41| O Sr. Morte
Mas não posso ajudá-lo, não posso fazê-lo melhor
Não posso fazer nada sobre seu temperamento estranho
Porque você é inconsertável
Não posso entrar em seu mundo
Porque você vive em tons frios
Seu coração é inquebrável
- Shades of Cool, Lana Del Rey
SORA
O lugar era lindo. Sim. Simplesmente isso. Era lindo e deslumbrante, seria assim o inferno? Não foi como imaginei. Não havia escuridão, muito menos almas pisoteadas e escravizadas como se viam nos filmes, pelo contrário. A primeira visão que tive foi da enorme relva verdinha que roçava em meu rosto, o chão de terra fofa me fez querer não levantar, estava sonolenta. Ao sentar, deparei-me vestida com um longo vestido negro de alças douradas. Em meus tornozelos havia finas correntes negras, e em meus braços, braceletes prateados. Olhei ao redor procurando por algum sinal de vida, mas não tinha ninguém. Andei mais adiante, deparando-me com um enorme campo de tulipas vermelhas seguido por um lago. Tinha as águas escuras e traiçoeiras, mas transparecia tranquilidade para quem nele entrasse. Uma leve brisa bateu nas águas, fazendo pequenas ondas dançarem até a margem.
- OLÁÁÁ – gritei, mas apenas ouvi meu eco em resposta.
Passei a mão pelo peito, ficando aliviada por encontrar a pedra branca que Soren me dera. A pedra negra não estava lá, o que isso significava? Aborrecida por não encontrar ninguém sentei na beira do lago. Uma enorme lua vermelha erguia-se no céu cor de âmbar, parecia o fim dos tempos. Notei uma segunda lua escondendo-se timidamente atrás da vermelha, aquilo era muito surreal, até mesmo para mim. O crepúsculo era lindo, o sol parecia sempre estar ali dando cores às nuvens que banhavam o céu. Uma fina névoa invadiu o campo de tulipas e chegou até mim em segundos, era fria e parecia querer explorar todos os cantos do meu corpo. Tentei afastá-la quando tentou adentrar meu vestido, até parecia ter vida própria.
- Perdão pelo incômodo, elas nunca aprendem – soou uma voz grave, me fazendo pular de susto.
Olhei para trás, deparando-me com a cabeça de uma serpente colossal. Fiquei atônita, sem palavras para o que via. Parecia ser uma espécie de monstro marinho, mas era uma serpente. Sua enorme cabeça tinha grossas escamas douradas com nuances de azul. Vermelhos como a lua, seus olhos eram misteriosos, mas não perigosos. Levantei para ver melhor a serpente, que tinha exposto metade do seu grosso corpo cilíndrico para fora. Ela me estudou com interesse, passando seus enormes olhos ofídicos por minhas tornozeleiras ornamentadas em formas de correntes. Não consegui explicar minha ausência de medo daquela criatura, ela não parecia ser tão perigosa quanto aparentava.
- Oi? – foi à única coisa que consegui dizer, soou estúpido.
- Olá – a boca da serpente não se moveu, ela falava comigo através da mente. – Como se chama?
- Me chamo Sora Bloom, e você? – a conversa fluiu ligeiramente, como se aquilo fosse normal.
- Pode me chamar de... – a serpente pareceu pensar um pouco. – Me chame do que você quiser, pode escolher um nome para mim.
- Ah... tem certeza? – indaguei.
- É claro! – ela nadou para mais perto, olhando-me de cima.
- Que tal... espera, você é fêmea ou macho? – era uma pergunta absurdamente idiota, mas facilitaria na escolha do nome.
- Sou o que você desejar – respondeu.
- Bem, então que tal Orion? Gosto desse nome porque é a minha constelação favorita – não consegui evitar e sorri para a serpente.
- Orion então.
Ela me trazia uma sensação estranha, era como se fosse a única parte boa daquele lugar.
- Orion... que lugar é esse?
- Estamos em Tenebris Sora Bloom – gotas de água caíram de sua enorme cabeça para a minha.
- Só Sora, ok? – nunca gostei de tratamentos formais.
- Tudo bem. Para onde está indo Só Sora Ok?
Soltei uma gargalhada, aquela serpente era inusitada. Aquilo tudo era inusitado, como poderia o inferno ser tão belo? E uma criatura tão adorável habitá-lo? A serpente virou a cabeça para o lado, sua expressão tornou-se confusa, como se não estivesse entendendo o motivo de minhas risadas. Por um momento, esqueci que tinha sido raptada pelo garoto do inferno e levada ao mundo inferior sem o meu consentimento. Limpei as lágrimas do canto dos olhos, Orion ainda me olhava confuso, seus olhos misteriosos estudaram mais uma vez minhas tornozeleiras. Ele chegou mais próximo, quase encostando sua cabeça na minha.
