o4| Feito de cinzas

     Tudo aconteceu rápido demais. Desde a morte de minha família a mudança dos gêmeos para minha casa e infelizmente, a aparição de um lunático no buraco do banheiro. 

     Isso pode soar estranho, mas alguém invadiu minha casa e de alguma forma conseguiu se enfiar debaixo dela. Agora esse alguém estava deitado no chão, inconsciente. Sua pele era extremamente pálida como a de Lieff e as unhas estavam grandes e escuras.

     Eu precisava me livrar daquele cara antes que os gêmeos viessem, mas ele era bem maior do que eu, o que o faria levar vantagem sobre mim caso houvesse alguma luta corporal. Fiquei próxima dele, estiquei a perna até conseguir toca-lo com o pé. 

     Hesitante, o chutei de leve para ver se realmente estava dormindo, ou morto. Ele não reagiu, o que me fez sentir mais aliviada e até mesmo um pouco apavorada caso ele estivesse morto.

     Pus a adaga no bolso. Eu a encontrei debaixo de um pedaço de madeira solta no chão do meu quarto. Era bem afiada e tinha um dragão e um lobo gravados em ouro, eu acho. 

     Quando me aproximei um pouco mais, vi que ele realmente tinha presas grandes, seus dentes muito brancos. Toquei sua pele, estava gelada. Ele não tinha pulso. Entrei em pânico, embora fosse um estranho invasor, não queria ninguém morto na casa, já bastava de tantas mortes.

     Corri até o quarto, quase caindo da escada ao encontrar Haru prostrado diante do sétimo degrau, me obrigando a desvia-lo. Peguei o telefone e disquei para Li, que atendeu no terceiro toque.

     — Alô? — seu tom de dúvida me fez lembrar que eu ainda não havia lhe dado meu novo número.

     — Li, sou eu, Sora. Preciso que venha aqui, é urgente! — guinchei.

     — Aconteceu alguma coisa com você? Já estou preocupado.

     — Não comigo, mas um estranho tentou invadir minha casa pelo buraco do banheiro!

     — O que? Ele ainda está ai?

     — Sim, mas está desmaiado, acho que está morto.

     —Chego aí em cinco minutos, não se aproxime desse cara Sora – seu tom de voz exibia uma ordem, e não um pedido. Murmurei algo como um sim e desliguei.

     Voltei para a sala e esperei por Lieff. Já havia se passado seis minutos e minha curiosidade não se segurava mais do que isso. Voltei para o banheiro, o estranho continuava inconsciente. Sua pele começava a apresentar traços de queimaduras. 

     Notei que pequenos conjuntos de fumaça se formavam no ar enquanto sua pele se tornava escura e virava cinzas.

     Sufoquei um grito com a mão, aquilo era extremamente surreal. Após examinar mais um pouco a estranha combinação que a fumaça e as cinzas faziam, tentei buscar uma explicação lógica para aquilo. 

     Não consegui entender o que estava acontecendo, não havia fogo, nem gases tóxicos, somente a luz.

     A luz!

     Desliguei imediatamente o interruptor e logo o cheiro de fumaça se extinguiu. Dei um passo para trás, aquela escuridão não era bem vinda quando se tinha algo muito esquisito acontecendo.

     Andei mais uma vez para trás e senti fortes braços me puxando para fora do banheiro, imediatamente comecei a me debater e gritar. Agarrei com toda força os braços que me prendiam e suspendi o peso, indo parar diretamente no chão junto com o agressor. 

     Rolei para o lado levando o braço do estranho comigo, imobilizando-o e chutando suas costelas. Ouvi um forte grito e para meu desespero percebi que era Lieff, agora estendido no chão, apoiando as mãos onde levara o chute e murmurando algo como droga. .

     — Mas que droga Li, você me deu um baita susto! — falei, ainda arfando por conta do combate.

     — E você acabou de me dar uma baita surra –—gemeu.

     — Desculpa, mesmo. Pensei que fosse alguém tentando me atacar. Vem, você precisa ver o que tem no banheiro – ele se ergueu e me acompanhou.

