70| Mente Sem Lembranças


Todos aqueles momentos especiais que passei com você, meu amor
Não significam merda nenhuma comparados às suas drogas
Mas eu realmente não me importo, tenho muito mais que isso
Como minhas memórias, eu não preciso disso

- Pretty When You Cry, Lana Del Rey

NERO

Estava me vestindo quando Sora entrou no quarto para me importunar como uma legítima louca. Acho que ela estava puta da vida, porque quase não me deixou terminar de vestir o jeans. Fui arrastado para fora, ela sequer me deixou dar um beijo como cumprimento em Lili. Já estava amanhecendo e eu começava a sentir fome. Após muitos protestos, ela me deixou comer alguma coisa que não fosse um ser humano, mas era isso que eu mais desejava. Não queria incomodar Kaya porque sabia que ela estava cansada, então consegui fugir de Sora e peguei meu moletom negro. Saindo da casa, flocos de neve entraram em contato comigo e meu corpo tremeu. Percebi que a louca se aproximava da janela e então vesti o sobretudo rapidamente e caminhei apressadamente até a civilização mais próxima. Me perguntei o que estaria acontecendo com ela e o que queria comigo. Geralmente nossa relação era de ódio, mas senti que algo havia mudado.

Algo estranho aconteceu e nós passamos a ser amigos. Mesmo sabendo que nosso ódio nunca foi o suficiente para destruir um ao outro. Ela havia me ajudado junto com os gêmeos e infelizmente eles passaram a ser importantes para mim. Pessoas gentis apareceram justo quando o que eu mais queria era a solidão. O ritmo da neve aumentava à medida que eu me aproximava da cidade. Pelo visto, minha aparência ainda chamava muita atenção. Mesmo as pessoas tendo me visto algumas vezes, elas nunca se acostumavam comigo. Minha aparência era realmente estranha. Olhos claros e cabelos negros. Em Blizzard predominava o ruivo e o loiro. Mas essas pessoas descendiam do meu clã. Meu pai tivera muitos bastardos antes de morrer. Mamãe possuía cabelos negros, papai já era ruivo. Então a maioria dessas pessoas carregava um pouco do meu DNA ancestral. Olhei para cima e cheguei à conclusão de que o sol não iria surgir entre as nuvens. Estava tudo cinza.

Percorri até o segundo centro da cidade, passando pelo bosque e por alguns transeuntes apressados. Cercado por cafés, restaurantes e pequenas livrarias, o segundo centro de Blizzard era incrivelmente belo. Mas as pessoas preferiam frequentar o velho bosque centenário. O cheiro de café invadiu minhas narinas e me fez lembrar o dia em que frequentei um desses lugares com Sora. Novamente a lembrança dela em minha cabeça. Afastei o pensamento com o objetivo da caça. Olhei ao redor para me certificar de que o movimento diminuía cada vez mais quando a nevasca aumentava. Passei por uma loja pequena e senti algo estranho. Calafrios. Olhei para aquele lugar estranho e na porta uma placa avisava que estavam fechados. Raios e Luar era o nome do recinto. Passei adiante e senti o cheiro da velha Lisander, então ela devia morar na antiga cabana da esquina. Mas ela já estava morta. Um grupo de crianças brincava ao redor de um salgueiro.

Como se ele soubesse que meus pensamentos desejavam coisas ruins, ele surgiu como um pária sem destino. Seu rosto branco destacava-se diante dos demais, e os olhos estavam penetrantes como sempre. Billy sorriu para mim, como se percebesse o que eu pretendia fazer. Seu casaco verde estava bem passado e a barba feita, talvez estivesse hospedado em algum hotel próximo. Gostei de sentir o abraço de meu amigo, mal tivemos tempo para conversar desde nosso último encontro. Perguntei como estava indo sua vida, e ele me tranquilizou dizendo que estava tudo bem. Pude evidenciar sua afirmação observando como ele estava bem vestido e alimentado.

- Por que não larga daquela garota esquisita e vem viver comigo? Gosto da sua companhia – ele me direcionou um olhar vago, como se quisesse confessar algo. – Nero eu... eu fui ao um psiquiatra... e... e...

- Calma – segurei seus ombros e o fiz me fitar, ele carregava um semblante assustado. – Quer sentar e me contar com calma?

- Não. Ele me disse que eu mato pessoas... eu não faço isso... – sua voz vacilava.

- Não entendo – murmurei. – Nós matamos juntos, lembra?

- NÃO! EU NUNCA MATEI NINGUÉM! EU NÃO TENHO CORAGEM! EU NÃO SOU UM MONSTRO.... EU NÃO SOU UM MONTRO! – o joguei contra a parede e o fiz calar a boca, pois seus gritos faziam eco.

