o3| Luz para os mortos
Após sair daquele fétido caixão onde meu corpo não conseguira descansar em paz durante esses anos, caminhei até a pequena passagem que lembrava claramente como a entrada das masmorras.
Ouvi algo acima de mim, sons arrastados de passos, e algo como os trovões de uma tempestade de verão. Minha visão estava bem adaptada à escuridão. Consegui ver claramente os túmulos de meus ancestrais, mas nenhum deles havia despertado. O que estava acontecendo comigo?
Os guardas não estavam prostrados aos portões da cripta. Cambaleei até conseguir avistar algo brilhante e metalizado onde costumava ser o portão, mas ele não estava mais ali.
Tateei a pequena parede de concreto onde estava o metal, era frio e algo parecia escorrer por dentro deles. Tudo aquilo já estava ficando bastante estranho para mim, onde estavam todas as pessoas? Nem mesmo conseguia ouvir os gritos de apelo dos prisioneiros nas masmorras ao lado.
Por um momento senti fraqueza, depois fome, muita fome. Tentei fazer força para empurrar a parede, em vão, estava debilitado. Mais uma vez ouvi sons acima de mim, alguém viria ao meu encontro? Andei até o caixão agora destruído por meus esforços para tentar sair.
Olhei em volta e vi algumas tumbas que não recordava de tê-las visto antes de adoecer e morrer. Hesitante, andei ao que me pareciam ser três tumbas grandes e imponentes.
Ao me deparar com a maior delas, passei a mão levemente na pequena placa de metal acima de uma coroa esculpida em pedra. Temendo ver o que já sabia que viria a seguir, hesitei um pouco, e se fosse apenas alguma brincadeira?
Aquele tipo de tumba era esculpido somente após a morte de um rei. Ao retirar a mão vi o que estava escrito e não quis acreditar.
Ruccorn Lancaster, primeiro de seu nome, rei de Blizzard.
Ao lado estavam mais duas pequenas tumbas, me abaixei para ver o que havia escrito nelas e fui atingido por mais uma onda de dor e incompreensão.
Lyanna Amélia Ális Lancaster. Terceira de seu nome, princesa de Blizzard.
Olívia Alina Lancaster. Primeira de seu nome, rainha de Blizzard.
Todos estavam mortos, todos. Ao observar as datas e ver que eles haviam tido uma vida longa e próspera, fiquei ainda mais abalado.
Não consegui entender nada daquilo, quanto tempo havia se passado desde a minha doença? E por que apenas eu despertei? Seriam obras das bruxas que haviam sido aprisionadas por meu pai?
Novamente o som arrastado me trouxe de volta a realidade. Captei o calor de um corpo quente não muito longe. Um leve cheiro metalizado passou por minhas narinas, desejei sangue. Fiquei enojado ao pensar aquilo, como poderia desejar uma coisa daquelas?
Como se meu corpo correspondesse com o desejo, uma forte dor em meus dentes me fez levar a mão a boca. Pigarrei quando furei os dedos nas presas que haviam crescido bastante nos últimos instantes.
Minhas unhas estavam grandes e pretas, meus cabelos negros caiam abaixo da orelha e me senti um pouco mais alto do que era. Foquei em como conseguiria sair daquele lugar.
Procurei por alguma parede que cedesse fácil ao toque, mas todas pareciam não ter envelhecido com o tempo e continuavam imponentes. Ao andar mais um pouco pela cripta envelhecida, percebi que algo brilhava no teto não muito alto.
Fiquei perto o suficiente do pequeno buraco e a claridade fez meus olhos arderem, aquilo não era bom. No começo, achei que fosse porque passei tempo demais na escuridão, mas a luz não afetava somente meus olhos. Também fazia minha pele arder levemente. ]
Alguém estava se aproximando. Era calor humano, podia sentir isso, logo bem próximo de mim. Esperei um pouco para ver o que viria em seguida, nada. Depois de alguns momentos ouvi água escorrer acima, e logo depois começar a cair pelo buraco onde pretendia sair.
"Droga! Não sei como vou consertar isso, vai ser o jeito chamar um encanador, ainda mais com mais duas pessoas vindo morar aqui, esse buraco tem de ser fechado hoje".
A voz de uma menina reverberou pelo local. O som abafado de algo caindo no chão me arrancou dos devaneios. Não havia entendido muito bem o que ela teria dito, mas aquela era a única oportunidade de sair dali.
— Me ajude! — gritei, minha voz saiu um pouco rouca e arrastada por conta do desuso.
"AI MEU DEUS! QUEM ESTÁ AI?"
Ouvi a menina gritar, era evidente o medo em sua voz. Tentei me aproximar o máximo que pude do buraco para que ela me visse.
