66| Aliança
SORA
Decididamente eu me encontrava na parte mais sombria de Tenebris. Estava assustada e sozinha. O que quer que tenha me arrastado até ali, boa coisa não queria comigo. Paredes escuras de formação rochosa cercavam o local. O cheiro de água salobra e enxofre me fizeram deduzir que estava em uma caverna bem profunda. Ao recobrar a consciência, bati a cabeça ao tentar levantar. A fobia de lugares apertados veio quando me movi para os lados e percebi que estava presa em um túnel. Gritei por socorro. Nada. Apenas o leve som da água que começava a adentrar no túnel. Consegui virar de bruços e acabei ralando as costas e os braços, mas aquilo não era problema. A água já batia em meu rosto quando finalmente consegui me arrastar até uma saída. Estava saindo de uma cilada para entrar em outra. A saída estava totalmente submersa, mas precisaria nadar se não quisesse morrer afogada.
Mergulhei no profundo lago cavernoso de águas frias e escuras. O contato imediato com a água congelante me fez ter cãibras na perna esquerda. O choque foi horrível. A dor, lancinante. Tentei inutilmente nadar para cima, mas o movimento com a perna direita agravou a dor na da esquerda. Comecei a afundar aos poucos. Tentei ao máximo me concentrar em encontrar alguma saída, mas não consegui ver nada dentro daquele lago. Pensei em desistir. Talvez se morresse logo tudo ficaria bem. Tudo ficaria bem para todos. Meu corpo foi ficando mais frio. Relaxei os músculos e deixei que a água me levasse para o fundo. Pensei em Lili, sabia que ela corria perigo se eu não morresse, Grendel havia me contado sobre o pacto de Nero com Shaya. Grendel. O rosto dele apareceu diante dos meus olhos, estava alucinando? Pequenas bolhas de ar saiam da minha boca quando o rosto de Grendel transformou-se no de Lieff.
Chorei. As lágrimas fundiram-se com a água. Tudo foi ficando mais escuro à medida que meu corpo chegava ao fundo do lago. Soltei o resto de ar que ainda restava em meus pulmões e fechei os olhos. Então era assim que era morrer. Não era tão ruim. O Sr. Morte viria para me buscar? De repente algo esbarrou em minhas costas. Mas estava fraca demais para me importar com o que quer que fosse. Continuei de olhos fechados e aguardei a morte. Já não sentia mais a dor na perna. Já não sentia mais nada. Algo que parecia ter tentáculos me agarrou pela cintura e senti que estava sendo puxada para cima. De repente uma lufada de ar invadiu meus pulmões, me fazendo arquejar e gorgolejar ao mesmo tempo. Fui arremessada contra o chão frio. Comecei a ter espasmos. Era como se a morte estivesse indo embora, dando mais uma chance para a vida. Pensei ser Grendel que estava parado diante de mim.
O estranho esperou que eu vomitasse toda a água salobra de dentro de mim. Estava tudo muito frio. Me recolhi ao lado de uma rocha gelada e chorei. O estranhou agachou-se até mim e me estendeu um casaco que parecia ser como o de Grendel. Aceitei a roupa e olhei para ele. Era um garoto de aparência comum. Algumas espinhas no rosto e all-star surrado. Ele olhava preocupado para mim. Tentei debilmente falar algo, mas acabei enrolando a língua.
- Calma. Está tudo bem Só Sora Bloom Ok – reconheci aquela frase de algum lugar. – Precisa de ajuda para levantar?
- Orion? – perguntei enquanto ficava de pé. – O que me arrastou para fora do lago?
- Fui eu – ele me lançou um olhar bondoso. – Eu sou aquela serpente horrenda.
- Prefiro você em forma de serpente, me sinto mais segura – me aproximei do garoto. – Orion?
- Sim, sou eu.
- Como se chama de verdade? O que você é?
- Uma pergunta de cada vez Só Sora Bloom Ok – ele passou um braço sobre meus ombros e começou a caminhar comigo para o que parecia ser à saída da caverna. – Você pode me chamar do que quiser. Tenho vários nomes na verdade.Sam, Micah, Orion... já me chamaram até de Belial! Me transformo em serpentes por que gosto delas, principalmente as do gelo.
- Você não parece ser uma pessoa ruim, então por que está aqui em Tenebris? – indaguei.
- Pie precisa de mim. Sabe, melhores amigos nunca se separam – ele falava com um sotaque estranho. – Vamos até ela.
- Por que você fala dessa maneira? Estamos indo ver quem?
- Você faz muitas perguntas Só Sora Bloom Ok. Eu vivi na idade-média, então acho que é por isso...
