91 - Despois da Escuridão

Blizzard, seis anos mais tarde.

Era o fim do rigoroso inverno na cidade gelada. Depois de tantos anos de fortes nevascas e chuvas torrenciais, Blizzard finalmente abrira as portas para uma das suas mais raras primaveras. A neve escorria das enormes sequoias, enquanto pequenos fragmentos de gelo pontudo ameaçava ferir quem ousasse se aventurar dentro da floresta no desgelar da cidade. As águas dos lagos finalmente tornaram-se correntes novamente, e pequenos animais começavam a acordar de sua longa hibernação. O ar sombrio começava a desaparecer, a névoa refugiava-se para dentro das cavernas. O sol penetrava a escuridão do frio e fornecia calor para as flores que logo tornariam o lugar como em um conto de fadas.

A anja despia suas camadas de pele, pois não haveria mais necessidade delas. Enquanto ascendia a fogueira, ela olhava intrigada mais uma vez para ele. Você não vai acordar nunca? Perguntou para si mesma. Milia arqueou as asas e sentiu as dores agudas. A queda do penhasco a deixou com sequelas. A asa uma vez quebrada, nunca mais foi à mesma. Prendendo os longos cabelos negros, ela caminhou até Nero, que estava adormecido em um caixão esculpido em pedra pela Deusa Shaya. Após seis anos de convivência silenciosa, ela tomou para si Nero como um amigo. Decidida a não voltar para Lumen, Milia passou a conviver na floresta e cuidar dele até que ele despertasse do seu sono.

-Ele vai acordar Milia, vou deixá-lo sob seus cuidados. A guerra está extinta. Seu pai foi morto por Soren. Creio que não irá sentir falta dele. Por favor, cuide bem dele - disse Shaya.

- Quando ele vai acordar? Eu mal o conheço, eu pensei que ele iria explodir...

- Não. Muitos esqueceram que Nero possuía um demônio selado. Micah se sacrificou para salvar a alma dele. Tenho que admitir que isso foi um pouco inusitado. Uma vez atingido por uma flecha estelar o infeliz deixa de existir, mas Micah foi poderoso. Mesmo assim o corpo de Nero sofreu danos e vai demorar para ele acordar . Mas quando isso acontecer, quero que o leve para a casa de Lili. Ele terá uma aparência mais velha quando despertar, esse será o meu presente.

- E por que ele desejaria ter uma aparência mais velha? - indagou Milia.

- Por que a mulher que ele ama terá vinte e sete anos, e os seus filhos terão seis. Não acha que seria estranho se ele ficasse com uma aparência de dezessete? - elas riram. - Entende agora Milia? Ele vai precisar de sua ajuda quando acordar. A maldição do vampiro será removida, assim como as tatuagens que o ligam com Tenebris. Tenho certeza que você será bem acolhida com eles, são boas pessoas. Agora tenho que ir, o conselho não me permite ficar por mais tempo. Até mais, cuide-se.

Ela vagava pelas lembranças de seu último encontro com Deusa Shaya. A anja desde cedo acompanhou o nascimento dos gêmeos até se tornarem garotos frenéticos. Sempre observando de longe, ela desenvolveu uma afeição enorme pelas crianças. Milia ergueu a cabeça de Nero em seu colo e começou a cortar seu cabelo com sua antiga adaga de guerra. Ela riu quando viu que os garotos nada tinham de Lili. Pareciam ser somente filhos de Nero. Ela também removeu sua barba, e retirou as grossas camadas de pele para que o vento refrescasse seu corpo. Nero respirava com calma, e os olhos não faziam menção de abrir. Milia levantou seu lábio superior e viu que as presas dele haviam sumido. Sorriu ao ver que a Deusa cumpriu sua promessa. Mesmo dormindo, em seis anos ele passou a ter uma aparência mais velha. Ela foi até a margem do lado desgelado e deixou suas roupas caírem. Ao entrar, surpreendeu-se ao ouvir sussurros vindos do amigo adormecido.

-Eu... amo... eu amo você Prudence - grunhia ele. - Bruxa...

Milia rapidamente correu até ele. Quando tocou sua testa, sentiu que ele estava ardendo em febre. Colocando o pano molhado em sua cabeça, ela aguardava apreensiva, o seu despertar.

-EU AMO VOCÊ PRUDENCE - gritou, seu corpo contorcendo-se. - Me diga... me diga Lucinda... de que forma desejas ver a morte?

