47| Reencontro


DANIEL

Raiva e dor. Era isso que o querubim sentia em seu coração. A viagem de volta para Lumen não foi tão agradável com Lírica lhe dando sermões. Então tudo foi uma mentira? Ele não queria acreditar em nada do que aquele estranho havia dito, mas estava ficando difícil. Lírica tinha razão, Lili não ficaria sua vida toda esperando por um homem que estava morto. Mas dizer que o odiava? Aquilo era o que mais magoava. Era difícil não sentir suas emoções, a própria Solária não conseguia fazer aquilo. Ele já estava começando a duvidar das condutas de Lumen, estariam todos felizes por estarem presos para sempre em um lugar que se dizia ser bom o suficiente para aqueles que viveram com dignidade e pureza? Para ele aquilo era uma tortura, pois viver apenas para designar uma função não era viver, e sim servir para aqueles que nunca souberam de sua existência. Desejo de libertação era tudo o que ele conseguia ver nos olhos dos habitantes de Lumen, algo estava muito errado naquele lugar.

Quando finalmente chegou a terra pura, era assim que ele chamava ironicamente Lumen, pediu para Lírica deixa-lo sozinho. Não era difícil encontrar um lugar onde ninguém o encontrasse, pensou no Morro Uivante, mas a Deusa sempre estava meditando por lá. Cansado demais para sobrevoar até as montanhas ele foi para uma parte um pouco sombria de Lumen. Era um pequeno pântano que sempre possuía nuvens acinzentadas pairando por cima de uma enorme sequoia de folhas vermelhas. Para alguns anjos aquele lugar foi um erro, acreditavam que quem nele entrasse seria transportado para Tenebris e nunca mais voltaria. Besteira. Pensou Daniel. Se se isso fosse realmente verdade, ele desejou profundamente que fosse realmente levado para outro lugar que não fosse aquela prisão.

Recolheu as asas que já estavam dormentes por causa da longa viagem até Tenebris e deitou-se sobre a relva escura e úmida. Não era um lugar feio, pelo contrário, era muito bonito. Os outros celestes que não sabiam por onde olhar, o lugar tornava-se lindo para aqueles que sabiam observar com cautela. Daniel ansiou que chovesse. Sempre em momentos de estresse ele corria para debaixo da chuva, era o seu melhor tratamento. Não, estava enganado. Lembrou com amargura que seu melhor calmante era Lili. Como se soubesse que o querubim sofria, o lugar tornou-se mais frio e ar mais denso. As nuvens acima da enorme sequoia adquiriram um tom mais escuro e pequenas gotas geladas começaram a cair. Aquele seria o reflexo dos sentimentos de Daniel? Tudo indicava que sim, o anjo sofria.

Ele retirou sua armadura e a jogou no lago de águas turvas. À medida que sua fúria ia aumentando, as águas do lago ficavam mais agitadas e o vento açoitava com agressividade as árvores de menor porte. Daniel voltou a deitar-se sobre a relva, estendeu os braços para os lados e deixou que a chuva levasse toda a sua ira embora. A imagem de Lili voltou para atormentá-lo, sem perceber ele começou a chorar. Suas lágrimas mesclavam-se com as gotas de chuva e escorriam para o chão. Sentiu-se um completo idiota por chorar daquela maneira, ela não merecia o seu sofrimento. A névoa grossa começava a embaçar sua visão, o ambiente também estava começando a ficar mais frio e melancólico. Aquele lugar transmitia para quem quisesse ver os sentimentos confusos e magoados de Daniel.

