31| Apetite
Deixei que Arabela vivesse. Ela não pode ficar viva, pensei. Algum tempo depois de vagar pela floresta, eu estava novamente parado diante da janela do quarto de Arabela. Deitada em sua cama, ela ainda jazia frágil e inerte, concebendo uma maldição. A pele pálida e sensível era visível sob a fraca luz da lua, seus cabelos ruivos agora estavam mais ruivos e os olhos mais verdes e brilhantes. Percebi o que havia feito quando ela sorriu para mim, exibindo as mesmas presas afiadas e mortais. Olhar para aquilo me perceber que eu realmente deveria tê-la matado. Pulei para dentro do quarto e andei lentamente até ela, preparando as mãos para quebrar seu pescoço.
Arabela tossiu fortemente e sangue grosso começou a sair de sua boca. Ela vomitou, mas não saiu nada além de sangue escuro e fétido.
"Mate-a agora, ela não vai sobreviver." A voz da entidade ecoou em meus pensamentos.
- Por que não? – indaguei, ainda observando Arabela se contorcer e cuspir mais sangue.
"Ela não tem descendência."
Descendência? Rasguei o pulso de Arabela e deixei o sangue jorrar sobre o chão. Ela nada falou, porque desmaiou depois de expelir tudo pela boca. Seu sangue já não era mais quente e vivo, o cheiro era de morte. Negro e pastoso, ele escorria de seus pulsos e pingava no chão branco. Minha sede ainda me enviava impulsos de abstinência, mas aquele sangue não parecia apetitoso. Terminando de escorrer tudo, estávamos rodeados em uma poça negra e fedida. Deitei Arabela em sua cama e limpei seus pulsos com os lençóis, fitei a poça no chão e voltei a falar com a Besta.
- Devo esperar? – perguntei.
"Sim. Quando acordar, ela vai precisar de sua ajuda para compreender o que ela se tornou."
- Tenho mesmo que fazer isso? Ela não estará morta?
"Não imediatamente, mas em breve estará. Ela não tem descendência de nada. Se algum exilado encontrar essa garota e perceber que ela foi transformada por um vampiro, vão mata-la."
- Não importa. Diga-me, eu tenho descendência de que?
"Você é mais precioso para Shaya do que imagina, tem o que ela procurava há décadas..."
- Fale agora – grunhi.
"Você é o último descendente de Trevor, o rei gelado."
Não entendi o que ele queria dizer. Trevor? Aquele rei sempre fora uma lenda entre muitas outras para explicar a criação de Blizzard. Mas Shaya e Solária também faziam parte desta história, e ambas existiam e eram importantes pilares celestiais. Tentei recordar da conversa com Shaya na floresta, na qual ela dizia que tínhamos um trato selado, mas não recordo de fazer trato algum com a deusa. Em minha outra vida, não recordo de nada que ligasse meu clã ao rei gelado. Todas as perguntas vinham em minha cabeça, mas as respostas que vinham da entidade eram sempre vagas, como se temesse dizer algo que não devia.
Arabela acordou com um solavanco, soltando um gemido rouco de dor e agonia. Corri para segurar seus braços, que se agitavam no ar. Seus olhos encontraram os meus, e eu senti o medo neles. Ela tentou falar algo, mas só ouvi grunhidos estranhos. Depois de ficar mais calma, a garota olhou com horror para a poça de sangue no chão, me lançando um olhar indagador, mas apenas a olhei em silêncio. Ouvi sons aproximando-se de nós e senti a presença de mais duas pessoas. Entrei em alerta e olhei para ela, que pareceu entender e correu em direção à porta, trancando-a. Ela olhou para seus braços cobertos de sangue escuro, depois passou a mão no pescoço, onde eu havia mordido. A presença de estranhos estava ficando mais próxima, assim como o som de suas vozes.
- Bela querida, chegamos. Você está ai? – soou a voz de uma mulher atrás da porta – Bela?
