24| Paraíso sombrio

Toda vez que fecho os olhos
É como um paraíso sombrio
Ninguém se compara a você
Tenho medo de você
Não estar me esperando do outro lado - (Dark Paradise - Lana Del Rey)

Fiquei parado na entrada do quarto quando elas partiram. Observei os estragos do confronto com Sora, que resultara em duas portas estraçalhadas, teto e chão quebrados e estantes reviradas. Ela tinha força suficiente para acabar comigo e descobriu algo muito poderoso sobre si, assim como eu. Algumas vezes a vi pedir ajuda, mesmo em pensamento eu consegui ouvi-la. Não que eu me importasse com ela, mas acabei pensando que talvez eu devesse ter me controlado um pouco. Uma náusea me entorpeceu, me fazendo oscilar para o lado, lembrei que mais uma vez ataquei Lili. Pensei em ir embora e deixa-la em paz, mas precisava descobrir porque não apodreci debaixo da terra, e as respostas estavam todas ali.

Olhei para meus braços e parte de mim gostou do que viu. As tatuagens me passavam algum tipo de confiança, na qual eu poderia me segurar com toda força. Pedi ajuda para a entidade e talvez aquilo me tornasse fraco. Me transformei em um ser demoníaco quando as usei contra Sora, quase matando-a. A sede voltou a me importunar quando Lili voltou aos meus pensamentos, tentei afasta-la, mas seu rosto sempre voltava a me atormentar. Fui tomado pela culpa e comecei a me sentir desconfortável naquele quarto, então desci para a sala, onde sentei exausto no sofá vermelho. Observei a chuva cair em conjunto com a neve e tentei relaxar, tentar esquecer o que aconteceu. Mas a sede estava gritando dentro de mim, minha boca salivou quando lembrei do sangue de Lili jorrando de seu pescoço. Aquela quantidade não foi o suficiente, me deixou apenas mais sedento.

Mais uma vez afastei aquele pensamento. A chuva agora começava a bater com força no vidro da janela, me embalando aos poucos em um sono tranquilo e livre de pesadelos. Senti uma leve brisa bater em meu rosto, foi quando pisquei levemente os olhos e avistei um lobo enorme e negro que me observava entre as árvores da floresta fria. O animal me fitava intensamente, seus olhos eram grandes e azuis. Sua pelagem era espeça e muito negra, o que era fácil visualizá-lo entre os troncos esbranquiçados. Me aproximei da janela e tentei ver se havia outros lobos à espreita, mas não encontrei a matilha. Ele ainda me observava intensamente, o que me lembrou Hélio, mas aquele lobo não era comum. Era grande como um alce e tinha o focinho alongado demais. Reparei que tinha algo preso na pata do lobo, algo como correntes negras. Abri a porta e saí na chuva torrencial, onde o animal me esperava calmamente, mexendo-se apenas para retirar água do pelo.

Me aproximei com cautela até ele, que não retirava os olhos dos meus. Minhas roupas já estavam encharcadas e o frio era intenso. Quando me aproximei o suficiente para toca-lo, o animal virou as costas e seguiu para dentro da floresta, parando apenas para olhar para trás e me ver parado. Me perguntei se seria seguro segui-lo, Lili me pediu para ficar na casa e aguarda-la, mas aquele lobo não aparecera apenas para dar uma volta ao redor da clareira. Ele rosnou quando continuei parado, aquilo me fez segui-lo. Andamos para as partes mais escuras da floresta, onde a luz do sol não conseguia penetrar. A chuva começava a ficar mais fraca a medida que as árvores se tornavam mais densas, impossibilitando a entrada de água. O animal adentrou mais fundo na floresta, passamos por alguns paredões de rochas congeladas e árvores com os troncos totalmente negros, o que dava uma aparência medonha ao lugar.

O lobo parou a minha frente, erguendo seu longo focinho e farejando algo. Longas nuvens de vapor saíram de sua boca quando ele uivou. Era um uivo alto e solitário, algo como uma melodia triste. Senti calafrios quando o lugar começou a ficar mais frio, o lobo voltou a uivar e vi algumas árvores moverem-se, bloqueando a entrada do mais fino raio de sol. Ainda era possível ver algumas coisas ao redor, como o animal a minha frente e várias rochas enormes.

O lobo parou de uivar e olhou para mim, sentando-se ao lado de uma rocha quase do seu tamanho. Ele apontou para o lugar com o focinho, instigando-me a sentar. Sentei na rocha fria com cuidado para não assustá-lo, mas o único animal encurralado ali era eu. Ele soltou um suspiro e mais nuvens de vapor saíram de seu focinho. O animal me penetrou com seu olhar azul intenso e senti o ímpeto de tocá-lo. Passei a mão por sua enorme cabeça, alisando sua pelagem com cuidado. Ele me surpreendeu quando deitou a cabeça em meu colo e lambeu minha mão.

Comecei a acaricia-lo com as duas mãos, esfregando suas orelhas. Ele ergueu-se sobre mim e me empurrou com suas patas enormes. Caí de costas no chão e tentei levantar, mas o lobo estava com seu focinho muito próximo ao meu rosto. Estremeci com a proximidade e tentei recuar para trás, mas ele rosnou ao me ver tentar fazer isso. Ele cheirou minhas roupas e minha pele, parando na tatuagem em meu pescoço, onde deu duas rápidas lambidas. A marca não estava mais lá quando passei a mão, havia sumido. Meu pescoço estava limpo novamente.

