63| Casamento Vermelho


Aquele dia não seria comum. Até mesmo o majestoso sol ousou ficar por mais tempo no céu, fazendo as nuvens adquirirem um tom de azul e amarelo. Toda a neve havia sumido com o inverno. Blizzard agora seria uma cidade de primavera pelos próximos meses. As flores brotaram, exibindo suas pétalas de mais variadas cores. Tudo estava perfeito para o grande casamento da Donzela Errante, esse seria o mesmo dia em que a Donzela Cruel iria para Oorus morar com sua avó Kruna Moon. Todo o reino estava em festa, pois era o casamento de Shaya. Todos trabalharam bastante para tornar a cidade mais receptiva para os nórdicos, e a primavera ajudou bastante. Os vales estavam descongelados e os lagos aquecidos. O estalajadeiro assou diversas tortas. As preferidas da donzela. Equilibrando-se sobre um pequeno banco, ela sentiu o cheiro das tortas e sua boca salivou.

A costureira Sowi trabalhava fielmente para a família D'Médici. O vestido de Shaya teve de ser reajustado pelo crescimento da donzela. Ela olhava-se no espelho e gostou do que viu. O vestido era branco e longo. Fios dourados foram traçados nas laterais. Em seus quinze anos, ela odiou estar vestida naquele vestido, mas naquele momento ela apenas sorriu. Pensou em Will. Pensou no que ele podia estar fazendo naquele momento, se estaria vindo ao seu encontro. Todo o tempo que passaram juntos, eles aprenderam coisas um com o outro. Will ensinara Shaya diversos ataques e conjurações. Juntos formavam um perfeito par de poderosos celestiais, mas não habitavam nenhuma das dimensões paralelas. A felicidade do casal era tamanha, que causava ira e inveja em uma pessoa que dizia estar feliz por eles. Solária apenas aguardava o dia em que seu nome seria lembrado na história de Blizzard.

- Está ficando muito bom Sowi! – exclamou Shaya, ao receber mais uma alfinetada. – Só não me pinique tanto.

- Obrigada princesa. Parece que foi ontem que você experimentou pela primeira vez esse vestido – Sowi sorriu. – Agora é uma mulher, antes não gostava da ideia de casamento.

- As pessoas mudam de ideia sabia? – resmungou Shaya. Ela corou ao lembrar que era verdade, ela odiava casamentos.

- Sei, mudou de ideia porque ama o jovem príncipe. Não é mesmo? –Sowi começou a trabalhar no véu dourado. - Ele mudou mesmo nossa garotinha.

- Eu o amo demais Sowi – admitiu, sorrindo para si mesma. – Mal espero para vê-lo amanhã.

- Mal espero por esse casamento. Mal espero para ver os filhos de vocês. Não precisa ter medo princesa, o primeiro encontro é sempre doloroso, mas logo vocês vão ter crianças lindas.

Shaya baixou a cabeça e tentou controlar o riso. Sabia que estava vermelha e isso podia denunciá-la. Recordou da primeira vez que fez amor com Will. Eles passaram a se encontrar no mesmo lugar quase todos os dias. Se os pais soubessem disso, ela se consideraria morta. A Garganta do Diabo era onde costumavam se encontrar para fazer amor. Era uma gruta distante do povoado. Ela sentiu saudade de quando ainda podia se aventurar pela floresta com ele.

- Minha filha foi violada antes do casamento e agora é uma solteirona – resmungou Sowi.

- Gosto muito de Soledah, é uma ótima amiga.

- Isso não fazer com que algum homem a queira...

- Ela não precisa de homem algum para ser feliz. Sowi, ela lhe deu um neto maravilhoso. Você devia arrepender-se das coisas que fala. O único homem na vida dela deverá ser seu próprio filho – Shaya desceu do banco e segurou as mãos de Sowi. – Você tem uma linda família.

Will cavalgava a todo vapor em cima de seu cavalo branco. César era um enorme cavalo de crinas negras. O príncipe ansiava chegar o mais rápido possível para ver Shaya. Quase dois anos distante da donzela foram torturantes para ele. Mas agora eles iriam casar e mais nada poderia separá-los. O doce aroma de rosas já chegava a suas narinas. A morna brisa da primavera já havia chegado a estrada que ligava Oorus, o segundo reino, a Blizzard. Os vales já estavam floridos e as árvores davam seus frutos. Eles pararam sobre a sombra de uma enorme árvore de folhas laranja para descansar da longa viagem. César aproveitou a pausa e começou a comer a relva fresca. Will retirou algumas maçãs de uma macieira e distribuiu para os amigos. Não ficou nenhuma com ele. A morte nunca tem fome.

