passou a língua bem devagar sobre os dentes.
- Já me alimentei – sorriu, e eu soube que estava me jogando uma indireta.
- Pode trazer somente o meu café Tris, obrigado – murmurei, fixando o olhar na Coisa.
- Está tudo bem Sora? – acho que ele percebeu a tensão, assenti em silêncio. –Tudo bem, volto em cinco minutos – disse, saindo desconfiado.
- Você não pode sair mostrando esses dentes para as pessoas – repreendi.
- Por que não? Não vejo nada de errado.
- Só não mostre – resmunguei.
Depois do café, fomos ao prédio da faculdade. Uma placa que dizia "FECHADO ATÉ O FIM DAS NEVASCAS" estava fixado no portão. Fiquei muito irritada, odiava essas nevascas, elas atrasavam toda a cidade. Decidi ir ao supermercado e comprar comida o suficiente para dois meses, caso ele também resolvesse fechar. O Supermarket estava funcionando para meu alívio. Comprei três pacotes de ração gigantes para Haru, que comia mais do que qualquer um.
Decidi deixar a Coisa na sessão de limpeza e ir comprar carne sozinha, temia que ele visse sangue e atacasse alguém. Após as compras, nos dirigimos para casa. A neve agora estava mais intensa do que nunca, o que me fez me arrepender de não ter trazido o carro. As compras ficaram no supermercado, desejei que elas fossem entregues ainda hoje. O celular vibrou dentro do meu bolso, visualizei vinte chamadas perdidas de Lili, me senti oficialmente ferrada. Caminhamos com dificuldade por conta do vento forte, algumas pessoas que passavam por nós paravam apenas para admirar a Coisa, ele definitivamente não era uma pessoa de aparência comum.
Quando nos aproximamos de casa, vi Lieff sentado no sofá. Ele lia seu livro favorito, O Mar. Desejei avidamente uma massagem nos pés, eles estavam congelando. Lili passou por Lieff e tapeou seu livro, que foi parar diretamente no chão. Ela estava reclamando de algo, porque suas pequenas orelhas estavam vermelhas. Ela apontou em minha direção e Li acompanhou com o olhar, erguendo-se do sofá. Abri a porta e me preparei para uma enxurrada de perguntas que viriam dos gêmeos
- O que você pensa que fez Sora? – berrou Lili. – Você não pode sair assim com Nero!
Desabotoei o casaco e o joguei no sofá, lançando um olhar tranquilo para os gêmeos.
- Relaxa Lili – suspirei, ignorando os protestos. – Deixe a neve cair.
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