75| Sortilégio
UZIEL
Beep. Beep. O som do notebook anunciava um novo e-mail. Sentado no parapeito, ele observava o céu chuvoso horas afio. Procurava uma explicação para uma chuva tão furiosa como aquela. Em seu pouco tempo como querubim, ele aprendeu que nem sempre as chuvas eram uma causa natural. Quando um arcanjo ou algum celeste de alto escalão em Lumen ficava muito furioso, alguma catástrofe podia abater Statera, sempre em forma de algum desastre natural. Por isso, os mortais nunca levavam em consideração que algo divino estava por trás disso. Para eles, era apenas a força devastadora da natureza recaindo sobre os homens. Isso não está certo, pensou Uziel. Ele sabia que os celestes possuíam muita raiva e inveja dos mortais, pois eles eram inferiores, mas possuíam total livre arbítrio.
Preocupou-se com aquela possibilidade, pois sabia que poderia estar correta. Talvez Miguel já soubesse da rebelião. Sentiu-se perdido, não sabia para onde ir. Derrotar um arcanjo não seria nada fácil. A frota de exilados não seria páreo para o majestoso tirano. Não possuíam mais a mesma força de quando ainda eram celestes, nem mesmo suas asas possuíam mais. Para Uziel, aquilo já era uma causa perdida, mas Daniel acreditava fielmente que poderiam vencer. Procurando alguma saída para seu esgotamento mental, ele foi até a geladeira e retirou uma garrafa de água de coco com álcool. Mischa sempre abastecia a cozinha quando visitava a casa. O primeiro gole esquentou seu corpo, era uma bebida fraca somente no nome, mas era tão forte quanto vodka. Pegando mais duas latinhas, ele voltou a sentar no parapeito.
A chuva não havia parado desde cedo, e também não tinha previsão para enfraquecer. Os Deuses devem estar muito zangados com seus súditos, ou então fizeram alguma merda, riu amargamente. Ouvindo passos da escada, ele deparou-se com o amigo. Soren carregava o notebook nos braços enquanto caminhava até o exilado.
-Acho que chegou alguma mensagem - resmungou. - Esse maldito notebook me acordou.
Soren empurrou o exilado com o quadril para poder sentar ao seu lado. O cheiro forte de álcool o fez espirrar.
-Você está bebendo de novo? - resmungou.
- E daí? - Uziel acessou o e-mail. - Se elas estão na geladeira, então acho que são pare ser consumidas.
- E daí? Lembra de quando você ficava bêbado? Era insuportável, principalmente quando eu tinha que tirar suas roupas e te dar banho.
- Você não fazia isso - riu com descrença, dando mais um gole.
- É claro que fazia - Soren acompanhou a risada. - Ficava completamente sujo do próprio vômito...
- Não lembro disso, não lembro que você me dava banho...
- Mas é claro que não, estava bêbado! Agora acho melhor verificar a caixa de entrada - ele aproximou-se do exilado.
- Hum. Não precisa ficar tão próximo...
- Ah cala essa boca e olha logo esse e-mail - grunhiu Soren, recostando-se no ombro do amigo.
Uziel ignorou aquilo e verificou o e-mail. Era uma resposta de Dandy. Estava nervoso, não entendeu o motivo. Talvez estivesse aguardando uma solução para sua falta de planejamento. Soren tapeou a mão do amigo e clicou no e-mail. Uziel olhou irritado, mas recuou o rosto quando viu que Soren estava com o queixo apoiado em seu ombro. Sacudiu o braço para ter o ombro livre, mas Soren recusou-se a sair. Tentando controlar a fúria, ele suspirou e viu que o e-mail trazia boas notícias. Dandy e Blair já estavam a caminho.
De: celestedan
Para: uzielyhaj
Prezado Sr. Yhaj, é com prazer que eu envio este e-mail. Estou retornando de Florença com Blair. Sei onde você reside. Gostaria de receber minha visita esta noite?
Uziel sentiu-se empolgado. Talvez Dandy fosse à saída para tudo.
De: uzielyhaj
Para: celestedan
Estamos ansiosos por sua visita. Pode vir quando desejar, o tempo está esgotando-se e precisamos muito da sua ajuda.
De: uzielyhaj
Para: celestedan
Pode contar conosco. Conversamos melhor quando eu estiver aí. Sinto que uma força poderosa está ao nosso lado, ela pode ser a nossa grande chance, mas não consigo identificá-la. Algo está me bloqueando. Se essa força estiver conosco, talvez essa guerra já esteja ganha. Pois bem, nos aguarde em breve Sr. Yhaj. Abraços.