- Por que não come Will? – indagou Migh, um homem robusto de cabelos e barba ruiva. Seu elmo possuía apenas um chifre. – Precisa se alimentar.

- Não estou com fome...

- Você nunca está com fome – Migh analisou o príncipe. – Onde está seu antigo elmo?

- Está com minha esposa - ele sorriu ao usar aquele termo.

- Isso é só o começo. Vamos descansar?

Solária teceu seu melhor vestido. A adaga estaria pronta para hoje, mas ela decidiu usar a lança do pai. O primeiro seria hoje. Os outros dois ficariam para o grande dia. Ela desceu animada pelo corredor e foi até a cozinha, cumprimentado a todos com o seu sorriso amarelo. Era primavera, mas uma leve chuva morna banhou os vales de Blizzard. Ela bufou e teve que voltar ao quarto para pegar sua capa vermelha-sangue. Ao pegar a peça, lembrou que também havia esquecido o dinheiro para comprar toda aquela quantidade de veneno. Vestiu a capa e lançou o capuz sob a cabeça. Sorriu. Estava perfeitamente linda. O cabelo loiro com mechaS brancas formava uma trança grossa para o lado. O vestido branco de seda formava um decote nos seios. A capa vermelho-sangue cobria-lhe os braços. Ela amarrou a pequena fita para juntar as pontas da capa. Estava uma perfeita Flor da Noite, eram como chamavam as prostitutas mais caras.

Ela não importou-se com seu visual, pois estava a mais bela de todas. Antes de sair, Solária teve que retirar a capa. Pois ela ainda não deveria estar vestida para matar. Não queria que ninguém a visse usando uma peça chamativa, isso a denunciaria na hora certa. Recolhendo as moedas de ouro e colocando a capa dentro de uma sacola de couro, ela saiu a passos apressados do quarto. Seria hoje o seu último dia em Blizzard. Por isso todos lembrariam seu nome. Correu apressada até a ladeira onde era a casa do ferreiro. A chuva fez o vestido pregar em sua pele, fazendo os seios ficarem um pouco mais a mostra. Hebert, o ferreiro, entregou a adaga pela metade do preço. Ela saiu triunfante da ferraria e correu para seu próximo destino, não importando-se mais com a chuva morna. Todos os frascos de veneno feitos com Cartor Plant (mamona), a planta mais venenosa dos quatro reinos. Minerva abriu a porta para a princesa entrar.

- Pegue tudo e vá embora - grunhiu Minerva.

- É melhor começar a falar direito comigo - sibilou. - Peça perdão pela impertinência.

- Quer o veneno ou não? Escute aqui mocinha, comigo a coisa funciona diferente – Minerva arrancou a bolsa das mãos de Solária e começou a jogar os frascos de veneno dentro. – Não quero mais que volte a me atormentar entendeu? Eu mato você se voltar a me importunar.

- O que você tem contra mim? – guinchou. – Todos me adoram!

- Todos fingem que te adoram. E sabe por que? Porque eles possuem medo – ela jogou a sacola no peito da princesa. – Você é ruim. É podre por dentro e não presta. O que vai fazer com esse veneno? Boa coisa não pode ser.

- Isso não é do seu interesse, velha feia! – ela jogou a sacola com o ouro sobre a mesa. – Olhe só o quanto eu te peguei, talvez com esse ouro você compre uma cara nova para você.

- Quem vê cara não vê coração. Já ouviu esse ditado? Acho que não, você está aprendendo a ler agora. É mesmo uma jumenta. Nunca irá comparar-se a sua irmã. Donzela Shaya, tão cheia de beleza e ainda assim possui um coração e um cérebro. Você não tem nenhum dos dois.

- Vá se foder! – a princesa saiu apressada, Minerva era a única que não intimidava-se com seu tom arrogante.

Ela correu até o castelo e entrou pela passagem secreta que descobriu de Shaya e Micah. Ninguém podia vê-la carregando algo suspeito. Tudo estava saindo perfeitamente como planejou. Ao entrar no quarto, deitou-se na cama e abriu um dos frascos de veneno. Era uma substância verde e pegajosa. Somente o cheiro a deixou tonta. Ela fechou o frasco rapidamente e o guardou com os outros. Escondeu a sacola em um buraco debaixo da penteadeira. Ouviu passos ecoarem na escada e apressou-se a trocar aquela roupa molhada. Vestiu rapidamente outro vestido branco e deitou-se na cama. Pegou um livro e fingiu estar lendo. Uma leve batida na porta denunciou que estava correta, alguém sempre vinha até seu quarto.