- O que foi? – dei um passo hesitante para trás.
- Você é bonita Só Sora Bloom Ok... até se parece com Pie – seu olhar transpareceu saudade.
- Quem? – indaguei. – Pie?
- Ninguém... me desculpe. Para onde deseja ir Só Sora Bloom OK?
Tentei ver através daqueles olhos ofídicos misteriosos, mas nada vi além de confusão. Quem quer que seja Pie, essa pessoa causava muito transtorno na mente de Orion. Eu desejava ver Shaya, mas as palavras não saiam. Nunca havia me encontrado com ela pessoalmente, apenas através dos sonhos, e agora aqui estava, tremendo como uma vara de bambu. Orion aguardou minha resposta pacientemente, ele seria algum tipo de guardião? Não me parecia ser o tipo de criatura que machucava alguém, muito menos que guardava as portas do inferno.
- Pre-presico ver Shaya... – gaguejei. A garganta estava seca.
- Venha até mim Sora Bloom Ok, vou te levar até ela. Isso e nada mais... – ele afastou-se para o meio do lago.
- O que? Como assim? – eu teria que montar nele?
- É exatamente o que está pensando, você terá que agarrar-se ao meu corpo, só assim poderei leva-la até Shaya... o que está esperando?
- Ah... tudo bem.
Hesitei na margem do lago, e se algo ruim acontecesse comigo? E se Orion estivesse tentando me enganar? Como se soubesse minha apreensão de entrar, as águas negras banharam meus pés, fazendo minhas unhas mudarem de vermelhas para azul profundo. Olhei para a serpente, indagando se aquilo seria normal, ela assentiu e explicou que as cores das unhas explicavam meu estado de humor. As águas não eram gélidas como pensei, pelo contrário, eram mornas e relaxantes. Agarrei em Orion, suas escamas não fediam a peixe. Ele mergulhou para dentro do lago sem ao menos dar um aviso de largada, meus cabelos emaranharam-se em meu rosto. Não pensei conseguir enxergar tão bem o fundo do lago.
Por dentro era tudo vermelho, como o campo das tulipas. Não havia algas, muito menos peixes ou qualquer outra forma de vida, apenas Orion e a imensidão avermelhada. Talvez nem fosse verdadeiramente daquela cor, talvez fosse o efeito da enorme lua vermelha que pairava no céu. Orion nadou com mais rapidez, adentrando em uma fenda que parecia estreita demais para a nossa passagem. Fechei os olhos, preparando-me para o impacto. Mas nada aconteceu além da escuridão invadir meus pensamentos. Meu corpo doía, protestava contra alguns movimentos involuntários. Novamente acordei sonolenta, mas estava em outro lugar. O campo de tulipas havia sumido, assim como Orion e o lago.
Meu vestido estava seco assim como meus cabelos. Aquilo fora real? Eu tinha mesmo falado com uma serpente e visto que o inferno era belo e tranquilo? Não. Aquilo tudo estava acontecendo rápido demais, nada era real ou insólito, tudo era apenas uma questão de percepção. Vaguei pela caverna escura e úmida, gotas de água caiam das formações rochosas, tornando o lugar mais sinistro. Novamente sozinha. Ótimo. Logo agora que estava começando a gostar de Orion ele resolve sumir e me deixar perambulando por uma caverna no inferno. Diferente do lago, aquele lugar era frio e me trazia calafrios. Ouvi passos ecoarem mais adiante, e não eram meus. Encostei-me detrás de uma rocha suficientemente grande para me esconder, os passos tornaram-se mais próximos, assim como as vozes de alguém.
- Ela já deveria ter chegado! – rosnou uma voz familiar. – Que droga, aquela garota é lenta e burra!
Soltei um grunhido de indignação, o que só provou ser verdade o que aquele cara havia dito. Eles pararam para ouvir de onde tinha vindo aquele som abafado. Ora essa, por que eu estava me escondendo quando mais queria que alguém me encontrasse? Eu era realmente uma pessoa tapada. Suspirei profundamente para criar coragem e postura descente para encarar quem quer que fosse, mas apenas me deparei com meu captor e Soren discutindo. Passei a mão pelo peito à procura da pedra branca, mas ela não estava mais lá, então era isso, eles eram as pedras e estavam comigo depois de todo o tempo. Teriam eles presenciado o último evento na cama de Lieff? Meu rosto esquentou ao imaginar que sim.
- Ora, olha só que resolveu aparecer! – exclamou o garoto do inferno.
- Olá Ai, como foi de viagem? – Soren sorriu para mim.
