42| Uma Dose de Veneno

NERO

Não esperei uma festa de boas-vindas quando finalmente cheguei a Tenebris. Esperei ver Shaya sentada em um enorme trono constituído de ferro e aço, mas nada encontrei além um campo deserto. Não era um lugar feio, pelo contrário. Andei até o vasto campo de lírios negros, a relva enorme roçava em minhas mãos e me fazia ter coceiras. Um lago de águas negras e calmas prostrava-se diante de mim, o que significaria aquilo? Era assim o inferno? Tentei falar com Sam, mas ele parecia não estar lá. Olhei para a imensidão de lírios negros que se agitavam com a leve brisa vinda das montanhas ao longe. Aquele lugar era sinistro, mas ao mesmo tempo encantador. Atirei uma pedra no lado e esperei que algo aparecesse, mas não vi nada além da pedra afundar. Vaguei por várias horas até encontrar uma árvore solitária, nela havia a silhueta de alguém, um homem.

Apressei o passo até chegar ao homem recostado no tronco. Ele pareceu não notar minha presença, vestia uma camiseta azul e calça jeans preta. Parei para observá-lo melhor. Possuía aparência comum para alguém que habitava o mundo inferior. Ele mascava um fio de palha, o all-star era grande e surrado, era alto e magro.

- Ei – resmunguei, cansado de ser ignorado.

- Olá – ele ainda fitava o horizonte. – O que faz por aqui?

- Eu não sei...

- Por acaso você está morto? – ele me interrompeu.

- Já estive – confirmei. – Quem é você?

- Eu que faço as perguntas por aqui – ele me encarou, notei algumas espinhas em seu rosto. – O que você faz por aqui?

- É o que eu quero descobrir – falei, estava ficando cansado. – Se puder me ajudar...

- É claro que eu posso – ele cuspiu o pedaço de palha. – Como se chama?

- Nero – vontade de socar a cara dele não me faltou, odiava interrupções. – Apresente-se.

- Me chamo Micah Sammuels. O que deseja Nero?

- Quero encontrar Shaya...

- Minha nossa, estão todos querendo encontrar Shaya. Vou logo avisando, ela não estará disponível para ninguém. Eu sei quem você é Nero, mas sinto muito, não posso leva-lo até ela.

- Mas... o que eu estou fazendo aqui? – indaguei, o que Sam queria quando me trouxe para Tenebris?

- Sei lá – foi à única coisa inteligente que ele conseguiu dizer.

- Esqueça – andei furiosamente para longe dele.

- Ei Nero! Não tem nada para lá, é tempo perdido...

- Então me ajude a sair daqui! – rosnei.

- Você é um rapaz nervoso...

- Cale a boca! – guinchei.

- Está sendo ignorado – ele cruzou os braços e voltou a recostar-se na árvore.

- Não, porque você está falando comigo!

Ele soltou uma risada debochada, me senti um idiota por cair naquela piada. Voltei a caminhar para frente, mesmo ele tendo dito que era uma total perda de tempo. Ele andou até mim, caminhando ao meu lado. Minha irritação só aumentava à medida que ele me fazia perguntas idiotas e insistentes. Minha garganta estava seca, meus pés doíam e minhas costas protestavam. Estava definitivamente esgotado. A sombra de um enorme pássaro passou acima de nós, seguido por algo parecido com uma fênix cortando o céu. Olhei assustado para as criaturas que nos rondavam, eram anjos. Sim, anjos de armaduras reluzentes e imponentes. Fiquei impressionado com a bela anja de cabelos vermelhos e asas de fogo, mas ela não aparentava estar aqui para brincadeiras. Assim como o anjo alto de asas cor de metal com pontas vermelhas. Eles pousaram não muito longe de nós, exibindo suas armas celestiais.

- Saudações estranhos! – gritou Micah, acenando para os anjos.

- Onde está Ai? – rosnou o anjo grandalhão.

- O que vocês fazem em Tenebris? Acho que não é um bom lugar para um anjo passear...

Aconteceu rápido demais. O anjo já estava a poucos centímetros de nós quando a ponta da sua espada quase nos atingiu. Outro ataque veio de cima, a anja de fogo conseguiu me atingir com suas labaredas flamejantes. A dor foi lancinante, era como se eu não tivesse imunidade aos seus ataques, pois a ferida demorou a fechar. Ergui meus braços e lancei minhas correntes contra o anjo grandalhão, mas esse foi mais rápido e desviou a tempo. Outra vez fui atingido pelas labaredas da anja, mas dessa vez ela conseguiu me derrubar. Micah nada fez além de observar toda a cena, por que eles atacavam só a mim? Baixei à guarda e levei um soco na cara, cambaleei para trás e fui atingido com um chute nas costas. Fraco. Era isso o que eu era. Com certeza não era páreo para dois celestes. Caí derrotado no chão, minhas costas doíam e os cortes ainda não haviam sarado. A anja veio até mim e colocou seu pé em meu peito. Recordei do garoto que matei, mas eu não estava com medo. Ela estudou meu rosto com seus olhos alaranjados, depois fez mais pressão em meu peito.