~.~.~

Solária encontrava-se sentada no enorme galho da sequoia base. Não aguentava mais tanta espera, temeu por seus amigos. Pressentiu que algo ruim havia acontecido, confiava profundamente em Lírica, mas sabia que Daniel não estava totalmente pronto para um combate verdadeiro. Já era final de tarde quando finalmente avistou as asas flamejantes de Lírica, vindo em sua direção. Ela procurou pelo querubim, mas não o viu em lugar algum, para seu total desespero Lírica estava voltando sozinha. Seu coração apertou. Aquilo só poderia significar uma coisa. Daniel fora abatido. Lágrimas brotaram de seus olhos, ela não queria demonstrar fraqueza na frente de sua melhor tenente, mas era impossível não ficar triste quando alguém que ela tanto amava sumia por sua incompetência.

- Saudações Deusa Solária – anunciou-se Lírica, curvando-se diante da Deusa. Eram melhores amigas, mas a anja sabia reconhecer sua posição. – Trago notícias da missão.

- Onde está Daniel? – guinchou Solária com sua voz ficando aguda.

- Por que está chorando? – Lírica voltou a ficar de pé. – Você parece tensa.

- ONDE ESTÁ DANIEL? – gritou.

- Ah, então é por isso que você está chorando? – Lírica arqueou uma sobrancelha – ele está bem. Mas vou logo avisando que é melhor você não chegar perto dele durante um tempinho.

- Oh... – Solária soltou a respiração que não percebeu que estava prendendo. – Isso me alegra.

- Como você é chorona...

- Por que não devo chegar perto dele? – interrompeu Solária, já enxugando as lágrimas. – Me conte o que aconteceu.

- Vou contar se você não voltar a me interromper – grunhiu Lírica.

- Oh desculpe, vamos entrar na base – a Deusa já exibia um grande sorriso.

As celestes entraram na base e sentaram-se na enorme nuvem flutuante que Solária costumava dormir. Lírica relatou tudo o que havia acontecido, desde o encontro com Nero ao ataque de Daniel. A Deusa ouviu tudo com atenção, ficou confusa com a posição de Shaya.

- Se ela quer destruir a garota, por que não fez isso quando teve a chance? – indagou.

- Bem, lembre-se que isso faz parte do treinamento – lembrou Lírica. – Sabe, aquele rapazinho também estava lá.

- Quem?

- Aquele amigo da sua irmã... Micah – Lírica hesitou ao dizer o nome dele, sabia que Solária ficava agitada com a menção daquele rapaz.

- Ah. Bem, o que ele fazia ali? – a Deusa sentiu-se desconfortável, não gostava nenhum pouco de relembrar o que havia acontecido.

- Não sei, mas sumiu logo depois que Daniel iniciou o ataque. Solária... – ela encontrou o olhar da amiga e sorriu. – Mal acreditei que conhecia o tenente de Shaya! Recordo de tudo que ocorreu naquela noite – ela voltou a baixar o olhar, recordar de seu fracasso não era agradável.

- Quem é Nero?

- Ele é o garoto que tentou salvar Ai... o príncipe. Ele que me deu a ordem de recuar, isso foi a minha oportunidade para fugir com Ai, mas fiquei com tanto medo que travei.

- Quantas vezes vou ter que dizer que isso não importa mais Lírica? – Solária detestava ver a amiga torturar-se por algo que já havia passado. – Já acabou.

- Está bem, desculpa – ela mordeu o lábio, fitando a Deusa. – Eu queria dizer o mesmo para você Solária.

- Como assim? – indagou, mas ela já sabia.

- Sobre Micah...

- Já chega Lírica! – guinchou.

- Ah tudo bem, não precisa gritar comigo – resmungou.

- Só não volte a falar sobre isso – não torturar-se com o passado era uma coisa difícil de fazer. – Onde Daniel está?

- Não faço ideia, só disse que não quer falar com ninguém e recomendo que não faça isso. Sabe que ele pode ser bem agressivo quando quer.

- Mas por que ele voltou com tanta raiva?

- Olhe, sabe aquela garota toda branca que ele é apaixonado? – Solária engoliu em seco e assentiu. – Pois é. Ele descobriu que ela está se relacionando com Nero, se é que você me entende.