- Não seja idiota! – ele socou o ombro de Soren, fazendo-o cambalear para o lado e apoiar-se em uma rocha desgastada. – Vamos logo Shadoe.
- O que? Meu nome é Sora! – guinchei, aquela troca de nomes estava me deixando louca. – Vocês querem me explicar por que estou aqui? Onde está Shaya? Quero ir embora!
- Se chorar... – ele cerrou o queixo, parecia estar furioso. – Eu vou bater em você!
Dei dois passos para trás, meu estômago embrulhou quando me imaginei chorando. Recordei da letra L gravada na cera do pergaminho, mas não consegui recordar seu nome.
- Ele odeia quando alguém chora, desculpe Ai – Soren limpou alguns fragmentos de rocha que ficaram presos em sua blusa branca.
- Como você se chama? – não foi minha intenção irritá-lo ainda mais, mas foi o aconteceu.
- Grendel - grunhiu irritado.
- Mas a pedra que você me deu tem um L...
- Não me interessa, pra você é Grendel – ele cuspiu no chão quando terminou de falar, declarando que aquele assunto estava encerrado.
- Por que você odeia choro? – não fui uma pergunta muito inteligente.
Grendel segurou meu braço e me arrastou para dentro da caverna, seu aperto estava começando a prender minha circulação. Mesmo depois de alguns protestos meus e de Soren, ele não me soltou. Tentei me soltar daquelas mãos frias e estranhas, ele me fazia recordar de Nero, até a mesma tatuagem de correntes nos braços ele tinha.
- Pegue leve com ela Grendel! – me surpreendi ao ver Soren elevar o som da voz.– Largue ela!
- Está bem seu bebê chorão! – senti alívio quando ele me largou. Esfreguei onde havia ficado roxo. – Pare de pegar tão leve com essa burra!
Aquilo foi à gota d'água, fui até Grendel e chutei seu saco, fazendo-o curvar-se de dor. Aproveitando sua guarda baixa, segurei sua cabeça e a bati em meu joelho. Soren me segurou, empurrando-me para trás. Grunhi e me senti triunfante ao ver Grendel grunhir de dor, agora ele sabia com quem estava se metendo, e xingando.
- Você me paga, sua vaca – rosnou, conseguindo recompor-se aos poucos.
- Quero ver Shaya – pedi para Soren. Decidi que ignorar Grendel seria a melhor opção.
- Não pode, não foi para isso que Grendel trouxe você – ele me olhou com tristeza, aquilo não era bom.
- Por que não? Por que estou aqui? – indaguei, sentindo minhas entranhas encolher.
- Você vai aprender comigo, algumas coisinhas... – falou Grendel. – Fará um estágio no inferno.
Ele soltou uma gargalhada como se aquilo fosse engraçado. Soren e eu nos entreolhamos, então foi para isso que eu vim? Para ser algum tipo de ceifadora? Aquilo definitivamente não tinha graça alguma. Ele ainda continuava a rir da nossa cara, ria tanto que voltou a curvar-se.
- Do que ele está rindo? Isso é sério? – perguntei.
- Ele está rindo porque provavelmente exatamente nesse momento o seu guardião deve estar vindo a sua procura, e não vai conseguir entrar.
- Mas você é o meu guardião! – exclamei.
- Está brincando? – agora foi à vez de Soren cair na gargalhada.
- Quer saber, vou embora. Vocês são uns babacas!
Saí pisando forte. Estava puta da vida. O braço magro, mas com uma força descomunal de Grendel voltou a me segurar. Tentei novamente uma fuga, mas desnecessário, porque ele era bem mais forte. E para onde eu estava indo afinal? Nem ao menos conhecia aquele lugar e Orion não estava lá para me levar a lugar algum. Orion...
- Ei! – exclamei de repente enquanto caminhávamos dentro de um túnel silencioso e escuro. – Para onde foi Orion?
- Quem? – indagou Grendel, que havia afrouxado o aperto em meu braço.
- Orion. Sabe, a serpente que me trouxe aqui – expliquei, mas eles entreolharam-se sem entender. Aquilo fora mesmo minha imaginação?
- Ah claro! – exclamou Grendel, que ficou muito estranho tentando dar um sorriso. Ele percebeu que estava quase sorrindo e voltou a fazer sua cara zangada. – Ei! Não me faça sorrir! – grunhiu para mim.
- Por que você é tão idiota? – Soren riu com a pergunta.
- Acredite Ai, eu me faço essa pergunta há séculos – Soren fez sinal feio nas costas de Grendel.
- Quem é Ai, e Shadoe? – indaguei.
- Você – eles responderam em uníssono.