     O corpo do garoto ainda estava inerte, mas sua pele voltou ao normal em apenas alguns segundos. Fiquei boquiaberta ao perceber que Lieff já se aproximava do corpo e o estava examinando. Andei com calma e me abaixei ao lado de Li, seu rosto carregava uma expressão séria e decidida.

     — Ele parece um zumbi, não sei, acho melhor chamar a polícia.

     — Nem pensar. Não quero aqueles guardas brutamontes rondando a minha casa por mais tempo do que já ficaram. Desde o acidente eles não pararam de me fazer perguntas, cansei disso.

     — Tudo bem, mas temos que nos livrar desse corpo, ou não. Ele não me parece morto, isso está muito esquisito. Não tem pulso — Li pressionava seus dedos no pulso do estranho e aproximou o dedo do nariz dele. — Também não está respirando.

     — Então ele só pode estar morto! Isso não tem explicação, agora a pouco ele estava praticamente entrando em combustão!

     Lieff me olhou com descrença, ele não havia visto um cara sair debaixo da casa e logo em seguida cair morto no chão e quase virar um monte de cinzas. Sai do banheiro e segui para a cozinha. Abri a geladeira e bebi um grande gole de água gelada. 

     Pensei por alguns instantes e tentei encontrar alguma saída para essa situação. O garoto não tentou me fazer mal, mas sua presença repentina me deixou em alerta. 

     Tentei recapitular os momentos do nosso pequeno diálogo. Não consegui encontrar nexo entre aquela conversa, até porque eu havia gritado mais do que conversado.Não sabia como reagir. Estava me sentindo perdida. 

     Não poderia chamar a polícia para resolver tudo, aqueles tiras não deram um segundo de paz. Pensei no que ele disse sobre ser príncipe, ri comigo mesma, provavelmente era apenas um lunático. 

     Pus o copo na pia e virei para voltar ao banheiro quando percebi que Lieff estava ao meu lado, ele estava com o olhar vago e a postura relaxada. Ficamos quietos por alguns instantes e resolvi romper o silêncio, ficando de frente para ele.

     — Ok. Não vamos chamar a polícia e isso fica só entre nós. Prometa Lieff — murmurei, quase suplicando.

     — Sabe que pode contar comigo, Sora Bloom.

     Ele me puxou para mais perto. Nosso rosto estava a poucos centímetros de distância, e o hálito dele se mesclava ao meu em uma nuvem de vapor que se afastava de nós. Seu olhar era intenso junto ao meu. 

     Seu sorriso sutil e discreto fez aparecer sua pequena covinha logo abaixo do lábio inferior. Meu rosto esquentou quando ele passou seu braço por minha cintura e fez com que nossos corpos ficassem colados. 

     Erguendo o braço, ele passou a mão em minha cabeça, empurrando-a para frente. Tive certeza que estava escarlate, então baixei a cabeça no último instante e me acomodei em seu peito.

     — Já sei do que precisamos para resolver esse problema — disse, sentindo que seu coração estava acelerado, era possível ouvir as batidas.

     — E do que precisamos? — perguntou, dando um pequeno beijo em minha cabeça.

     — Precisamos... — sai de seu aperto e voltei a encará-lo. — Precisamos de Lili.

     — Alô? — a voz de Lili estava arrastada por conta das horas de sono.

     — Ei maninha, precisamos que você venha até a casa de Sora, é urgente.

     — Pensei que só íamos às seis — resmungou.

     — Mudança de planos, tem algo estranho acontecendo aqui.

     — Algo estranho? — Lili riu ao telefone. — Não seria você tentando dar uns amassos na Sora não é? Já que...

— AHH, HÃ RAM! LILI! — Lieff ficou de costas para mim e se afastou. — Venha aqui agora e traga nossas coisas no carro, não deixe que mamãe e papai a veja saindo ok? Ela desligou, está vindo.

     Li estava vermelho como um pimentão, Lili tinha um talento extraordinário para colocar seu irmão em situações constrangedoras.

     — O que te deixa tão vermelho Li? — indaguei, quase não conseguindo segurar a risada.

     — O que? Nada! Acho que deve ser o calor — guinchou.

     — Ah, sei — desdenhei.