- Billy? – eu sabia que meu amigo não estava ali, que apenas parte de sua memória funcionava, supus que a visita com o psiquiatra o tivesse afetado. – Você vai ficar aqui. Sentado. E me esperar. Tudo bem? Pode fazer isso?

Ele assentiu. Estava catatônico. Temi que ele fizesse algum mal para alguém, mas não era isso que eu estava para fazer? Enquanto andava para longe, observei que ele continuou parado no banco, fitando o vazio. Um grupo de crianças brincava ao redor de um salgueiro, me aproximei com cautela e as observei enquanto suas bochechas ficavam vermelhas por conta do frio e cansaço. Me senti estranho. Não queria matar nenhuma daquelas crianças. O grande campo abrigava alguns bancos e salgueiros. Tudo era branco. Sentei sob um banco debaixo de um salgueiro torto quando uma bola vermelha veio parar em meus pés. Segurei a bola e observei enquanto uma garota estranha surgiu timidamente para pegá-la. Observei seus traços nervosos e decidi que seria meu café-da-manhã. Ela se aproximou timidamente e estendeu os braços.

- Por favor senhor, pode me devolver a bola? – seus óculos enormes embaçavam quando ela falava. – Por favor?

- E para que quer essa bola? Já não é grandinha demais para essas coisas? – indaguei.

- O que? Já tenho dezesseis anos e sou babá daqueles monstrinhos! – ela apontou para as crianças. – Pode me devolver a bola?

- Pode me dizer seu nome?

- Por que você quer saber? – ela deu um passo para frente em forma de desafio. – Me devolve essa bola.

- Me chamo Nero. Posso saber seu nome?

- Holly. Me dá a droga dessa bola! - grunhiu.

- Mas é claro – levantei e estendi meu braço, ela segurou a bola e aproveitei a oportunidade para atacar. – Foi um prazer Holly.

Apaguei ela com um soco no estômago. Carreguei a garota até a floresta e devorei seu sangue com muita rapidez. Estava uma delícia. Sangue jovem era sempre bom e quente. Larguei seu corpo ali mesmo, sem muito interesse em escondê-lo. Limpei o sangue do rosto e caminhei de volta até Billy. Ele me acompanhou sem protestar até a casa. Eu sabia que Lili e Kaya não iriam gostar daquilo, elas sabiam que Billy era um assassino insano. A nevasca já se tornava quase insuportável. Parei algumas vezes quando as rajadas de vento se tornavam mais intensas. Cheguei na casa e tranquei a porta com um estrondo. Sora assistia televisão com Lieff e deu um salto quando me viu entrar.

- Que demora! – pigarreou. – Quero falar com você... quem é ele?

- Bem, isso eu já percebi. Esse é Billy, um amigo – bufei. – O que quer?

- Quero que me ensine a invocar as correntes – ela estendeu os braços. – E tem que ser rápido.

- Está bem, mas quero que saiba que não há segredo nisso. Basta você querer que elas avancem sobre alguém...

- É por isso que não estava funcionando. Eu estava tentando apenas conjurá-las, não havia ninguém para atacar ou proteger.

Fiquei grato por ela não ter feito muitas perguntas sobre Billy, que permanecia imerso em seus pensamentos.

- Isso é verdade. Posso te ensinar sim, mas vamos ter que fazer isso lá fora. Quer esperar a nevasca passar? – indaguei.

- Ah sim, tudo bem. Obrigado Nero – ela sorriu para mim e tive vontade de retribuir, mas não o fiz.

Meneei com a cabeça e subi as escadas. Deixei Billy deitado no quarto de Sora. Ele parecia anestesiado, talvez fosse efeito de algum remédio passado pelo psiquiatra. O cheiro da preguiça de Lili podia ser sentido de longe. Ela ainda dormia envolta nos lençóis. O tempo parecia parado. Ainda eram sete da manhã. Me joguei na cama e a fiz pular de susto. Ri enquanto ela resmungava e tentava me dar socos. Sua cara de sono estava hilária. Tentei beijá-la, mas ela acertou um chute em meu saco. Me encolhi de dor e resolvi deixá-la em paz. Lili tinha um péssimo humor matinal. A nevasca estava parando. Corri até a janela para ver quando Sora voltou a adentrar o quarto e me agarrou pelo braço. Quando fomos para fora, ela não aguentou ficar na nevasca e voltamos para dentro. Lili já estava acordada e tomava seu café com o irmão na mesa. Sentamos com eles e sorri para Lili, que me lançou um olhar fulminante.

- Você vai mesmo para o Saara Li? – perguntou Lili.

- Sim – Lieff segurou a mão de Sora e me senti incomodado com aquilo. – Ela vai comigo.

- Legal. Você ainda é virgem Sora? – Lili perguntou aquilo de uma forma muito casual, Sora engasgou com o leite e ficou muito vermelha.