- Querida? Posso entrar? – era Arthur.

- É claro papai – ela colocou o livro de lado e sentou.

O rei entrou no quarto e sorriu ao ver que a filha estava lendo algo.

- Fico feliz que esteja se interessando pelos livros – ele sentou ao seu lado. – Está preparada para a sua partida amanhã?

- Eu adoro livros papai – forçou um sorriso. – Tudo já está pronto.

- Você sabe porque está indo para longe? – ele olhou para a filha e percebeu que o olhar dela estava em sua coroa. – Solária?

- Eu sei papai. Não fui uma garota boa – ela olhou para os próprios pés. – Já pedi desculpas.

- Matar sem motivo também gera a morte do assassino. Sabe que só não está morta agora porque é minha filha. Eu só quero o seu bem, você não é uma pessoa ruim.

- Então porque me manda para tão longe? – indagou, vendo o pai sorrir docemente.

- Por que você eu te amo, é por isso.

- Nossa, que amor...

- Está pronta para o grande dia?

- Mas é claro. Pensam que vão esquecer de mim? Eu serei lembrada para sempre – Arthur abraçou a filha. –

Papai, posso visitar sua sala de treinamento? Quero fazer isso antes de ir.

- Mas é claro querida. Fico feliz com isso.

Solária sorriu maliciosamente. Mas para os olhos de alguém que enxergava apenas o bem, a maldade da donzela passou despercebida. Ela esperou o pai sair e afastar-se o suficiente para que saísse escondida. Não havia ninguém no corredor, ela subiu as escadas com pressa e chegou rapidamente na sala de treinamentos. Um arsenal de armas de todos os tipos estava prostrado na parede, mas ela só tinha olhos para a pesada lança de ouro. Solária ainda não sabia que tinha força celestial no sangue, então achava que toda sua força era oriunda de ser filha do rei. Ela pegou a lança dourada e treinou alguns movimentos. O dia estava passando rápido. Ela ouviu quando a cavalaria de Will chegou a cidade, mas não foi até ele. Somente no dia seguinte ela o faria sentir sua fúria de quatro anos atrás. Ela desceu as escadas e voltou para o quarto, estava exausta. Dormiu pouco tempo, pois o reino estava em festa mesmo antes do casamento ter acontecido. Ela acordou com os sons dos festejos. Era a hora do primeiro.

Vestiu um vestido velho e rasgado que conseguira na cozinha. Seus belos vestidos também poderiam denunciá-la. Trançou os cabelos em duas tranças em volta da cabeça e os prendeu com pequenos grampos de ouro. Jogou a capa vermelho-sangue por cima e colocou o capuz. Sua máscara branca de porcelana estava perfeita em seu rosto. Somente o sorriso malicioso e os olhos frios estavam à mostra. Estava vestida para matar. Pegou a lança e saiu tranquilamente do quarto. Ouviu o que queria. Parece que Shaya e Micah estavam relembrando os velhos tempos. Os sons estavam aproximando-se, ela recostou-se na parede e aguardou. A luz da tocha bruxuleava e denunciava sua sombra. Mas ela não importou-se. Aguardou.

- Vamos logo! – ouviu Shaya gritar. – Ora, duvido muito que elas ainda estejam enterradas naquele lugar, é meio impossível.

- É claro que estão Shaya, ninguém tocou nelas – seu coração deu um salto ao ouvir Micah.

- Espere! – guinchou Shaya. – Olhe lá, está vendo? Tem alguém escondido ali.

- Tem razão...

- Apareça! – ordenou Shaya.

Solária saiu tranquilamente detrás da parede e sorriu para eles. Shaya e Micah olharam-se estupefatos para a figura bela e assustadora.

- Identifique-se – ordenou à donzela.

Solária nada falou. Fez uma reverência sublime para a irmã.

- Deve ser alguém do vilarejo, todos estão fantasiados e em festa...

Solária estendeu o braço e interrompeu Micah. Ela sorriu e fez menção para que ele dançasse com ela. Ele olhou para Shaya e ela lhe lançou um sorriso nervoso.

- Vai lá, ela quer comemorar – seus sentidos denunciavam perigo, mas aquela mulher não parecia ser perigosa. – Dança com ela.