Aqueles cabelos me eram familiares, até mesmo as sardas. Tentei me recordar de onde o rosto daquela celeste vinha. Ela também pareceu estudar meu rosto, ergueu uma sobrancelha e estreitou os olhos. Depois de algum tempo me encarando seu rosto se iluminou, como se tivesse matado alguma charada. Tentei levantar, mas ela voltou a me empurrar.

- Eu conheço você de algum lugar... – sua voz finalmente matou charada. Era ela, mas como?

- Lírica? – indaguei.

- Nero? – ela fez uma careta de surpresa, depois tirou o pé do meu peito. – Mas como? O que está acontecendo aqui? – ela olhou para os lados, esperando alguém responder.

- Conhece ele? – o anjo aproximou-se de nós, mas ainda mantinha a espada nas mãos.

- Ah... acho que sim – ela ainda continuava me olhando intrigada.

- É claro que você me conhece, eu era seu amigo lembra? – consegui levantar, sentindo-me humilhado, mas também aliviado por encontrar alguém conhecido.

- Não acredito! – ela quase sorriu. – Como?

- É uma longa história, mas e você?

- Bem, sempre fui uma celeste, mas na noite em que você morreu – ela fez aspas com os dedos. – Eu tive que ir embora por que fracassei em minha missão...

- Que missão? – indaguei. Ela estaria falando daquela noite?

- De impedir que Ai fosse queimada viva, mas Solária conseguiu salvá-la no último instante.

- Ai? – indaguei.

- Sim, acho que deve ser a sua amiga Sora – ela guardou sua espada na bainha, sinalizando para o anjo grandalhão também guardar. – Afinal, onde ela está?

- Sora? Não faço ideia, estou com Lili em...

- Lili? – indagou o anjo. – Que Lili?

- Ah... a melhor amiga de Sora – esclareci.

Ele passou as mãos pelos cabelos castanhos, depois começou a andar de um lado para o outro. Parecia estar atormentado pela menção de Lili na conversa.

- Olhe – ele foi até mim, nem mesmo parecia ser o anjo furioso que tentou me matar. – Preciso vê-la, mas antes quero que fale algo para ela, diga que Daniel...

- Daniel? – rosnei. – Daniel Scott?

- Sim, por que?

Então era isso, aquele era o tão falado Daniel. Aquele que Lili tanto amava mesmo depois de tanto tempo. Cerrei os punhos de tanta raiva, ele era o guardião de Sora e provara ser melhor do que eu. Lírica também era uma celeste poderosa, não se parecia nenhum pouco com a menina medrosa que era quando andava com Prudence. Tentei assimilar todos os fatos, então todos que morriam tornavam-se anjos ou demônios? Aquilo era meio injusto. Daniel ainda me olhava apreensivo, toda a sua guarda estava baixa, eu poderia ataca-lo se quisesse. Perguntei-me o que aconteceria se Lili soubesse que ele era o guardião de Sora e que não estava morto, pelo contrário, estava muito melhor que todos nós. Mas o que eu estava fazendo? Ali estava a minha oportunidade de me livrar daquele sentimento estranho por Lili, então por que não queria falar a verdade? Era tudo estranho, meus pensamentos estavam confusos. Falar a verdade parecia estar longe de meu alcance, mas ali estava, pronta para ser dita. Recuei, decidido a tirá-lo do meu caminho. E para isso, coisas teriam que ser ocultadas.

- Por que ela me fala tanto de você – tentei parecer mais sério.

- Sério? – ele sorriu. – Eu sabia que Lili nunca se esqueceria de mim, nós ainda nos amamos...

- Vocês eram namorados? Que estranho – tentei não sorrir, mas estava ficando difícil.

- Mas é claro, que saudade que tenho dela. Olhe, me desculpe por isso, você não me parece ser uma pessoa ruim... – ele colocou a mão em meu ombro. – Acho que pode me ajudar a encontra-la novamente, não me aguento mais de tanta saudade.

Seu sorriso era radiante, mas não iria durar por muito tempo.

- Não sei – suspirei.

- Como assim? – ele arqueou uma sobrancelha, ainda sorria.

- Cara, ela te odiava demais – foi triunfante ver seu sorriso morrer.

- O que você quer dizer com isso? – senti sua mão apertar meu ombro.

- Foi isso mesmo que você ouviu, ela não te suportava. Chorou em meu ombro e contou que ficava com você apenas por pena...