- Sou - murmurou.

- É mesmo? – Lieff a encarou com uma sobrancelha erguida.

- Que tenso – ri debochadamente.

- Parem de falar sobre mim! Que droga – ela voltou a tomar o leite e me encarou por cima do copo.

Sorri para ela e dei uma piscadela. Ela estava constrangida o suficiente e eu gostava daquilo. A nevasca havia encerrado e fomos para fora. Ela parecia determinada, estava mesmo puta da vida. Mesmo perguntando o motivo de tanta raiva, ela não me disse nada. Segurei seus braços e rolei a manga de seu moletom para cima. As tatuagens eram idênticas as minhas. Passei as mãos por elas e a senti ficar tensa. Passei para detrás dela e voltei a segurar seus braços, posicionando-os em forma de ataque. Não pude deixar de aproveitar e ficar colado em suas costas. Seu calor era bom. Sora ainda tremia por conta do frio, mas seus braços teriam que ficar descobertos. Aproximei meu rosto de seu ouvido e pedi para que ela se concentrasse ao máximo.

- Pense em quem está te causando tanta raiva, isso vai ajudá-la bastante – sussurrei em seu ouvido. – Consegue fazer isso?

- Tá, tá bom. Acho que sim – ela começou a baixar os braços involuntariamente.

- Não – voltei a erguer seus braços até a altura da última costela e me aproximei um pouco mais dela. – Assim.

- Certo. O que faço agora? – ela virou o rosto repentinamente, quase colidindo com o meu. – Desculpa!

- Sem problemas. Agora é simples, você só tem que imaginar o ataque que elas vão se materializar – expliquei. – Se quiser posso mostrar como se faz primeiro.

- Seria melhor.

- Certo – descolei dela e me posicionei em sua frente. – Vai mesmo ficar aí? Pode se machucar feio.

- Finja que vai me atacar – pediu, suas bochechas já vermelhas por conta do frio.

- Está bem. Mas vou avisando, isso vai doer – adverti.

Ela passou os braços em volta da cintura e pareceu pensar.

-Vá em frente, eu aguento.

Me projetei em posição de ataque e lancei as correntes contra ela. Com leveza, as correntes foram a toda velocidade contra ela. Percebi que o estrago seria grande se ela fosse atingida, então oscilei um pouco para o lado para evitar um baque maior. Uma das correntes atingiu a cabeça de Sora, fazendo-a cair para o lado. Não tive culpa. Ela pediu aquilo. Ficou um machucado feio. Ela levantou furiosa e andou até mim, me acertando um tapa no rosto. Também revidei o tapa. Observei enquanto a marca dos meus dedos começava a aparecer em seu rosto enquanto o meu também começava a arder. Ela socou meu peito e percebi que já começava a ficar bastante furiosa. Aproveitei o momento e passei o dedo no corte em sua testa e o levei até a boca.

- Não prove o meu sangue! – ela socou inúmeras vezes meu peito até que segurei seus pulsos e a joguei no chão. – Estúpido!

- É tão fraca que não consegue fazer algo tão fácil quanto invocar a própria defesa! – gritei.

Fui atingido por uma bola de neve na cara e depois por algo muito mais pesado. Cai no chão e vi que ela finalmente havia me acertado com suas correntes. Limpei o sangue da boca e corri rapidamente até ela. Lancei minhas correntes contra seus pés e a arrastei até que um monte de neve estivesse sobre ela.

-Acho melhor parar por aqui, não quero te machucar. Você já aprendeu...

Fui agarrado repentinamente por suas correntes. Estavam quentes e mais fortes. Sora entrelaçou meu corpo com elas e me deixou sem qualquer reação. Fui arremessado com muita força e fúria sobre o salgueiro do quintal da casa. Não pude evitar de soltar um grunhido, porque realmente doeu bastante. Fiquei imóvel. As correntes me soltaram e fiquei largado no chão. O frio da neve estava amenizando a dor nas costas. O salgueiro ficou inclinado. Ouvi passos apressados na neve e o rosto preocupado dela apareceu em meu campo de visão.

- Ei! Você está bem? – ouvi ela gritar e fechei os olhos para fazer um pouco de drama.

- Aaah, está doendo... – rolei para o lado para esconder o riso.

Sora ajoelhou-se até mim e tocou onde estava doendo bastante. Dei um pulo e segurei seu braço, fazendo-a cair também.

- Nunca pense que o inimigo está derrotado, ele pode estar apenas fingindo – prendi seu corpo com o meu e ri da sua cara de ódio. – Não precisa de tanto alarde, estou bem.

- Ah sim, que bom e obrigado pela dica! – passei o nariz por seu pulso e senti o cheiro do sangue. – Posso?