A maçaneta da porta girou e foi empurrada, mas a mulher não conseguiu abri-la.
- Arabela Manson, espero que não esteja escondendo mais um rapaz no seu quarto! Abra essa porta agora!
A mulher aumentou o tom de voz, para persuadir Arabela a abrir a porta. Olhei para ela, que estava com os olhos vidrados e depois correu até o banheiro e retirou desesperadamente o casaco, tentando inutimente lavar o sangue do pescoço e dos braços.
- Vou chamar seu pai mocinha! – gritou a mulher, distanciando-se.
O sangue pegajoso começava a feder, e Arabela agora chorava.
Batidas voltaram a soar na porta e então vi que era hora de ir embora.
- Vamos lá Bela, não precisa ficar com medo, não vamos brigar com você. Só queremos que nos apresente o rapaz.
- O que? Como pode dizer isso? Vamos brigar com ela sim! Bela só tem 19 anos, ainda é uma criança! – ralhou a mulher.
- Sabemos muito bem que Bela já não é mais uma criança, não a sufoque tanto. É por isso que ela prefere fazer tudo escondida.
Arabela saiu do banheiro com pressa, seus cabelos molhados estavam pregados no rosto e ela segurava um pano branco em volta do corpo, agora mais magro e pálido. Ela veio com passos ligeiros até onde havia uma poça de sangue e olhou para mim com descrença, mas eu já estava prostrado no parapeito da janela, pronto para saltar. Senti seu braço frio agarrar o meu e me puxar para dentro, e fiz um movimento brusco, mas ela não me largou. Observei lágrimas frenéticas rolarem por seu rosto e seu queixo tremer. Ela me observou com seus olhos verdes e profundos.
- O que fez comigo? – perguntou, com a voz embargada.
- Nada, me largue – sibilei.
Ela soltou meu braço e deu dois passos para trás, molhando os pés na poça de sangue.
- Eu vou atrás de você – murmurou.
Pulei no chão frio e coberto de neve, andando o mais rápido possível em direção a casa de Sora. Farejei seu cheio e consegui orientar-me, passando pela ponte e já avistando a casa. Senti o cheiro de Lili ao longe, ela estava na casa sozinha, não senti o cheiro de Lieff e Sora. Quando abri a porta, não encontrei ninguém sentado no sofá, muito menos na parte de baixo da casa. Subi as escadas e fui até o quarto de Lili, onde a porta já estava no lugar. Não bati, apenas girei a maçaneta, mas estava trancada. Tentei mais uma vez, mas a porta não abriu. Pensei em deixa-la sozinha, lembrando do que eu havia feito com ela.
- Quem é? – ouvi sua voz chamar.
Fiquei faminto ao ouvir sua voz, como se se fizessem anos que eu não a escutasse. Tudo ficaria estranho depois daquela mordida, eu não contei para ela sobre algo muito importante, e ela descobriu da pior forma. Afastei-me da porta e andei pelo corredor, não querendo perturbar sua paz. Ouvi a porta abrir-se e fiquei tenso quando ela não me reconheceu.
- Nero? É você? – sensações confusas emanavam dela, até que me deixaram tonto.
- Sim Lili, sou e... – ela correu para mim quando virei-me para ela.
- Seu idiota! Como é que você some assim? Onde andou? O que estava fazendo e com quem? – as perguntas não pararam de vir. – Me deixou preocupada, achei que nunca mais ia te ver! Como eu ia encontrar Daniel sozinha!?
- Quer mesmo que eu responda todas essas perguntas? – indaguei, rindo de como ela ficou furiosa tão repentinamente.
- Mas é claro! E vai me responder agora! – ela segurou minha mão e fui arrastado.
- Lili, acho que não fiz algo tão bom – ela parou de supetão e olhou para mim, tentando descobrir através do meu olhar o que eu fiz de tão grave.
- Espero que não seja nada de tão ruim. Estou esperando Sora chegar para ter uma conversa com ela também. Mas por enquanto, você vai ser o primeiro.