- Eu acho que você foi um assassino, não é amigão? - sussurrou Milia.

- Eu... eu tenho vários nomes... e de nenhum você é digno de pronunciar... - ele suava muito e saliva escorria de sua boca. - Eu sou Nero... me ajude a sair daqui... MAMÃE EU NÃO QUERO SER REI... não podem queimar uma mulher ate que ela... até que ela tenha vinte anos, qual a idade dessa? Sou perigoso Arabela, me deixe ir embora...

- Está vendo momentos de sua vida? Isso me parece estranho, geralmente acontece quando a gente morre - riu Milia, apertando a mão de Nero.

- Você me lembra uma Deusa... Deusa Shaya... NÃO ME COMPARE COM AQUELE PLEBEU!... eu amo você Lili... Kaia... sua idiota... AAHHHHH!

Milia pulou para trás quando ele sentou de repente e gritou, como se estivesse expelindo a morte. Ela sentou rapidamente ao seu lado e segurou seu rosto entre as mãos. Ele olhava assustado para ela, estava desorientado. Nero caiu quando tentou ficar em pé. A anja o ajudou a voltar a caminhar, e logo ele começava a reconhecer onde estava. Ele reconheceu a anja que segurou sua mão segundos antes de despencarem abismo abaixo.

-Eu conheço você - sussurrou ele, com a voz arrastada - segurou em mim quando caímos, onde estão todos? Vencemos a guerra? Vamos voltar para Tenebris, Lili corre perigo se eu não estiver por perto...

- Nero - ela tomou as mãos dele nas suas. - Já se passaram quase sete anos, tudo acabou...

- O que? Não - ele negava. - Eu desmaiei na queda, aqui é o fim do abismo?

- Ei! Me escute - ela agarrou seus ombros e o fez sentar. - Foi atingido por uma flecha estelar, mas o demônio que convivia dentro de você, Micah, que você conhecia como Sam, ele se sacrificou para te manter vivo.

- Está me dizendo que eu fiquei sumido por sete anos? - ele afundou o rosto nas mãos. - Está me dizendo que eu perdi para sempre a mulher que eu amo? Ah meu Deus, está acontecendo novamente, eu voltei a dormir e perdi parte da minha vida.

- Nossa, é realmente incrível - Milia sorriu a sentou ao lado dele, limpando as lágrimas que começavam a descer. - É incrível como você não somente está com a aparência de um adulto como também está falando como um.

- Não entendo...

- Vai entender logo - ela o puxou até a margem do lado e o fez fitar seu reflexo. - Está vendo?

Ele olhava incrédulo para a água. O rosto mais velho o deixava feliz e estranho.

-O que aconteceu enquanto dormi Milia? - perguntou ele, enquanto deitava ao lado da fogueira, algumas estrelas já começavam a aparecer no céu.

- Bem, vejamos... seus filhos cresceram, Lili agora é uma médica...

- O que? Não brinque comigo - grunhiu. - Ela já deve ter me esquecido.

- Seus filhos são a maior prova de que ela não te esqueceu.

- Filhos? Meus?

- Claro. Sabe aquela coisa que Ishtar havia contado para Lili e você ficou louco para saber? - ele fez que sim com a cabeça. - Pois é, ela estava grávida de você...

- Isso é sério? - suspirou, sentindo o coração apertado. - Está mesmo me dizendo que Lili teve um filho comigo?

- Um? Não - ela riu. - Dois.

- Dois? Eu... minha nossa. Eu preciso reencontrá-la? Pode me ajudar? Como se chamam? Então era por isso que ela estava tão furiosa comigo. Funcionou...

- O medroso é Seimei, o atrevido é Salieri. Lindos gêmeos.

- Vamos partir agora Milia. Preciso me alimentar, vai me dar um pouco do seu sangue?

- Caso ainda não tenha notado, você não é mais um vampiro. Olhe só, não possui mais presas pontudas e suas tatuagens também desapareceram. Antes de irmos, quero que saiba que seu amigo cumpriu com a promessa. Ele cuida de Lili até hoje, e está perfeitamente normal.

- Fala de Billy?