- Que droga, será que podem me explicar isso melhor? Eu tenho o direito de saber! – guinchei até minha voz sair aguda e esganiçada.
- Ah cale essa maldita boca – Grendel me puxou para mais perto dele, me causando um pouco de repulsa. Aqueles olhos de cores diferentes eram assustadores.
Ele pareceu notar meu aborrecimento, porque suavizou a expressão. Grendel me puxou para mais perto e sussurrou em meu ouvido, sua voz grave era assustadoramente sedutora. Mas que droga! No que eu estava pensando? Charlie já era quase meu namorado e eu só pensava em outros homens, que ótima namorada eu era, me senti uma vagabunda.
- Quando esse intrometido sair, eu juro que conto tudo pra você... – continuou sussurrando, olhando propositalmente para Soren.
Soren fez uma cara carrancuda para nós. Quem eram aqueles caras?
- Chegamos – anunciou Grendel.
Fiquei boquiaberta com o que vi. Cadeias montanhosas erguiam-se ao longe, uma enorme árvore solitária estava rodeada pela enorme relva dourada. Tinha o mesmo tom avermelhado no crepúsculo, e o céu cor de âmbar. Procurei pelo lago, pensando ter voltado até Orion, mas só havia o mar. A imensidão azul era diferente, as águas eram cristalinas e agitadas. Parecia que uma tempestade estava se aproximando, mas ali havia tempestades?
- Gostou? – perguntou Soren.
- É lindo... – não consegui falar mais nada além disso.
- Humm... está bem. Estou indo embora Ai. Quer dizer, vou estar aqui com você – ele apontou para meu peito. – Se precisar é só chamar.
- Não estou correndo perigo? – tremi ao ver Grendel nos observando.
- Não, você está segura. De qualquer forma, você teria que fazer isso de qualquer maneira... vai ajudá-la no seu treinamento. Grendel é um ótimo instrutor, só basta ter paciência com ele.
- Espere, só mais uma pergunta...
- O que você desejar – ele esperou.
- Vocês podem ver ou saber o que eu estou fazendo quando... humm... – meu rosto esquentou.
- Você quer saber se nós podemos ver quando você está fazendo coisas sexuais?
- ÃN? O QUE? NADA DISSO, É QUE...
- A resposta é não, só podemos saber ou aparecer para você quando achamos que está correndo algum perigo. Mesmo Grendel que é um Sr. Morte, ele te salvará se for necessário.
- Se for necessário? – indaguei.
- Sim, somente se for necessário. Ele não tem obrigação de te salvar...
- Como assim, e você?
- Eu tenho a obrigação de estar com você, todas às vezes. Mas ele não, ele é a divindade da morte... se sua hora chegar, ele não poderá fazer nada além de recrutar sua alma.
Fiquei boquiaberta. Olhei para Grendel, que nos observava de braços cruzados. Então ele era uma divindade da morte. Ótimo.
- O que ele tem com Shaya?
- Ele recebe e envia almas para ela, então acho que tudo né – Soren sorriu.
Grendel estava vindo em nossa direção. Ah céus, como ele era alto! Tentei formular mais perguntas para fazer a Soren, mas elas não vinham, pois estava nervosa demais com a aproximação do Sr. Morte. No último instante, recordei da pergunta crucial.
- Soren...
- Já chega – interrompeu o Sr. Morte. – Vá embora Soren.
- Já estava indo, idiota – resmungou. – Até mais Ai, sabe onde me procurar!
Ele pareceu faiscar, depois se transformou novamente na pedra e voltou ao meu pescoço.
- Vamos lá Shadoe, preciso que me ouça – continuei olhando para o colar branco.
- Olhe para mim – rosnou ele. – Vamos começar... agora.
Ele começou a descer o morro coberto pela relva dourada, não vi outra opção a não ser segui-lo. Grendel parou e recostou-se na única árvore do campo, uma brisa quente agitou seus cabelos negros, revelando uma cicatriz atrás da orelha. Cheguei até a árvore e aguardei que ele falasse algo, porque ficamos no total silêncio por um certo tempo até que ele finalmente resolveu me pedir para sentar. Para a minha surpresa, ele deitou a cabeça em meu colo e começou a arrancar as pétalas de um girassol que ele tirou do bolso do casaco preto. Fiquei sem reação, minhas costas ficaram tensas e retesei os músculos. Mas fui relaxando à medida que o cheiro de girassol inundava o ar, trazendo tranquilidade.
- Eu tenho vários nomes... – ele sussurrou. – Que nem as árvores mais antigas sabem pronunciar. Vivo apenas para aqueles que sabem onde olhar... você, correndo colina acima...
Ele arrancou a última pétala do girassol e o tempo parou.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top