- Quem é Pie? – não pude evitar de fazer tantas perguntas.
- Estamos falando de Shaya.
Gelei. Parei abruptamente e olhei assustada para ele. Não queria encontrar com a Deusa sombria, ainda não estava preparada. Ele me lançou mais um olhar de compreensão e bondade. Balancei a cabeça para os lados em negativa. Mas ele apenas sorriu e continuou me arrastando para a saída que estava a poucos centímetros de nós. Não esperei ver uma luz, ou então qualquer outro tipo de claridade, porque estávamos na parte séria do submundo. Adentramos em um túnel imenso e escuro. Era incrível como ele conseguia nos guiar sem precisar de alguma lanterna. O único som era de nossos passos e pingos de água.
- Você não entende, não quero ir ao encontro de Shaya. Estou assustada, ela vai me matar...
- Matar você? – ele gargalhou e som da sua voz reverberou pela caverna. – Ela não pode matar a si mesma. Você agora é somente ela.
- O que? Estou confusa! Não entendo nada disso, se ela quer me ver morta então porque não me mata logo de uma vez já que tem essa oportunidade?
- Ela não pode. Uma Deusa não pode matar. Até mesmo Shaya tem seus superiores. Uma nephilim não tem o poder suficiente para matar um mortal desnecessariamente, e principalmente por uma causa pessoal...
- Como assim? Eu sou mortal? Acho que não...
- Acho que sim. Chegamos – ele me empurrou para dentro do que parecia ser outra caverna. – Boa sorte. Shaya não é tão má quanto dizem.
Ele fechou uma porta imensa e me deixou sozinha. Pensei em ficar encolhida no canto por que estava tremendo de medo. Caminhei a passos lentos até chegar ao um corredor iluminado por tochas. Peguei uma tocha e andei por todo o corredor até chegar a outra caverna. Essa não era tão escura e tinha uma grande abertura no teto. Abaixo da clareira, lá estava ela. Sentada solenemente em um trono de ossos, Shaya me olhava sem nenhuma expressão no rosto. Andei timidamente até ficar a uma distância considerável entre mim e ela.
- Olhe só que patética. O bichinho de estimação de Will está com medo? – ela sorriu maliciosamente. Não consegui falar nada, estava paralisada de medo. – Shadoe? Atende por esse nome?
- N-não... – gaguejei.
- Então é Sora? – meu estômago embrulhou quando ela levantou suavemente. Era linda. Cabelos negros caindo até os pés e correntes que pareciam ser pesadas nos braços. – Venha até mim garota patética.
Caminhei até ela. Não me importei com seus insultos. Lembrei que ela aparecia em meus sonhos quando criança. Ela dizia ser minha mãe e que eu deveria fazer coisas ruins. Matei quatro garotas e minha família por causa dela. Senti raiva. Senti medo. Senti saudade. Queria chamá-la de mãe. Estava tudo confuso. Meus cabelos loiros de repente ficaram negros. Não parei para surtar, isso sempre acontecia quando estava muito furiosa. Cheguei bem próximo a Shaya, ela era um pouco mais alta do que eu. Vi meu reflexo em seus olhos azuis. Ela passou a mão por meu rosto e desceu para onde havia uma escritura em meu peito. Somente naquele momento eu notei aquela cicatriz. Então lembrei do ritual que Grendel fizera para salvar Lieff. Seria esse o motivo? Shaya teria me arrastado até ali por causa da separação da minha alma?
Ela passou o dedo pela escritura e sorriu. Era estranho vê-la sorrir de outra forma que não seja maldosa e sarcástica. Ela desprendeu a fivela que segurava seu top preto e baixou os braços. Retirei o véu de seda de seu ombro e vi que ela também tinha uma cicatriz abaixo da clavícula. Estava escrito em latim, e eu não compreendia aquela língua. Então ela sussurrou para mim. "Tua alma em meu peito agora vive, tu me pertences William Lit." Era lindo. Então o mesmo deveria estar escrito no peito de Lieff. Não pude evitar de sentir ciúmes de Grendel, então ele realmente fora casado com ela. Passei o dedo sobre sua cicatriz. A deusa nada fez além de suspirar. Não pude evitar de me sentir igual a ela. Embora nunca tivesse falado com Solária, sabia que tinha muito pouco dela. Senti ódio. Senti tristeza. Senti amor. Minha mãe.