Lili agarrou meu casaco e puxou-me para seu quarto, me fazendo bater com o ombro na porta. Ela fechou a porta com força e me arrastou até a cama, me empurrando entre os travesseiros. Cai no colchão, fazendo alguns livros que estavam nele caírem no chão. Lili sentou-se ao meu lado, ajeitando seu cabelo para trás. Olhei para seu pescoço e vi que a ferida ainda estava feia, destacando-se entre a pele lisa e pálida.
- Me perdoe – murmurei, ela olhou para mim e assentiu.
- Está tudo bem Nero, acho que você não conseguiu evitar. Bem, a culpa também foi minha. Mas houve um lado positivo nessa história – ela me olhou e sorriu.
- O que então? – indaguei.
- Descobri minha verdadeira origem, embora não seja algo bonito, pois eu nasci em desgraça...
- Não é verdade – murmurei. – Você foi a única coisa boa que me aconteceu até agora.
Me arrependi de falar aquilo no mesmo instante, vendo a cara de espanto que ela fez.
- Obrigado – murmurou, dando um sorriso sem graça. –Estou esperando você me dizer o que aconteceu enquanto esteve fora – ela ignorou o que eu havia dito.
- Bem, não sei por onde começar. É meio complicado – minha voz saiu pesada, como se não devesse contar aquilo. – Arabela apareceu aqui à procura de Sora quando vocês duas saíram.
- Acho que ela procurava por você – murmurou. – Não pare, continue tudo. Quando você terminar, você vai me ouvir. Não faça pausas – ela mordeu uma maçã e esperou que eu continuasse.
- Eu a beijei, depois que as coisas ficaram mais agitadas, você sabe...
- Sei Nero – grunhiu, fiando com o rosto vermelho. – Continue.
- Ela me levou até sua casa, onde fizemos aquilo...
- Argh! – ela tossiu, engasgada com algum pedaço da fruta. – Você é um pervertido.
Lili começou a morder a maça com mais força, ficando tão vermelha como a fruta.
- Sem interrupções.
- Ok – ela se recompôs, sem ter coragem para me fitar.
- Depois que terminamos tudo, ela me levou para um lago congelado, onde me ensinou a andar sobre aquelas botas estranhas. A sede estava me fazendo entrar em abstinência, então eu a fiz entrar em transe e mordi seu pescoço. Levei Arabela para casa e a vi se transformar em uma criatura como eu, tão esquisita e repugnante quanto.
- Bem... isso foi grave demais Nero, tem noção do que fez? Isso não aconteceu comigo quando me mordeu.
- Verdade, mas não sei o motivo. Ela vai morrer logo.
- Como sabe disso? – Lili parecia temer qualquer coisa que saísse de minha boca.
- A entidade dentro de mim me disse, talvez fosse melhor para ela.
- Minha nossa, não sei por onde vamos resolver essa situação, essa eu não vou aguentar sozinha. Você vai ter que me ajudar, a burrada foi sua – sua voz estava fina e aguda, fazendo meus ouvidos doerem.
- Eu sei, só temos que ter cuidado com ela. O tempo cuidará do resto.
- Que coisa mais horrível de se dizer... – ela me olhou com medo e me odiei por causar aquilo. – Por que diz isso? Você não gostava dela?
- Ela era apetitosa – admiti.
- E você acha isso engraçado? – murmurou, com olhos vidrados.
- Foi interessante...
Ela se afastou um pouco. Notei uma barreira crescer entre nós.
- Nossa amizade é tão improvável – ela me fitou com tristeza.
- Por que? – indaguei.
- Porque eu não tenho o seu apetite.
Fiquei mais próximo dela, ignorando o seu medo. Ficamos em silêncio por alguns instantes. Pendi meu peso para seu lado, colidindo meu ombro com o seu.