     Alguns minutos se passaram desde a última ligação feita para Lili. Após trancar a porta e me certificar de que o estranho não fugiria, fomos sentar no pequeno sofá vermelho, onde Li fazia uma deliciosa massagem em meus ombros. 

     Suas mãos eram perfeitas para eliminar tensões, girei o pescoço para que ele pudesse massageá-lo também. Sem que precisasse falar, ele entendeu o que eu queria. Li roçou seu dedo em meu pescoço e tive calafrios até a ponta dos dedos. Depois envolveu meus ombros com suas mãos e começou a massageá-los, alternando entre o pescoço.

     Sem que eu percebesse, ele desceu o casaco, me deixando apenas com minha camiseta preta de caxemira. Imediatamente fiquei tensa, como se percebesse o que eu pretendia, ele passou suas longas pernas em volta de mim, impossibilitando qualquer fuga. 

     Pude sentir o calor que o corpo dele emanava atrás de mim, seu coração batia em um ritmo descompassado com o meu. Deixei que ele continuasse com a massagem, querendo acreditar que aquilo era apenas carinho amigo.

     Li enrolou meu cabelo com a mão direita e o passou para o lado. Ainda sem soltá-lo, puxou um pouco minha cabeça para trás, para que minhas costas ficasse colada em seu peito. 

     Um forte calafrio me trespassou quando ele beijou de leve meu ombro, fazendo uma trilha de beijos até o pescoço. Por um momento me deixei relaxar, fechei os olhos e deixei que aqueles braços fortes envolvessem minha cintura, me puxando para mais perto.

     Ouvimos algo se aproximando, um som arrastado de pneus de carro. Só poderia ser uma pessoa, Lili. Puxei meu corpo para frente, tentando me livrar dos braços e pernas de Lieff. Agarrei a coberta do sofá e fiz força para frente. 

     Ele ainda mantinha seu rosto enterrado em meu pescoço, aproveitando cada segundo que tinha, porque obviamente eu não o deixaria fazer aquilo novamente. Ouvi a batida da porta do carro e passos ficando mais próximos. 

     Empurrei Li para trás e grunhi para que ele me soltasse. Quando a maçaneta da porta girou, ele me soltou rapidamente e pulei para frente, ainda arfando por conta do abraço.

     Tarde demais, Lili estava nos observando com uma de suas sobrancelhas arqueadas e uma cara de desgosto. Ela trajava uma calça preta de couro e coturnos. 

     Olhei para Li, que já estava vermelho escarlate. Lili começou a soltar uma de suas risadas que nos dizia eu sei o que vocês estavam fazendo, e aquilo me deixou ainda mais constrangida.

     — Nossa, que nojo — disse, ainda entre risos. — Acho que algo sexual estava rolando por aqui.

     — Não fale besteira! – repreendeu Lieff. — A gente só estava te esperando.

     — Hum, sei. Vocês dizem que algo estranho está acontecendo por aqui, mas a única coisa estranha que vejo são vocês dois transando telepaticamente.

     — LILI! — Li e eu falamos em uníssono.

     — Tudo bem, não precisa de tanto alarde — bufou ela, levantando as mãos para cima como forma de protesto.

     Lieff pulou do sofá e ajudou a irmã com uma de suas malas de mudança. Sua expressão era de total constrangimento, assim como a minha. Andei até o corredor e certifiquei de que a porta do banheiro estava fechada. 

     Tudo tranquilo. Ajudei os gêmeos a tirar toda sua bagagem do carro e transportá-las até o espaço vazio no andar de cima onde costumava ser o quarto de Kalinne. Quando terminamos de transportar tudo, nos sentamos em minha cama e contei tudo para Lili. 

     Ela me surpreendeu ao fazer diversas perguntas e demonstrou muita apreensão. Mais esquisito do que o intruso, era ver que Lili estava muito ansiosa para vê-lo. Antes que ela pudesse adentrar no banheiro, segurei seu braço e fiz algumas advertências.

     — Esperem — falei para eles. — É melhor pegar alguma coisa para nos defender, ele pode estar acordado.

     Fui até cozinha e peguei uma machadinha. No fundo, desejava que aquela coisa estivesse realmente morta. Quando Lieff girou a maçaneta e a porta abriu, vimos que ele ainda jazia inerte no chão, para meu alívio. 