Ela assentiu. Eles partiram na calada da noite. Enquanto caminhavam, Nero absorvia tudo que Milia contava. Desde os últimos acontecimentos da guerra ao presente de todos. Tudo sobre Lili foi contado, assim como de seus filhos. Ele ficou feliz e confuso, mas enviou agradecimentos silenciosos para Deusa Shaya. A ansiedade de encontrar os filhos o enchia de motivação para seguir em frente. Saber que Sora havia abandonado o antigo castelo o deixou aliviado, pois ele possuía muitas recordações ruins mesmo que muitas coisas boas tivessem acontecido ali. Eles chegaram até uma clareira muito familiar. Ele lembrou com amargura que ali cometera seu primeiro assassinato como vampiro. Passaram diante do castelo que agora abrigava outra família, o cheiro de carne assada fez sua boca salivar, sinal de que o sangue já não era mais necessário. Milia relatou tudo que ele poderia saber sobre os gêmeos e a nova Lili. Também não deixou de falar de Sora e Lieff, que agora tinham um garotinho chamado Louis.

Enquanto deixava Nero ir pela frente, a anja tirou um porrete de sua sacola de couro. Ela sabia um modo muito interessante de fazer Nero e Lili se reencontrarem novamente, e isso precisaria de um sacrifício um pouco maior. Ela aguardou até que entrassem na cidade e chegasse o mais próximo possível do hospital. Como era início de primavera, as pessoas se recolhiam para dentro de suas casas o máximo que podiam, pois a oscilação de temperatura causava muitos resfriados. Tudo estava deserto e nada se ouvia exceto o sussurro do vento. Milia correu até Nero e o atingiu na cabeça com o porrete. Ele caiu e ela voltou para a floresta, deixando-o sozinho próximo ao hospital onde Lili gerenciava.

Blizzard, na manhã seguinte.

A Dra. Lecter entrava ansiosa em mais um dia de árduo trabalho no Hospital Forester. Ela andava calmamente até sua sala. Havia chegado mais cedo que todos os outros. O corredor mal iluminado denunciava que a manutenção das luzes ainda não fora feita. Somente o som agudo de seu salto contra o piso era ouvido. Lili entrou em sua sala e retirou seus saltos. Olhou para a foto dos filhos na mesa e sorriu. O início da primavera também era o início das férias dos gêmeos. Ela acomodou-se em sua cadeira e relaxou. Começou a escutar as equipes trocando de turno e logo podia ouvir ruídos por todo o hospital. O telefone tocou e Belinda anunciou sua chegada, era a estagiária e assistente de Lili. Ela entrou apressada na sala e desculpou-se pelo atraso.

-Está tudo bem - riu Lili. - Você nem está atrasada.

- Ah, obrigado Dra. Lecter! - guinchou a garota.

- Já disse que pode me chamar somente de Lili. Somos amigas Belinda.

- É verdade, desculpe, é só o hábito - Lili abanou a mão no ar e girou na cadeira. - Como estão os gêmeos?

- Estão bem, destruindo a casa como sempre. Vamos passar as férias na casa de Lieff, eles adoram a companhia de Louis.

- Isso é ótimo, fico feliz que estejam todos bem. Ainda não tive a oportunidade de conhecer o pequeno Loius, como ele é? - Belinda colocou o casaco no cabide e sentou na frente de Lili.

- Conhece Lieff não é? - Belinda meneou a cabeça. - Pois bem, é só imaginar meu irmão em miniatura. Esse é Louis.

- Ele deve ser adorável então, adoro crianças. Ele também é... bem...

- Sim, ele herdou nosso precioso gene. É tão branco como o pai - Lili riu. - Chega de falar de mim, como vão as coisas na sua vida?

- Está tudo bem por enquanto. Estou adorando minha nova faculdade e emprego. Ah, e também tem o Felipe, eu o amo.

- Sabe o que eu acho dele não é?

- Ah Lili, ele não é tão ruim - protestou.

- Ele é péssimo, você merece um homem melhor! - ela olhou séria para Belinda e segurou o riso. - Belinda, me diga de que milharal você retirou esse espantalho?

- Você é terrível Lili! - guinchou entre os risos. - Por falar em namorado, como estão as coisas com Billy? Ele é tão gato!

- Não estamos namorando, nossa relação é um pouco complicada.

- Mas você disse que não resistiu uma vez, e acabou transando com ele.

- Eu sei, sei. Eu gosto dele, mas falta algo...

- Quando é que você vai me contar sobre o pai de seus filhos, você nunca fala dele...

- Belinda, olha...