- Ah – Solária ficou embasbacada. – Então é esse o motivo para tanta raiva? Ele está zangado por que aquela garota estúpida resolveu seguir em frente com a vida? – Ui – Lírica assobiou diante da repentina raiva da amiga. – Acho que alguém está com ciúmes.

- Cale a boca! – Solária ficou de pé e caminhou para fora da base.

- Onde você está indo? – indagou Lírica.

- Vou falar com ele, e não tente me impedir.

- Ok, vai lá então. Depois só não diga que eu não avisei...

Mas Solária já havia partido.

~.~.~

Daniel já começava a sentir-se mais calmo. A chuva ainda caía, e a ventania e as águas do lago ainda estavam torrenciais. Ele já havia tomado uma decisão, mas para isso precisaria da ajuda de Lírica. O querubim planejava voltar para Statera e conversar com Lili, não estava totalmente convencido da história de Nero. Mas para descer até lá, ele precisaria aprender a materializar seu corpo no plano astral. Durante seus dezessete anos ele viveu sobre a fina membrana que separa os dois planos, astral e étereo. Lar de Deuses pagãos, o plano étereo estava separado pela fina membrana semelhante ao tecido da realidade, quase idêntico ao mundo físico. Nesse plano não existem construções mundanas, e há uma fronteira da realidade humana. Daniel havia estudado tudo sobre as duas dimensões e os riscos que poderia correr caso estivesse vivo, mas ele não estava.

Quando finalmente tomou sua decisão, ele sentou e observou que a chuva começava a diminuir. O querubim sentiu a presença de mais alguém, aliás, sentiu o calor de alguém. Não precisou pensar muito para tentar adivinhar quem. Só poderia ser Solária. Quem mais emanaria tanto calor? Pensou em sair dali rapidamente, ainda estava muito irritado e conversar com ela só iria trazer mais ira. Levantou rapidamente e procurou uma saída mais próxima. Visualizou uma passagem estreita entre duas árvores retorcidas e andou até elas.

- Pode ficar parado ai mesmo Daniel Scott! – berrou Solária.

- Me deixe em paz! – ele continuou a seguir seu caminho.

- Precisamos conversar, por que veio parar aqui? – a Deusa adentrou no pântano para seguir Daniel. Rapidamente seus longos cabelos ficaram encharcados de água.

- Não temos não, me deixe sozinho pelo menos por hoje! – ele encolheu-se entre as árvores e adentrou em uma caverna escura.

- Podemos conversar aqui fora? Não gosto desse lugar – ela olhou ao redor e viu o caos que estava o pântano. – Você está sentindo isso tudo?

Ele não respondeu, continuou a caminhar pelo labirinto cavernoso. Solária também conseguiu adentrar o lugar e ficou ao lado do anjo. A única iluminação que vinha do lugar emanava dela, uma luz dourada e reconfortante. Solária observou o rosto do querubim enquanto caminhavam em silêncio, viu que ele havia chorado. Quando finalmente chegaram em uma clareira repleta de cerejeiras Solária encurralou Daniel. Ele olhou para a Deusa com escárnio, sabia que ela tentaria de tudo para fazê-lo esquecer que um dia já foi um ser humano. Mesmo estando sob o efeito da raiva, ele não conseguiu evitar e olhou para os seios dela. Seu top branco havia pregado no corpo por conta da água, ela sentiu o rosto esquentar e virou-se rapidamente.

- Precisamos conversar – repetiu.

- Eu sei, mas como podemos conversar se você não olha para mim? – caçoou.

- Espere.

Solária liberou um pouco mais de calor para secar suas roupas.

- Pronto – ela virou-se e viu Daniel completamente molhado. – Quer ajudar para se secar?

- Não sua enxerida, pare de se oferecer para mim – grunhiu.

- O que? Não estava fazendo isso! – guinchou Solária. – Onde está sua armadura?