-Acha que ele pode estar blefando? - Uziel recostou-se na parede. - Quem seria essa força?
- Talvez a frota de exilados? - Soren estava blefando, sabia que Dandy referia-se a ele. - Há um número considerável de caídos.
- Não, é outra coisa - ele fechou o notebook e levantou-se. - Talvez Daniel saiba.
- É, talvez - ele não teve coragem de encarar o amigo. - Acho que vou dormir um pouco.
Caindo no sofá, ele fingiu estar adormecido. Sabia que podia entrar onde o pai residia na hora que quisesse. Sabia que podia guiar a tropa de exilados até lá, mas não sabia se queria ao certo. Mesmo sabendo que Miguel era um tirano, ainda era seu pai. Mesmo sem o seu amor, ele ainda tinha chances de conseguir arrancar algo bom de Miguel. Aos poucos, o sono veio, arrastando-o para uma onda de pesadelos.
De repente Soren encontrava-se no grande salão principal, onde os arcanjos sempre viviam sentados em suas cadeiras reluzentes. Ao lado de seu trono brilhante, Miguel olhava com nojo para o filho debilitado. Sangrando bastante, Soren chorava. Com suas roupas rasgadas e sujas de sangue, ele tentou-se cobrir da vergonha que era estar ajoelhado diante do tirano.
-É incrível como você me enoja. Até quando pretende resistir? - sua voz era a de um autêntico tirano. - Precisa de asas para ser meu filho.
- Então me mate! Me mande para Tenebris! Talvez eu seja bem-vindo por lá... - ele grunhiu e voltou a encolher-se de dor, suas costas sangravam. - Me mate papai.
- Você não serve nem mesmo para Grendel Lit, eu só desejava ter um filho completo...
- Então vá foder com outra mortal! Deixe-me em paz!
Ele sentiu falta de ar. Seu queixo foi de encontro com o chão. Miguel pisava nas costas do filho. Soren cuspiu sangue. A dor em suas costas era lancinante. A bota de metal frio de Miguel rasgava os dois imensos cortes por onde deveriam sair asas, ele tentou em vão rastejar, mas o pai era forte o suficiente para mantê-lo preso apenas com um pé. A angústia total tomava conta do garoto. Pensou na mãe, embora nunca a tenha visto, ele a imaginava com um rosto simples e um sorriso belo. Miguel olhou para o filho. Não sentiu nada além de nojo.
-Você convive demais com os homens, até fala como um deles. Ainda sou seu pai e me deve respeito. Você vai tornar-se um arcanjo. Comece a portar-se como tal. Está proibido de ir até Statera a partir de hoje.
- Não... prefiro conviver com os homens do que viver uma vida de sofrimento ao seu lado. Eu voltarei um dia, e vai ser para matá-lo...
- Não entendo... por que tanto ódio meu filho?
Soren abriu rapidamente um portal e mergulhou para dentro dele. Sua última visão foi de Miguel tentando agarrá-lo. Aquela não era sua primeira viagem para Statera, mas sentiu como se fosse. Estava muito assustado, pois não sabia para onde ir, aquela seria uma viagem sem volta. Confuso sobre o local para onde deveria ir, sua viagem no contínuo espaço-tempo foi confusa. Ele sentiu na pele a tensão pesada que era estar entre duas dimensões paralelas. Todo o seu corpo formigou, a cabeça parecia querer estourar. Ele gritou. Seu grito ecoou no vazio. Tentou gritar pela mãe, mas ele jamais soubera seu nome. As costas já não doíam mais, estava curado. Em sua última tentativa em pensar em um lugar para ir, fracassou.
Sentiu o vento gelado bater em seu rosto. Não sabia onde estava. A queda foi rápida, mas antes disso, ele teve a chance de vislumbrar como Statera era linda quando olhada de cima. Viu que grandes morros e vales aproximavam-se. Pressentiu uma queda feia. Areia, sangue e pedras. Essas foram às coisas que Soren viu antes de cair.
Olhos azuis o observavam, aquele era o seu salvador."