- Isso não é verdade – ele percebeu meu incomodo com sua mão em meu ombro e a retirou. – Lili me amava...

- Posso te assegurar que não, ela mostrou-me uma cicatriz em sua perna, disse que foi você. Na noite em que te deu um fora e você cometeu suicídio no dia seguinte.

Ele passou a mão no cabelo, percebi a agonia em seus olhos. Eu me sentia triunfante, queria que Billy estivesse comigo para ver o anjo sofrer. Lírica foi até Daniel, falando que ele deveria abdicar de suas emoções mundanas. Mortais não podiam relacionar-se com celestes, era proibido. Mas isso nunca iria deixar de acontecer porque as duas maiores Deusas mais poderosas eram nefilins, mistura de mortal com anjo. Mordi o lábio para sufocar uma risada, aquele cara era patético. Não entendi porque Lili o amava tanto. Não havia mais nada para fazer ali, olhei para os lados a procura de Micah, mas esse já havia sumido. Novamente não consegui falar com Sam, o que estava acontecendo?

- Ei você... – Daniel voltou a olhar para mim. – Sei que o que você fala não é verdade. Conheço Lili, ela nunca diria isso. Nem mesmo da pior pessoa do mundo.

- Escute Daniel – forcei uma cara séria. – Estou falando a verdade...

Quando pisquei os olhos, ele já estava muito próximo segurando a gola do meu sobretudo. Vi seus olhos castanhos tornarem-se perigosos novamente, ele quase encostou sua testa na minha. Lancei um olhar de desprezo para ele, que já estava ficando vermelho de tanta fúria. Consegui afetá-lo. Ele me ergueu do chão, depois me sacudiu ainda agarrando o sobretudo. Pronto para falar tudo que estava engasgado, ele de repente parou. Achei estranho o que ele estava fazendo, por que passou seu nariz por minha blusa. Sua expressão ficou confusa.

- Esse cheiro – ele voltou a passar o nariz. – É lavanda, é o cheiro de Lili. Por que está com o cheiro dela impregnado em você?

- Por que transo com ela todos os dias – rosnei.

- O que? Ora seu...

Ele preparou-se para me dar um soco, mas Lírica interveio. A anja segurou com seus punhos cada um de nós, era extremamente poderosa.

- Vamos parar com a babaquice? Daniel – ela olhou para o anjo. – Aceite que Lili não te ame mais, o que ele fala pode ser verdade, ela não iria ficar te esperando uma vida inteira. E Nero, sei que você deve ser algum subordinado de Shaya, as correntes em seus braços não negam.

- Sou – assumi.

- Nós vamos embora, não queremos brigar por uma causa perdida – ela falou aquilo para Daniel. – As regras devem ser seguidas, porque não temos livre arbítrio.

- Eu tenho – provoquei, rindo para Daniel que me fuzilava com seu olhar. – É por isso que posso beijar Lili no momento que quiser.

Daniel fez menção de me atacar, mas Lírica voltou a segurá-lo.

- Pare Nero! – guinchou. – Vamos logo Daniel, sei onde Ai pode estar e ela não corre perigo. Deve estar com Grendel, isso faz parte do treinamento. Foi alarme falso.

- Quem é Grendel? – indaguei.

- A Divindade da Morte... – Lírica foi puxada por Daniel.

- Vamos logo!

- Está bem – ela voltou a virar-se para mim. – Bem, foi ótimo rever você Nero. É uma pena que nossa amiga Prudence tenha morrido. Seja qual for a sua missão, pense bem nela, pense bem antes de fazer qualquer coisa que vá te detonar.

- Nero – Daniel falou comigo. – O que você disse é a mais pura verdade?

- Sim – vi a dor em seus olhos. – Não vejo motivo para mentir sobre isso.

- Certo – ele arqueou as asas e levantou voo.

Lírica sorriu e acenou. Os dois anjos tornaram-se um pequeno borrão no céu em questão de segundos. Pensei comigo mesmo e me perguntei se o que fiz foi correto, por que mesmo havia feito aquilo? Lili não era minha. Era apenas minha melhor amiga, a garota que me acolheu quando eu mais precisei e me amou quando ninguém mais me amava. Fiquei entorpecido ao sentir seu cheiro de lavanda em minhas roupas, queria estar ao seu lado. Desejei que minha dose de veneno contra Daniel tivesse funcionado, porque eu faria Lili esquecê-lo de tudo que eles viveram juntos. Fui até a árvore solitária e me recostei nela, talvez alguém aparecesse para me ajudar. Sorri comigo mesmo ao lembrar que Sora estava no mundo inferior e era bem-vinda, isso só tornaria as coisas piores quando eu finalmente fosse matá-la.


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