Daniel a ignorou e retomou sua caminhada. Solária foi no seu encalço, resmungando a todo instante sobre a carranca do querubim. Os dois sentaram-se sob a sombra de uma imensa cerejeira, o vento agitava suas folhas rosadas e as lançavam para todos os lados. Solária pediu com cautela que ele contasse tudo o que havia ocorrido. Eles conversaram durante um longo tempo, a lua já entrava em ascensão quando Daniel finalmente resolveu abrir o jogo.

- Quero ir vê-la...

- Impossível – cortou Solária.

- É claro que posso. Você mesma me disse isso.

Ela amaldiçoou-se ao lembrar que era verdade.

- Mesmo que você consiga ir até lá, do que adianta? – indagou.

- Só quero conversar com ela, depois disso juro que nunca mais vou voltar a vê-la. Por favor Solária, eu preciso fazer isso.

A Deusa não sabia mais o que fazer diante daquele pedido suplicante. Se recusasse, ele talvez nunca mais voltaria a falar com ela, mas se aceitasse corria o risco de perdê-lo. A dúvida cruel morreu quando o seu olhar encontrou o dele. Ela decidiu correr o risco.

- Vou ajuda-lo, mas vou logo avisando que passar para o plano astral leva tempo...

- E se você for comigo? – ele sabia que agora ela estava encurralada.

- Bem, vai ficar tudo bem se eu for? – ela quase não conseguiu conter o entusiasmo.

- Não haverá problemas... quando podemos ir?

- Agora mesmo se você quiser.

Daniel sorriu e abraçou Solária, a raiva parecia ter se esvaído do seu corpo. Os celestes foram para a base e encontraram Lírica recostada em um galho, Uziel estava ao seu lado limpando a lâmina de sua espada. O querubim pegou um conjunto de roupas que a Deusa havia deixado sobre a cama. Uma calça jeans azul e moletom preto, fazia muito tempo que ele não vestia roupas tão comuns. Depois de algum tempo, ele achou que Solária estivesse tendo dificuldade para vestir suas roupas, mas a Deusa saiu do banheiro com um vestido branco que caia até as coxas. Ela jogou seu casaco azul sobre os ombros e foi até o querubim.

- Como estou? – perguntou.

- Está ótimo, você está muito bonita – admitiu.

- Ah... obrigado! – ela exibiu um sorriso resplandecente.

- Não estou flertando com você – grunhiu Daniel.

O sorriso dela se desfez.

- Eu não achei que estivesse – sibilou. Como ele poderia ser tão grosseiro?

- Acho melhor irmos logo.

Solária levou Daniel até o Morro Uivante, onde sabia que o tecido era mais sensível. Eles deram as mãos e tudo ficou começou a vibrar, Daniel sentiu como se estivesse anestesiado. Não demorou muito e eles já se encontravam em Oorland. Solária sugeriu que fossem tomar um milk-shake antes, Daniel aceitou porque talvez depois do reencontro ele nunca mais seria o mesmo. Os celestes aliviaram o estresse na bebida doce, depois de tanto tempo sem ver uma noite como aquelas ele desejou ser humano novamente. Depois de divertirem-se um pouco eles foram até o apartamento onde Lili estava hospedada. Não foi difícil passar pelo recepcionista, Solária tinha seus truques. Daniel preferiu subir as escadas para aliviar a tensão, estava nervoso demais. A celeste também foi contagiada pelo nervosismo do amigo. Quando finalmente chegaram à porta do apartamento, ele hesitou em bater.

- Ei, você está bem? – perguntou Solária.

- Estou – ele assentiu e tocou a campainha.

Ninguém veio atender, novamente ele apertou o botão.

- Estou indo!

Seu coração pulou ao ouvir a voz de Lili. Os passos foram aproximando-se da porta e ela finalmente a abriu. E lá estava ela, Lili olhou para o estranho e sorriu, mas seu sorriso morreu ao ver quem era.

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