Uziel sabia que Soren costumava ter sonhos conturbados, mas dessa vez sabia que algo o incomodava bastante. Seria culpa? Saudade? Ele não sabia dizer. Aproximando-se do amigo, ele pensou se poderia. Mas é claro que posso, seu idiota. Xingou-se. O orgulho o mantinha parado. Mesmo sabendo que não havia mais ninguém na casa para observá-lo, olhou para os lados e sentiu-se envergonhado. Cerrando o queixo e os punhos, ele baixou-se até o espaço entre Soren e o sofá. Seu corpo encaixou-se perfeitamente ali. Se você acordar agora e me ver aqui, eu te mato. Grunhiu silenciosamente. Ele passou o braço por Soren, que ainda agitava-se em seus sonhos turbulentos. Sentiu o coração acelerado do amigo e o abraçou com mais força. Aconchegou-se mais perto. O calor de Soren o fez lembrar de Lírica. O que eu fiz? Por que a beijei? Condenei Lírica e a mim também, fui um completo estúpido.
Soren grunhiu. Uziel sentiu que estava apertando o ombro do amigo. Sentiu-se furioso por estar se deixando levar por sentimentos tão errados. Mas sentia-se bem por estar ali, sentia-se bem por enterrar seu rosto no pescoço de Soren e relaxar. As horas passaram-se. Ele sentiu sono. A chuva ainda não havia cessado. Derrotado pelo sono, ele dormiu. O som das batidas na porta reverberou pela sala, Soren acordou de supetão e viu o braço de Uziel ao seu redor. Ficou incrédulo e feliz ao mesmo tempo. Lentamente, ele retirou o braço do exilado e deitou-se de frente para ele. Observou fascinado como ele parecia calmo quando dormia. Aproximando-se com cautela, ele beijou Uziel nos lábios. A porta voltou a bater. Soren sentiu a presença de duas pessoas. Ficou atento. As presenças denunciavam uma áurea mágica. Era como um sortilégio. Uziel acordou e viu que Soren também havia acordado.
-O que tá fazendo aqui? - esganiçou-se Uziel, afastando Soren com um empurrão.
- Como assim o que eu estou fazendo aqui?
- Eu deitei aqui primeiro! - tentando esconder o rosto vermelho, ele estirou o braço para que Soren não se aproximasse. - Não se aproxime, por favor!
- Eu que deitei aqui primeiro! Você que se aproveitou para tocar em mim enquanto eu dormia...
- Não se aproxime! - Uziel empurrou Soren, que rolou para o chão.
- Ai! Mas que droga, você tá histérico...
A porta voltou a bater. Soren levantou e fez sinal para que Uziel ficasse onde estava. Andando lentamente até a porta, ele conseguiu confirmar que as pessoas que estavam ali não eram mortais. Pressentiu perigo. Podiam ser soldados enviados pelo pai para levá-lo de volta. Engoliu em seco. Abriu a porta lentamente e viu duas silhuetas tomadas pela chuva.
-Yo! - um rapaz baixinho e ruivo sorriu para ele. - Encontrei você.
- Oh! É um prazer conhecer você! - falou com entusiasmo a garota alta de olhos amarelos.
- Dandy? Blair? - indagou, abrindo espaço para eles entrarem.
- Obrigado! Já estou com alguns galos na cabeça, essa chuva horrorosa deve ser culpa de algum arcanjo nojento e furioso - Blair adentrou a casa e sacudiu os cabelos pretos que desciam até os ombros. - Onde posso trocar de calcinha?
- Ãn, bem... você pode usar o banheiro - ele viu a garota guiar-se sozinha pela casa.
Uziel levantou-se e cumprimentou Dandy. Reparou que o garoto usava roupas estranhas. Uma túnica cor de vinho que caía-lhe até os pés, calça e blusa marrom faziam parte do figurino do garoto baixinho. Além de vários colares de todos os tipos, de ossos até cristais.
-Tenho uma ótima notícia para você Sr. Yhaj! Encontrei a força que pode nos ajudar ao seu lado - Dandy agitou os cabelos e sorriu. - Ele estava me bloqueando.
- Quem?
- O seu amigo ali - ele apontou para Soren. - Ele sabe como nos levar exatamente até Miguel.
Soren encolheu-se sob o olhar de Uziel.
-Por que você não me contou? - o exilado foi até Soren e sentiu vontade de socá-lo. - Por que?
- Por que ele é meu pai! Sinto muito Uziel, mas acho que essa guerra deve ser somente entre mim e ele...
- É claro que não! Você acha que eu vou deixar você se arriscar sozinho? Nunca! - ele tentou acalmar-se. - Desculpe Dandy, você mal chegou e...
- Não vejo nenhum problema. Blair e eu só precisamos comer algo e descansar um pouco. Tenho todos os cristais que você quiser em minha bolsa - ele arremessou uma bolsa para Uziel. - Com isso podemos viajar até Lumen, ou ele pode nos levar exatamente ao local e acabamos logo com tudo. A escolha é sua, Soren.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top