     Lili foi a primeira a entrar no aposento e ligar a luz, ela estava boquiaberta com o que via. Foi até o corpo e o tocou. Achei que estivesse enganada, mas pude vê-la sorrir discretamente.

     — Humm, Lili, tem alguma ideia do que podemos fazer com isso? — perguntei.

     — Sim, primeiro temos que tirar ele daqui, e segundo, temos que preparar um quarto. Descobrirei como ele veio parar aqui e porque. Ele é sensível a luz, você disse — assenti. — Então vamos preparar um quarto escuro.

     Depois de vasculhar todo o baú de panos velhos, encontrei um que fosse suficientemente grande para encobrir a coisa

     O pequeno quarto ao lado do que seria reservado para os gêmeos era o mais afastado do sol, então pegamos as grossas cortinas do sótão e pregamos nas janelas. Mesmo com as cortinas, era possível distinguir claramente nossos rostos. 

     Transportamos o estranho até o quarto e o colocamos na cama. Lili pegou fortes cordas e as prendeu nos pulsos dele, formando fortes nós e os amarrando na cama.

     Estava tudo pronto, agora nos restava apenas esperar. Ajudei os gêmeos a desfazer as malas e organizar o quarto. Retirei todas as coisas de Kalinne e as movi para o sótão. 

     A cada objeto que pegava me transportava para milhões de lembranças dolorosas e minha visão começava a embargar. Mordi o lábio inferior, não queria que ninguém me visse chorar, nem meus melhores amigos. 

     Tentei ao máximo evitar entrar naquele quarto porque sabia o efeito que ele causaria. Depois da morte de Kalinne, não reuni forças para entrar lá novamente.

     Após esvaziar todo o quarto, tiramos a poeira e limpamos o chão. Como não havia móveis no aposento, pegamos alguns no quarto dos meus pais. Estava tudo pronto, estava feliz em ter companhia novamente, mesmo que isso significasse menos privacidade. 

     Ficamos exaustos, mas isso não impediu que Lili nos obrigasse a descer e limpar toda a varanda. Aquilo levou quase duas horas, mas a vista compensou todo o esforço. O assoalho agora estava brilhando, os vasos estavam todos vazios e as plantas mortas e secas foram removidas.

     — Não aguento mais, vou tomar um banho e capotar na cama — gemi.

     — Nada disso Sora. Como podemos dormir quando se tem um estranho desacordado em casa? Não quero sofrer um ataque no meio da noite. Aquele cara deve ter força o suficiente para desfazer aqueles nós com um só movimento — protestou Lili.

     — Você tem razão, mas estamos todos cansados. A não ser que a gente reserve. Podemos fazer uma vigília — sugeriu Lieff.

     — Boa ideia cabeça de vento. Quem se habilita? – ela desdenhou.

     — Bem, eu posso ficar no primeiro turno. Tenho que enviar alguns e-mails para Dandy — resmunguei entre bocejos.

     — Quem é Dandy? — perguntou Lieff, franzindo o cenho.

     — Ah, é um amigo de longa data.

     Ele grunhiu algo como resposta e se dirigiu para a cozinha, pisando forte como uma criança birrenta. Olhei para Lili que nos observava com certo interesse e tinha um sorriso maldoso nos lábios, me senti tola ao deixar que ela me desconcertasse daquele jeito.

     — E então? Vocês já podem ir dormir, eu fico de olho no nosso hóspede — tentei desviar sua atenção de mim.

     — Eu não quero o Lieff no meu quarto — falou despreocupadamente, já subindo a escada e parando apenas para me ver protestar.

     — O que? Vocês são irmãos, onde ele vai dormir? — guinchei, já sabendo sua resposta.

     — No seu é claro. Em toda minha vida nunca dividi o quarto com ninguém, então não será agora que eu vou querer. Ainda mais com um cascão como o meu irmão, prefiro o carinha estranho ali — disse ela, apontando para cima. — Bem, boa noite pra vocês — com um sorriso maldoso, ela voltou a subir as escadas com a postura de alguém triunfante.

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