Matei quatro garotas e minha família adotiva. Esse era o preço do ódio. Shaya me fez matar pessoas que eu odiava, mas também as que mais amava. Lágrimas começaram a rolar por meu rosto. Ela ainda me olhava com sua expressão impassível. Me odiei por não conseguir odiá-la. Me odiei por só conseguir amá-la. Lembrei dos animais negros e estranhos que materializavam-se para me machucar. Lembrei de Nero. Ele morrera e fora amaldiçoado por minha culpa. Shaya limpou minhas lágrimas e me fez fitar seus olhos azuis. Eu era a sua parte boa. Ela estava incompleta por minha causa. Tive vontade de morrer para tudo ficar bem. Não iria mais suportar vê-la sofrer por mais tempo por que eu estava viva.
- Eu me rendo... – murmurei. – Sei que não pode me matar, mas Nero pode. Eu o farei fazer isso. Estou pronta para acabar com todo esse sofrimento...
- Não mais – sua voz tornou-se suave.
- Não mais? – indaguei.
- Não quero te matar... somos iguais Sora – meu nome soou estranho quando ela pronunciou, como se nunca tivesse dito. – Alie-se a mim.
- Por que você aparecia para mim, e me mandava fazer coisas ruins? – indaguei.
- Entenda, eu nunca fiz isso. Aquela era Solária, covarde demais para aparecer para você na sua real forma. Ela queria te envenenar contra mim desde o começo.
Ela tinha razão. Éramos iguais.
- Me ajude a destruir Solária... seja minha aliada – o ar que saia de sua boca batia em meu rosto e me fazia ter calafrios. – Eu sou sua verdadeira mãe.
- Mamãe... – ela pareceu retrair-se quando eu a chamei daquilo. – Por que Micah me disse que Grendel me criou?
- Grendel? Você chama ele pelo primeiro nome? – seu tom se tornou mais arredio. – Alie-se a mim, mas não entre na vida do homem que amo.
Aquilo foi um aviso. Entendi o ultimato. Ela estava com ciúmes.
- Como vou saber que você não vai me matar depois disso? Afinal, o que você mais deseja está dentro de mim – aquela pergunta pareceu desconcertá-la.
- Tem a minha palavra de Deusa. Farei como Will fez a princípio. Quando fomos banidas para o mundo celeste, Will foi o responsável por recolher parte de nossas almas. Bem, ele poderia fazer o que quisesse com elas. Então ele foi até Statera e recolheu o corpo de uma menininha que acabara de morrer ao nascer. Ele depositou nossas almas nesse cadáver, e o deixou debaixo da estátua do Trono de um orfanato... bem, esse foi o segundo cadáver, que é você agora. Mas teve outro, um mais antigo, o que foi queimado antes de sua memória ser deletada. Você e Nero, o sonho. Tudo aconteceu, são apenas lembranças.
- Mentira... – cambaleei para trás, não queria acreditar que ele havia escondido isso de mim.
- Tudo que falo é a mais pura verdade. Você era um cadáver. Por que acha que ele sempre te acompanhou desde a infância? Ele sentia-se culpado. Algumas vezes pensou em te matar, mas quando tentou já estava apegado demais a você.
Lembrei quando tinha doze anos e cai inexplicavelmente no lago gelado em minhas férias no Canadá. Sempre soube que algo havia me empurrado. Foi quando comecei a ter medo de Grendel. Foi quando ele se afastou e sumiu. Dobrei os joelhos e vomitei. Shaya foi até mim e me colocou pé. A verdade estava me machucando, mas precisava ser dita.
-Alie-se a mim...
- Se eu me aliar a você... o que acontece? – gaguejei.
- Você me ajudará a fazer Solária pagar por tudo que ela fez. Sora, ela matou nossa mãe... e papai não aguentou viver sem ela e se suicidou anos depois. Ela tem que pagar, ela ainda continua má mesmo que sua parte ruim não esteja mais nela. Me ajude, forme uma aliança comigo.
Não pensei duas vezes.
-Eu aceito. Quero que me torne sua aliada! – murmurei.
Sabia que estava fazendo aquilo por impulso. Sabia que estava movida pela raiva. Queria ver Grendel surtar ao saber que estava aliada a quem queria me matar. Shaya estendeu meus braços e traçou uma linha invisível em meus dois antebraços. Senti algo queimar, e logo tatuagens como as de Nero apareceram. Correntes negras e uma lua negra em cada palma da mão. Shaya ergueu meu rosto e me beijou. Sabia o que significava aquilo. Era um pacto. Agora eu definitivamente estava nas graças da morte. Pensei em Grendel. O ódio só aumentava. Agora era uma aliada de Shaya. Agora podia fazer coisas ruins. Ele me pagaria caro. A Deusa materializou uma espécie de pó azul e soprou em meu rosto. Um turbilhão de cores me fez apagar e acordar em meu quarto. Estava de volta a Blizzard. E trouxera a verdade comigo.
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