— Sou Nero, Príncipe de Blizzard! Acordei e preciso sair. Ordeno que me tire daqui!
"O QUE? EU VOU CHAMAR A POLÍCIA! DEVE SER UM LUNÁTICO! SAI DA MINHA CASA AGORA!"
Não consegui entender o que ela queria dizer com aquelas palavras, eu realmente havia despertado em outra época. Como se meus instintos aflorassem todos de uma vez, segui até o buraco e não precisei saltar para alcança-lo.
Ergui meus braços e fechei os olhos, aquela claridade me dava náuseas. Com os braços já apoiados sobre as beiradas do buraco, saltei e consegui passar com incrível destreza. Fiquei de pé rapidamente quando sai.
Pus as mãos em torno do rosto para me proteger contra a claridade. Ao abrir um pouco os olhos, ainda protegidos pelas mãos, consegui distinguir uma forma humana a minha frente. Uma menina de longos cabelos dourados me observava com certa curiosidade e medo.
— Quem é você? E o que está fazendo em minha casa? — ela apontava para mim uma pequena adaga dourada.
Observei o objeto que estava segurando, aquilo era realmente uma adaga. Tentei o máximo possível recordar de onde aquilo me era familiar.
— Me responde seu desgraçado estranho! Como você foi parar aí embaixo? — sua voz era irritante e começava a me deixar bravo.
— Eu... — a menina não me deixou terminar, ela agora estava me olhando com uma expressão de horror.
— Ah meu Deus! Que droga de dente tão grande é esse? E essas unhas?
Ela segurava a adaga com as duas mãos, o que me permitiu ter uma visão melhor do objeto. Ao ver que possuía o brasão de minha família, entendi subitamente porque ela me era tão familiar. Era o objeto de caça favorito de meu pai.
Caminhei até a menina para reivindicar aquilo que me pertencia por direito, mas ao tirar as mãos do rosto fui acometido por uma forte dor nos olhos, que se transformou em uma enorme dor de cabeça.
Logo a escuridão veio e senti meu corpo cair no chão com um forte baque, fiquei ali, antes que a escuridão me dominasse por completo. Com tudo que havia ocorrido em tão pouco tempo, não havia parado para reparar que o cheiro da menina me fazia sentir vivo novamente.
Os sonhos vieram rápido demais, em cores indistintas que se transformavam em formas grotescas de postes e mulheres gritando por clemência.
O cenário foi se moldando para outras formas. Eu estava na velha cabana onde minha avó, Celine, que vivera por quase cento e sete anos. O dia estava enevoado e o gelo começava a congelar qualquer ser vivo que não estivesse aquecido o suficiente.
Eu segurava um lírio, eram raros naquela região, mas a simplicidade deles me fascinava. O cheiro de fumaça já empestava todo o local.
Aquela seria uma noite de comemoração, vovó Celine havia morrido e algumas bruxas seriam queimadas para comemorar sua vida longa e produtiva para nosso povo.
Ouvi uma batida na porta. Não que eu não gostasse de Celine, mas nunca fui a favor de que mulheres fossem queimadas a cada nobre que morria.
Esperei um pouco, a batida voltou a ressoar na pequena cabana de madeira coberta de neve. Suspirei, não iria atender a ninguém.
Puxei a enorme capa de pele junto ao corpo e deitei próximo à lareira. O único som na cabana era o crepitar da madeira em conjunto com as chamas. Fechei os olhos e deixei que o sono viesse, mas novamente a batida voltou a ressoar, agora mais insistente.
— Nero! Eu sei que você está ai! — era a voz de Lyanna. — O Ancião exige sua presença na cabana dele agora!
Seu tom de voz era irritado, suspirei mais uma vez e caminhei lentamente até a porta. Lyanna esperava parada com os braços em volta da cintura, era o frio.
— O que ele quer de mim Lya? — resmunguei.
— Não s-sei Ne-nero, vamos logo. Estou congelando!
Assenti e deixamos a cabana. Permanecemos todo o trajeto em silencio. Ao nos aproximarmos cada vez mais da aldeia, ouvimos gritos de agonia misturados a gritos de vivas e risadas.
Não podia negar que algumas daquelas mulheres mereciam o fogo, principalmente aquelas que cometiam assassinato ou faziam algum tipo de crueldade com o animal que representava sua família, era sagrado.
— Soube da nova bruxa que vão queimar essa noite? — perguntou Lya, rompendo o silêncio.
— Não faço ideia — suspirei. — Quem é e o que fez?
— Não me disseram muita coisa, Prudence...
