40| Confiar

NERO

O crepúsculo em Lumen alternava de nuances a cada movimento do sol. Daniel encontrava-se sentado no pico do Morro Celestial, contemplando mais um dia que se passava. Essa era a melhor parte do dia, onde ele vislumbrava o majestoso sol dar espaço para as duas luas, que ficavam escondidas durante o raiar. Um grupo de anjos comandados por Lírica passou por seu campo de visão, a celeste acenou para ele e continuou seu caminho. Alguns meses haviam se passado desde a chegada do querubim, ele quase já se sentia em casa. Mas algo faltava, ele sabia o que. Mesmo que Solária tenha dito para ele esquecer suas emoções mundanas, ele mesmo notara algumas fraquezas na Deusa. Ela chorava quando ficava irritada, principalmente quando Daniel recusava-se a seguir a conduta do treinamento. Ela morrera muito jovem, com apenas dezenove anos, era uma adolescente transformada em celeste.

O treinamento havia sido árduo, fora o dia em que Solária pegara mais pesado, mas ele estava melhorando. Teimoso. Foi o que ela disse para ele, era um querubim teimoso e carrancudo. Daniel gostava de irritar sua superior, mas também sua melhor amiga. O tempo lhes rendera uma bela amizade construída à base de confiança e carinho. O querubim despiu sua armadura, ficando apenas com sua calça jeans. Sim, ele ainda podia usar roupas feitas por mortais, isso não era um pecado. Ficar com a armadura cansava, mesmo sem estar no campo de treinamento a Deusa o obrigava a usar aquela lataria velha e pesada. Aquilo o irritava, mas também a irritava, quando ele removia. Pensando na careta rabugenta que ela faria ao vê-lo sem a armadura, ele sorriu o jogou colete de aço para o lado.

Deitou-se na relva que estava começando a ficar grande demais, mas era macia e úmida. O vento que passava pelo morro era sempre o mais puro, vindo direto das montanhas. Observou algumas estrelas que começavam a surgir pelo céu. Com uma dor em seu peito, lembrou que costumava sentar-se com Lili sobre as enormes rochas cobertas de musgo e geada na floresta fria, aqueles foram os melhores tempos de sua vida, pensou. Lembrou com amargura, que sua melhor amiga havia tirado sua vida e o transformado em um ser asqueroso. Mesmo com sua explicação, de que fora necessário que ele morresse para voltar como um caído e ir para o mundo celeste, aquilo acabou fazendo de sua vida um inferno por quase três anos. Ele ainda guardava um pouco de mágoa de Solária. De repente ele sentiu-se observado, virou rapidamente para trás, mas nada viu. Um pequeno raio dourado cortou o céu com uma velocidade furiosa, e ele concluiu que aquela sensação era apenas coisa de sua cabeça.

Agora o sol se fora por completo. O Morro Celestial foi tomado pela luz da enorme lua branca, o cheiro familiar de camomila passou pelo nariz de Daniel, ele sabia que ela estava próxima. Colocou os braços detrás da cabeça e relaxou, sabia que Solária iria surtar por conta da armadura. Ele escutou o som da relva sendo pisada, virou a cabeça para o lado e viu um par de pequenos pés descalços, cada qual com uma tornozeleira de prata. O querubim olhou para cima, deparando-se com a Deusa, que não estava usando seu habitual vestido branco transparente. Ela vestia uma calça jeans preta e um moletom branco, seus longos cabelos loiros e brancos estavam soltos e caíam-lhe até os joelhos. Solária segurava dois copos de milk-shake, ela sentou ao lado de Daniel e passou-lhe um copo.

- Que droga... – falou, surpreendendo-se com a situação inusitada. – Onde está Solária?

- Cale a boca – ela resmungou. – Pegue a droga do copo e beba!

- Calma esquentadinha, o que houve? Onde conseguiu isso? – ele levantou o copo, depois olhou para as roupas dela. – E por que esta vestida assim?

- Sabia que deve pedir permissão para fazer qualquer tipo de pergunta para a sua superior? – ela o fuzilou com o olhar, depois ficou vermelha ao perceber que ele não usava a armadura. – Por que não está usando sua armadura?