- Desculpa Lili, eu sei que você não gosta de falar sobre isso. Desculpa, mesmo - vendo Lili mergulhar em seu silêncio, ela rapidamente mudou de assunto. - Ei, soube do novo paciente bonitão?

- Quem?

- O forasteiro. Ninguém sabe de onde ele veio, só sabemos que ele é lindo - ela procurou no celular algumas fotos que havia retirado. - Espera um segundo, tenho algumas fotos dele.

- Ele tem alguma identificação? - Lili foi até a cafeteira e retirou um copo. - Quer café?

- Ah, não obrigado. Tomei antes de vir - murmurou. - Achei, olhe aqui.

Lili deixou o copo cair quando viu a foto. Seus olhos não queriam acreditar no que viam.

-Lili? Está tudo bem?

- Alguma identificação? Ele tem alguma? - guinchou ela. - Onde encontraram ele?

- Ah, ele estava desmaiado em frente ao hospital. Nenhum documento com ele, você não o viu quando entrou?

- Não, entrei pelos fundos - suspirou. - Em que sala ele está? Por que ele estava desmaiado?

- Ah, está na ala B, sala 23. Lili, por que está tão consternada? Ele está com um hematoma grande na cabeça, acredito que foi desacordado por alguém...

- Belinda, vai ficar responsável pelo meu escritório hoje. Você é a ruiva mais competente que conheço. Vou ver esse paciente, até mais.

Ela fechou a porta e ignorou os protestos de Belinda. Seu coração batia acelerado. A boca estava seca e as mãos suavam frio. Ela pegou rapidamente o elevador para a ala B. A ansiedade fez um nó apertar em sua garganta. Quando finalmente chegou, saiu em disparada até a sala 23. Um pequeno grupo de enfermeiras estava amontoado ao lado da porta e soltavam risadinhas frenéticas. Lili as mandou embora e exigiu que ficasse sozinha com o paciente. Mesmo sem entender o motivo da ordem imediata, elas partiram. Finalmente sozinha, ela hesitou em mover a cortina branca para o lado e revelar o corpo na cama.

-Calma Lili, pode ser somente um engano - murmurou.

Ela começou a caminhar até a cama. A parede exibia alguns raios-x do paciente, e na mesa, algumas amostras de sangue. Lili parou de súbito quando viu um sobretudo negro pendurado no gancho. Ao pegar a roupa, ela reconheceu o cheiro de Nero, o cheiro do perfume que ela o obrigava a usar. E também havia o cheiro dos lírios de Tenebris. Ela afundou o rosto no sobretudo e chorou copiosamente. O tempo parecia ter brincado com seus sentimentos durante os anos que ela passou sem Nero. Ela andou rapidamente até a cama e afastou a cortina. Seus olhos avistaram o que mais sentia falta em sua vida. Ela não se deixou entregar totalmente, precisava confirmar se aquele era realmente Nero.

Ela colocou luvas e levantou o lábio superior do paciente, sua alegria morreu quando viu que ele não possuía presas. Grunhindo de raiva e imensa tristeza, ela puxou os lençóis. Ele também não tinha as tatuagens de correntes. Lili sentou no chão em profundo desespero.

-O que você achou Lili? Que ele ainda estaria vivo? - murmurou. - Isso serve para você aprender a esquecer o que já deveria ter esquecido!

Ela voltou a afundar o rosto no sobretudo.

-Eu sinto muito meu amor, pelo adeus que eu não pude dar...

A lembrança do dia em que o vira pela última vez voltou para atormentá-la. Lili abraçou o sobretudo como se Nero estivesse ali.

-Não pode ser ele, mas é tão parecido. Nero não tinha essa aparência mais velha. Quem é você e o que andava fazendo com o sobretudo dele? - guinchou para ele. - Eu tenho certeza que esse casaco é dele... mas você não é ele... vampiros não envelhecem... você não tem as presas dele e muito menos as tatuagens. Eu não sei quem é você, mas nunca mais quero te ver.

Ela esperou ficar mais calma, lavou o rosto e suspirou lentamente para acalmar seu coração. Fez o possível para não olhar para o forasteiro. Colocou o sobretudo em uma bolsa hospitalar e saiu da sala, dando ordens de não colocar aquele paciente em seu caminho novamente.

-Quero que deem alta para ele o mais rápido possível, por favor - disse para as enfermeiras. - Vou me ausentar até amanhã. Tenham um bom trabalho.

Falando isso, ela correu até seu carro e se pôs a chorar.



Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top