— Não acredite em nada que Prudence te disser, sabe que ela é uma mentirosa! — esbravejei. — A propósito, recusei o seu pedido de noivado.
— Calma, nem tudo que ela conta é mentira. Sabe, a garota que vão queimar é bem bonita, a mais bonita da aldeia, mas ela não pertence ao nosso povo.
— Não compreendo. Você diz que vão queimar uma menina só porque ela não pertence ao nosso povo? — indaguei. — Não se pode queimar uma mulher até que ela tenha vinte anos, qual a idade dela?
— Não sei, acho que tem uns dezessete. Ela estava nua e adormecida, mergulhada no lago central da floresta fria. Assim que resgataram seu corpo, presumiram que estivesse morta, mas ela respirava. Todos os homens ficaram encantados com sua beleza diferente, sabiam que ela não pertencia a essa aldeia — Lya fez uma pausa e me olhou tristemente. — As anciãs ficaram enfurecidas pela atenção especial que a garota estava recendo e a declararam bruxa, alegaram que ninguém poderia sobreviver a um frio daqueles, ainda mais sem peles para aquecer, o que é realmente estranho.
Parei de andar e observei quando Lya parava a alguns passos na frente. Aquela história estava mal contada, ninguém sobrevivia a um frio daquele mesmo fora do lago.
Muita coisa havia acontecido desde a minha ausência, não sabia que as anciãs haviam mudado tão rápido sua estratégia para aniquilar mulheres inocentes que representavam alguma ameaça ao seu poderoso clã de conselheiras.
Como príncipe e futuro rei de Blizzard, era minha obrigação intervir na decisão do poderoso clã que controlava todos, até mesmo o rei.
— Não vou deixar o fogo resolver tudo dessa vez — grunhi.
— Eu sabia meu irmão. Confio em você, não a deixe morrer — disse Lya, me beijando as mãos. — Eu o abençoo.
Assenti e corri até o festival de queima as bruxas. O cheiro de carne queimada era insuportável, mas as pessoas ali não estavam incomodadas. Todas riam alegremente e bebiam vinho em grandes copos de madeira.
Três postes estavam prostrados dentro de um grande círculo feito por rochas pintadas de branco, para que o sangue caído das bruxas nas pedras fosse exibido na manhã seguinte.
Observei um grande tumulto que havia se formado ao lado do terceiro poste, onde ainda não pendia um corpo queimado. Quando finalmente ergueram uma garota de cabelos dourados como uma tarde de verão e olhos verdes, entendi porque todos haviam se encantado.
Ela gritava amarrada ao terceiro poste, suas mãos estavam atadas com fortes cordas de couro e erguidas para cima. Seus pés se debatiam, em vão. Ela trajava um pequeno vestido branco, o que deixava à mostra sua pele lisa e branca.
Por um momento nossos olhares se encontraram e ela gritou por socorro, um grito que dividia meu coração entre ajuda-la ou ser acusado de traição pelas anciãs.
"Eu sabia meu irmão, eu o abençoo".
As palavras de Lyanna vieram em meus pensamentos, hesitei por um momento e então corri para a garota. Ela sorriu ao ver que eu tentaria ajuda-la, mas logo seu sorriso se transformou em uma expressão de horror ao ver que Prudence e Lírica traziam duas enormes tochas.
Tentei correr o mais rápido que pude, pulando mesas e esbarrando em alguns bêbados que dançavam alegremente. Ao me aproximar o suficiente para dar uma ordem de cancelamento, Prudence parou com a tocha na mão e virou em minha direção.
— Diga que me ama Nero, diga com sinceridade. — seu tom de voz era triste, mas a expressão em seu rosto era de divertimento.
— Prudence. Não compreendo. O que você quer de mim? Eu ordeno que baixe essa tocha, e você também Lírica! — gritei, Lírica rapidamente se afastou, deixando Prudence sozinha e levando sua tocha consigo.
— Como você é medrosa, ele nem é rei ainda! — desdenhou.
— Eu disse para largar a tocha! — tentei soar o mais autoritário que pude.
— Você ainda não disse que me ama — ela disse, aproximando a tocha da garota. — Você vai preferir arriscar seu futuro como rei, e pôr em risco a vida de todo o seu povo por causa de uma puta que você nem conhece?
— Eu amo você Prudence — murmurei, sabendo que não tinha escolha.
— Fale alto, com sinceridade — gritou, e todas as pessoas pararam de dançar para ver o que estava acontecendo.
— EU AMO VOCE PRUDENCE! — gritei, estava suando, mesmo naquele frio.
— Essa foi a mentira mais bela que eu já ouvi de você Nero Lancaster — e com essas últimas palavras, ela lançou a tocha e o fogo surgiu.
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