Depois vou dar um jeito nisso...

- Shaya!? – exclamei, lembrando que ela disse que daria um jeito naquela marca. O lobo afastou-se de mim e sentou na neve. Sua postura ficou ereta como um cão e seu rabo voltou a abanar freneticamente. – É você mesmo?

"Finalmente Nero" – ela falou em meus pensamentos.

- Então você realmente existe. O que quer de mim?

"Sora deve morrer, vai descobrir isso sozinho."

- Não entendo – cocei a cabeça, afim de tentar ligar as coisas. – O que você fez comigo?

"Apenas o que você me pediu. Você lembrará o dia em que selou um pacto comigo."

- Estranho, por que não consigo lembrar? Não recordo de ter lhe pedido para me transformar em uma aberração – grunhi.

"Assim você ofende meus esforços para te deixar tão perfeito. Lili gosta da aberração que você é."– ela colocou a enorme pata sobre o focinho, como um cão envergonhado.

- É mesmo? – desconfiei. – Como sabe disso?

"Tenho acesso às suas emoções mais intensas, assim como você têm às dela. Você está se apaixonando, e posso te deixar ficar com Lili, mas há uma condição."

Me perguntei se Shaya estaria brincando comigo, articulando um jogo em que somente ela sairia vitoriosa. Cruzei os braços e ponderei se seria certo firmar outra proposta com ela, já que eu sequer lembrava do trato que me deixou dessa forma.

- Antes de tudo, saiba que eu não estou apaixonado por ninguém. Então, qual seria essa condição? – indaguei.

"Deve matar a outra, a filha do sol. Mate-a e pode ter tudo o que desejar. Basta me pedir."– seus olhos ficaram brilhantes ao proferir as últimas palavras, o mesmo discurso da entidade.

- Tudo o que? – indaguei.

"Tudo." – ela repetiu.

- Pode me tornar humano novamente? – quase implorei que ela o fizesse ali mesmo.

"É claro. Basta matá-la."

- Como posso confiar em você? – aquilo estava bom demais para ser verdade.

"Vamos selar outro pacto agora."

O lobo gigante começou a mudar de forma, ficando de pé sobre suas patas curvadas, dando a forma a uma mulher de cabelos longos e negros. Observei quando a pele de lobo caiu aos seus pés descalços e grossas correntes penderem em seus braços até os ombros. Ela estava praticamente nua, a longa saia de véu transparente em volta de sua cintura mostrava suas pernas lisas. Jogando os longos cabelos que arrastavam no chão para o lado, ela caminhou até mim a passos lentos, me deixando apreensivo. Como se fosse a própria lua, sua pele translúcida beirava ao branco e ao azul. Shaya era linda, perfeita em seu paraíso sombrio.

- Aproxime-se Nero – ela já não falava em meus pensamentos.

- O que vai fazer?

- Vamos selar nosso outro pacto agora. Não tenha medo, eu jamais o machucaria. – sua voz era doce, saindo como uma melodia.

Dei um passou hesitante até ela, ficamos tão próximos que nossa respiração misturava-se com o vapor que saia de nossas bocas. Shaya teve de erguer a cabeça para olhar para mim, eu era bem mais alto. Seus olhos azuis me penetraram de forma intensa, ela ficou na ponta dos pés e segurou meu rosto entre suas mãos pequenas e me puxou para si. Nossos lábios se encontraram em um beijo hesitante. Seus lábios frios e traiçoeiros pareciam sugar minha o que restava de minha alma vendida. Afastei Shaya com um leve empurrão nos ombros e me senti tonto e fatigado.

- O que foi isso? – perguntei entre arfadas.

- Foi nosso contrato, agora tem minha palavra. E eu tenho a sua – ela sorriu para mim. – Tenho que partir Nero. Agora sabe onde me encontrar se quiser conversar pessoalmente.

- Onde você vai? – indaguei.

- Tenho alguns assuntos para tentar tratar com o Sr. Morte, preciso de almas ruins e sem redenção. Não desvie dos seus objetivos Nero. Até mais – ela voltou a se transformar no lobo e foi seguindo para o fundo de uma caverna escura.

"Ah Nero!" – a loba olhou para trás – "Ela também possui um enviado, cuidado. Ele pode tentar matá-lo e está aqui para protege-la e você está para matá-la."

- Quem? – indaguei, totalmente confuso.

"Ele reside na floresta, é tudo." – falando isso, ela avançou para dentro da caverna, sem me dar chance de mais perguntas.

Caminhei de volta para a casa, percebendo que a chuva havia cessado e o sol começava a adentrar a floresta. Cheguei perto da clareira onde matei as duas garotas, grandes faixas amarelas cobriam o local. Passei o mais rápido que pude e logo cheguei na casa. Vi um objeto estranho com duas rodas parado logo adiante e senti a presença de alguém. Logo reconheci seu cheiro, era Arabela. Ela estava no sofá e seus cabelos ruivos estavam bagunçados. Abri a porta e ela deu um pulo, surpresa ao me ver, mas me lançando aquele seu sorriso travesso novamente.

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