- Está bem. Agora tenho que te contar outra coisa, uma coisa mais séria, é sobre Shaya. Ela apareceu para mim na forma de um grande lobo negro e me guiou até a floresta, onde me contou algumas coisas...
Aquilo rapidamente despertou seu interesse, e ela virou o rosto bem rápido. Nossos narizes colidiram, pois eu estava bem próximo. Ela pigarreou e se afastou rapidamente para trás, com o rosto escarlate. Não gostei da ideia de estar assustando Lili, mas era isso que estava acontecendo. Talvez minhas palavras fossem frias demais na forma como foram ditas, mesmo eu não querendo que fosse daquele jeito. Eu não queria que ela achasse que eu poderia machucá-la um dia.
- Não precisa ficar assustada, não vou machucar você – murmurei.
- Não agora, acho que isso que você quis dizer... não vai me machucar agora, mas quando sentir necessidade irá.
- Já disse que não. É uma promessa, nunca quebro uma promessa.
- Então me prometa que não vai mais machucar ninguém – ela se virou para mim com uma expressão aflita no rosto. – Vai me prometer?
- Não posso prometer o que tenho certeza que não vou cumprir, mas eu prometo protege-la...
- Me proteger de que? Não tem nada que me defender – falou impaciente, começando a ficar vermelha.
- O perigo é iminente para todos. Essa historia não acaba por aqui – voltei a sentar perto dela. – Essa promessa vou cumprir, está segura comigo.
- Que coisas você ia me contar? Me conte tudo, nada de segredos para mim, estou cheia deles! – mais uma vez ela ignorou o que eu disse.
- Shaya apresentou-se para mim, depois disse que tínhamos um trato. Não recordo de trato algum, nem quando estive vivo. Acho que tenho que matar alguém...
- Não, não! – ela ficou muito próxima, agarrando meu rosto com as duas mãos. – Por favor Nero, eu sei em quem você está pensando, mas não faça isso. Por mim...
- Não quero fazer Lili, mas tenho um pacto com Shaya – lágrimas brotaram no canto de seus olhos.
- Não, não, não... – ela cobriu o rosto com as mãos e começou a soluçar. – Não quero mais perder ninguém, chega de tantas mortes.
Percebi que Lili fraquejou rápido demais. Talvez fosse porque ainda estava abalada com sua mais nova descoberta sobre a mãe. Não gostei de vê-la chorar, e me odiei por não saber lidar com a situação.
- Lili, por favor, olhe para mim – segurei suas mãos e as baixei, fazendo-a me fitar. Percebendo agora, que seus olhos eram vermelhos. – Se você me pedir, eu não farei nada. Vou fazer o possível para não machucar ninguém, mas não posso prometer que não farei.
Ela tentou algo como um sorriso, limpando as lágrimas do rosto. Esperei até que ficasse mais calma, então contei tudo sobre o encontro com Shaya e também sobre o que a entidade disse sobre o rei gelado. Lili ouviu tudo com atenção, absorvendo cada palavra que saia de mim. Conversamos por um longo tempo, esclarecendo tudo o que aconteceu até os momentos atuais. Todas as coisas foram postas a mesa, e todas esclarecidas. Agora tínhamos um objetivo para seguir. Ouvimos o som de neve arrastando e Lili guardou a folha de anotações que estava fazendo sobre coisas que deveríamos fazer, ela tirou algo da gaveta e colocou dentro dos olhos, os fazendo ficar cinza claro.
- O que é isso? – indaguei, era estranho.
- São lentes, não vou andar por ai exibindo o vermelho dos meus olhos, é muito estranho. Afinal, preciso dessas lentes para me proteger do sol.
- Prefiro ver eles com a cor natural – ela ficou vermelha, mas agradeceu.
- Muito bem, a maior piranha de Blizzard chegou. Agora que terminei com você – ela ajeitou os cabelos. – Vou ter uma conversinha com ela, fique aqui. Não saia de casa novamente sem a minha companhia!
Ela fechou a porta, me deixando á sós com meus pensamentos.
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