Ele foi até Solária e juntos dançaram uma pequena valsa. Shaya olhava maravilhada para a bela dança que desenrolava-se diante de seus olhos. Solária estava a todo o tempo com a lança, e mesmo assim desenrolou seus passos muito bem. Ela sorriu para Micah e empurrou seu peito com a mão, ele cambaleou para trás, ela girou a lança nos braços e perfurou a barriga dele. Foi tudo muito rápido. De repente, ele segurava a lança entre as mãos enquanto gorgolejava, o sangue escorria pelo cabo da lança. Em sua boca, escorria sangue. Solária sorriu e retirou a lança abruptamente, enfiando na garganta de Micah. O garoto revirou os olhos e pendeu inerte. Somente a lança enfiada em sua garganta o mantinha de pé. Shaya olhava paralisada para o melhor amigo que acabara de morrer. Solária jogou o corpo de Micah contra a parede e com um último olhar para a irmã, ela soltou uma gargalhada aguda e correu.

A noite se foi tão rápida quanto veio. O crepúsculo matinal tonalizava o céu em laranja. Era como um entardecer em uma manhã clara. Tudo estava pronto, inclusive as tortas envenenadas que Solária havia colocado no meio da noite. O grande templo estava apinhado de pessoas. Shaya olhava-se no espelho. Pequenas olheiras estavam visíveis. A dor pela morte do melhor amigo ainda a atormentava, ele não a veria casar. Uma nova lágrima escorreu e foi amparada pela mão da mãe. Ignis cuidara da filha a noite toda. O enterro de Micah ficaria para depois do casamento, seu corpo estava sendo limpo e costurado.

- Vai ficar tudo bem querida – reconfortou Ignis. – Vamos descobrir que matou Micah e essa pessoa será punida com a morte.

- Eu sei mamãe. Não estou triste por que ele morreu, estou triste por ter sido uma covarde. Então logo a culpa é minha.

- Não quero que se culpe. Qualquer um ficaria em seu estado se visse o que você viu. Não fique tão triste no dia do seu casamento. Não fique triste por Will.

- Tudo bem, obrigada mamãe.

Vestida em seu vestido branco e véu dourado, Shaya caminhou com o pai até o templo. Todo o reino parecia estar presente. Ela sorriu quando viu Will prostrado no altar. Ele estava vestido com uma espécie de túnica negra. Seus olhares se encontraram e ele suspirou. Caminhado lentamente com o pai até o altar, ela ganhou força a cada sorriso que era lançado para ela. Seu amigo sempre estaria vivo em seu coração. Solária lançou um sorriso radiante para a irmã. O prazer de vê-la sofrer foi algo triunfante. Ao chegar ao altar, ela beijou Will e os dois ajoelharam-se diante de dois tronos dourados. Um para o rei e o outro para a rainha.

- Eu, Arthur de Médici Heaghar, primeiro de meu nome e Rei de Blizzard. Declaro oficial essa união matrimonial entre minha filha – ele sorriu para Shaya. – Shaya Aalis de Médici Heaghar e Grendel William Lit.

- Eu, Ignis Amée de Médici Heaghar, primeira de meu nome e Rainha de Blizzard. Declaro oficial essa união matrimonial entre minha filha, Shaya Aalis de Médici Heaghar e Grendel William Lit.

- Diante dos olhos do Trono, essa união está oficializada perante a igreja. Que o Trono os abençoe – bradou o sacerdote.

Shaya e Will beijaram-se solenemente, mas o que queriam mesmo era ficar a sós. O banquete iniciou-se e variadas tortas foram servidas. Shaya recebia presentes de todos os tipos e de várias regiões. Solária observava enquanto todos deliciavam-se com as tortas envenenadas. Quando percebeu que algumas pessoas começavam a cair, ela foi até a irmã e a abraçou com força. Por um breve momento, ela pensou em desistir. Mas já era tarde demais quando viu o salão repleto de pessoas agonizando até a morte. Logo seria descoberto. Ela arrependeu-se como um suicida na hora da morte. Ela sentiu-se como uma criança.

- Espero profundamente que seja feliz com seu amiguinho no inferno – proferindo sua sentença, ela fincou a adaga no coração de Shaya, depois a estocou no abdômen.

Will observou tudo com horror, jogando Solária para o lado. Pegou a esposa e sentiu a vida se esvair dela aos poucos. Pessoas caiam e espumavam sangue pela boca enquanto ele segurava Shaya nos braços. Ela tentou dizer algo, mas o sangue em sua boca a sufocou. Com um último olhar de agonia, ela olhou para Will e se foi. Arthur observava com horror enquanto Will chorava sobre corpo da filha. Ele olhou para Solária sem compreender o que ela havia feito. O caos estava completo. Haviam corpos vermelhos e inchados para todos os lados. Ignis também oscilou para o lado. Quando Arthur tentou ampará-la, ela já estava morta. Will segurou Shaya nos braços e soltou um grito que todo o reino lembraria para sempre.

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