- Mas que droga, vamos com calma – ele tomou um gole do seu milk-shake de baunilha, como sentira falta daquilo. – Primeiro, não tenho que lhe pedir permissão de nada...

- Como... – Daniel levantou um dedo, pedindo para ela silenciar.

- Segundo, já sei porque você detesta me ver sem aradura... – ele riu quando ela arqueou uma sobrancelha, ficando mais vermelha. – Terceiro, onde conseguiu esse milk-shake e essas roupas?

- Está bem – ela suspirou. – Fui até Statera, precisei resolver algumas coisas por lá. Não poderia sair por ai usando aquele vestido.

- Tem razão, mas o que você tinha que faze por lá? – indagou o querubim.

- Isso é confidencial – ela voltou a tomar o milk-shake, parecia estar querendo ganhar tempo. – Depois eu conto para você, hoje não.

- Está bem, agora... – ele olhou para ela e gargalhou, sabia que o que iria falar a deixaria desconcertada. – Eu sei porque você detesta me ver sem armadura.

- É claro que sabe, isso é óbvio – ela evitou olhar para ele e voltou a tomar o milk-shake.

- Eu sei que é óbvio. Você não tira os olhos do eu corpo gostoso e definido... – Solária engasgou com a bebida. – Principalmente nas horas de treinamento.

- O que? – tossiu. – Que idiota, como você pode pensar isso de mim? – guinchou, sentiu seu rosto esquentar. Evitou olhar para o querubim.

Daniel sentou-se, colocou o copo para o lado e observou a Deusa. Ela bebia seu milk-shake freneticamente, seu rosto estava vermelho e desconfiado. O querubim riu silenciosamente, pois sabia que estava certo, descobrira a razão. Decidiu deixa-la mais envergonhada, aprumou seu peito e suspirou, fazendo uma lufada de ar chegar aos ouvidos da Deusa, que encolheu-se.

- Solária – chamou, ela o ignorou. – Solária... Solária... Solária... Está surda?

- Argh! O que é? – ela não desviou o olhar do copo em suas mãos.

- Olhe para mim – ele não conseguiu evitar e riu.

- O que você quer? – grunhiu, ainda sem olhar para Daniel.

- Já disse o que quero, olhe para mim... – ela não olhou, continuou a fitar o copo. – Olhe para mim... olhe para mim... olhe para mim... olhe para mim...

- Diabos! O que você quer? – ela virou-se e encarou Daniel, que sorriu de forma debochada para ela.

- Não olhe... não olhe para o meu corpo sedutor...

Ela tentou focar nos olhos dele, mas era quase impossível. Daniel queria que ela olhasse, mas ela não iria, não iria cair naquele jogo. Solária apertou o copo em sua mão, derramando um pouco da bebida na relva. Ele se mostrou presunçoso, arqueou uma sobrancelha e sorriu.

- Não olhe...

Mas ela olhou. Olhou com vontade, muita vontade. Arrependeu-se no mesmo instante, porque Daniel soltou uma risada de triunfo. Ela arremessou o copo contra ele, que desviou no último instante. Vermelha de raiva e constrangimento, ela levantou e passou por ele para ir embora, mas Daniel segurou seu braço e a fez senta-se novamente ao seu lado. Ela cruzou os braços como uma criança birrenta e fez cara feia, mas sem voltar a olhá-lo.

- Calma esquentadinha, era só um teste – vendo a cara chorosa de Solária ele ficou sério, percebendo o óbvio. – Solária... você já beijou um homem?

Foi à gota d'água, a Deusa uivou de raiva, depois chorou de tanta irritação. Era o que Daniel sempre conseguia fazer, e ela sempre caia na mesma. O querubim apenas riu dos guinchos raivosos da Deusa, essa era a sua especialidade, irritá-la.

- Já? Acho que não... então você é uma virgem – ousou divertir-se um pouco mais.