- O que? – pigarreou.

- Posso te morder? – mesmo tendo acabado de me alimentar, minha boca salivou com seu cheiro.

- Mas você tinha acabado de...

- Só quero provar. Você está com um cheiro muito bom hoje. Posso? Por favor.

Ela olhou para minha mão segurando seu pulso e assentiu. Me recostei no salgueiro e a puxei para perto. Ficando meio nervosa com a aproximação, ela tentou afastar-se um pouco, mas segurei seu braço com força, fazendo-a ficar onde estava.

- Se aproxime de mim – pedi, não tirando os olhos dos seus.

- Aqui já está bom...

- Eu mandei você se aproximar - grunhi.

Ela se aproximou com timidez e ficou entre minhas pernas. No fundo sabia que ela não era tão durona assim. Rocei o nariz sobre seu braço e cheguei até o pulso, fazendo pressão com os lábios ali. Lambi sua pele fina e cravei minha presa bem rápido para que ela não sentisse dor. Sora grunhiu baixinho, mas depois relaxou. Seu sangue me deixou com vontade de mais. Segurei sua cintura e a puxei para mais perto até que ficasse colada em mim. Antes que reagisse, entrelacei uma de suas pernas ao redor da minha cintura e puxei sua cabeça para mais perto. Lambi seu pescoço e o mordi. Sora não fez menção de reagir, apenas deixou que eu me alimentasse dela. O sangue vinha a golfadas e escorria por meu queixo, manchando seu moletom branco. Era como se eu tivesse beijando. De repente as recordações da noite em que nos encontramos pela primeira vez voltaram todas ao mesmo tempo. A noite em que adoeci e morri. Aquela maldita noite.

O rosto de Sora apareceu em cenas aleatórias. Seu rosto e cabelos loiros apareceram sorrindo para mim enquanto corria alegremente até o moinho. Eu não lembrava daquilo. Lembrava de quase tudo depois daquela noite, mas era como se Sora tivesse sido apagada de mim. Outra vez o seu rosto sorridente, dessa vez deitada ao meu lado. Retirei a boca de seu pescoço e mordi o outro lado. Ela grunhiu dessa vez e tentou se afastar, mas eu já havia mordido. Novas emoções e lembranças me atingiram. Era como se o antigo Nero estivesse despertado e tentasse reivindicar seu lugar novamente.

- O que está acontecendo Nero?

- Você, quem foi você? – indaguei, ainda lambendo seu pescoço. – É impossível que não lembre de nada... nós já nos conhecemos faz tempo...

- Espere, está me dizendo que viu algo sobre nós? – ela apertou meus ombros e me encarou. – Nero, o que você lembrou?

- Não sei ao certo, mas você apareceu em quase todas essas lembranças que eu não lembrava. Juro que não lembrava de nada. Parece que você foi deletada da minha vida... por que?

- Não lembro nada. A não ser sobre a noite em que meu corpo foi destruído na fogueira e novamente Grendel colocou minha alma dentro de um cadáver... ele deve saber de algo.

Voltei a puxar seu pescoço para mim e suguei mais alguns goles de sangue. Não iria me preocupar com aquilo no momento, eu só queria aproveitá-la ao máximo. Seu sangue me trazia recordações e prazer. Não pude deixar de ficar excitado com aquela perna em minha cintura. Deitei ela no chão e lambi seu pescoço completamente ensanguentado.

- Pare com isso, que coisa. Você me mordeu toda, prometeu que ia ser só o pulso – bufou, tentando levantar.

- Não prometi nada – senti vontade de morder seu ombro e o fiz, ela grunhiu alto e tentou levantar. – Só mais essa, eu juro.

Ela ficou quieta e deixou que eu sugasse mais um pouco de seu sangue. Adorei a sensação que era morder seu ombro macio. Rasguei um pouco o moletom para não atrapalhar. Novas lembranças vieram. Ela segurava uma rosa vermelha debaixo do queixo. Seu sorriso possuía presas afiadas como as minhas. Removi as presas e olhei preocupado para ela. Sora me olhou com preocupação já esperando ouvir o pior.

-Você era...

- Por que será que sempre quando te encontro você está nos braços de outro homem menos nos meus? – fui interrompido por Lieff, que olhava preocupado para ela e estendia a mão para mim. – Quer ajuda? Acho que ela pode doar sangue mais tarde.

- Ah, claro – segurei sua mão e saí de cima de Sora. – Falo com você mais tarde.

Ela assentiu e vi Lieff carregá-la para dentro. Mesmo com um olhar vago, conseguimos nos encarar até o último momento. Algo de muito errado havia acontecido. Era como o tempo que nunca se foi. Ela havia saído da minha vida de forma forçada, e eu a queria de volta.

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