Solária nunca tinha ficado tão envergonhada em sua vida, aquilo era humilhante demais, logo vinda de seu melhor amigo. Embora soubesse que era apenas brincadeira dele, aquilo magoou de verdade. Ela não foi embora, apenas sentou-se mais afastada. A névoa densa invadiu os campos abaixo do pico, enormes nuvens pesadas baixaram sobre eles, ameaçando chover. Daniel percebeu a mudança de humor na amiga, pensou que talvez tivesse exagerado. Levantou e foi até ela, que resolveu ignorar sua presença. Daniel sentou-se ao seu lado, pegando os longos cabelos da Deusa para fazer uma trança. Ela nada fez, apenas continuou a fitar os vales cobertos de névoa. Passaram algum tempo em silêncio, o querubim terminou de trançar o cabelo de Solária e suspirou, encostou seu ombro no dela, empurrando-a de leve.

- Desculpa tá? – sussurrou.

- Não tem problema, você só falou a verdade – ela falou tristemente.

- Não quis magoa-la, é sério – de repente Daniel teve uma ideia para fazê-la sentir-se melhor. – Ei! Podemos...

- Nada disso – cortou Solária, já percebendo as intenções do querubim. – Não podemos, não temos livre arbítrio.

- Eu ia sugerir que a gente fosse treinar um pouco, para aliviar a tenção. O que você pensou? – ele sorriu ao ver o rosto dela ficar vermelho mais uma vez.

Amaldiçoando-se por dentro, Solária desejou bater com toda sua força no querubim. Burra. Tola. Estúpida. Pensou. Foi pega na dele mais uma vez e agora estava mais uma vez com uma cara de tapada. Suspirou, sentiu o rosto esquentar, mas não se deu por vencida. Permaneceu neutra, não deixou que ele percebesse que havia acertado sobre o que ela pensou.

- Não pensei nada – falou.

- Ah, pensou sim – Daniel passou o braço por Solária, forçando-a a deitar-se na relva.

Os lábios do querubim encontraram-se com os da Deusa. Ela surpreendeu-se com a atitude dele, mas não relutou. A sensação do primeiro beijo foi estranha, mas muito boa. Solária passou as mãos sobre as costas de Daniel e subiu para seu cabelo. O querubim enterrou sua língua na boca da Deusa, que sugou seus lábios com mal jeito, pois era seu primeiro beijo.

- Saia de cima de mim! – protestou, voltando a realidade.

Daniel rolou para o lado, passando a mão na boca.

- Foi bom? – perguntou curioso.

- Olhe Daniel, isso não pode voltar a acontecer! Não podemos, e se mais alguém visse isso?

- Certamente não irá acontecer de novo, foi só um beijo, relaxa...

Uma bola de fogo e faíscas materializou-se na frente deles. Lírica saiu do portal desconfiada, ela teria visto? Mas não era por isso que ela aparecera, tinha um aviso importante.

- Solária! – sua voz estava grave. – Ai está em Tenebris...

- O que? – gritou a Deusa, levantando-se .– Como isso é possível??

- Ela estava usando o colar negro, mas não se preocupe, pois Soren saberá agir se for necessário.

- Ótimo, eles não podem fazer nada enquanto Soren estiver por perto... o que será que ela está tramando?

- Não sei, mas vou descobrir... – Daniel colocou as asas para fora, sentindo-se livre.

- Não! Você não pode, ainda não está pronto – Solária colocou-se na frente do querubim.

- Estou – insistiu Daniel. – Você verá. Lírica, você vem comigo?

- Eu irei – confirmou a celeste. – Tenebris nos aguarda, vamos...

- Esperem... – Solária estava nervosa, suas mãos suavam. E se nunca mais visse Daniel? – Espere...

Ela foi até ele e o beijou. Foi um beijo rápido, mas que significou muitas coisas. Ela passou parte de sua energia celeste para ele, sentiu-se fraca e zonza. Daniel a segurou pelos ombros e beijou sua testa. Lírica assobiou, depois resmungou (eu te entregaria se não fosse minha amiga). Eles se separaram, Solária viu os dois celestes partirem. Ela esperaria até a alvorada, caso não tivesse notícias, teria ela mesmo que partir para Tenebris. A guerra estava prestes a eclodir, mas muitas surpresas ainda viriam pela frente. Ela confiaria em Daniel? Sim. Sempre.

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