21| Cartas do sangue

"Sora deve morrer"

Acordei com um solavanco, batendo a cabeça na prateleira baixa acima da cama. Coloquei a mão na testa, sentindo o sangue escorrer, aquilo ficaria bem feio. A noite não foi tranquila, pesadelos vinham atrás de pesadelos. Cores indistintas formavam-se em minha cabeça, acordei algumas vezes e Li não estava ao meu lado. Voltava a dormir com remorso. Chorei. Me revirei para os lados, mas nada adiantou, a noite ruim ainda insistia em me trazer de volta à noite em que assassinei minha família. Sai da cama e vi que o meu moletom estava molhado de suor, junto com algumas mechas de cabelos.

Não tinha ninguém além de mim e Haru no quarto, mas a voz que me fez despertar parecia real demais. Removi o moletom, ficando apenas com o sutiã e short. Prendi meus cabelos em um coque bagunçado e vi um filete de sangue cair no chão, lembrei que havia me machucado. Passei a mão na testa e senti o ferimento arder, fui ao banheiro e vi um corte do tamanho de um dedo polegar em minha testa. Reparei que meu rosto estava diferente, o sangue escorria por ele e não me importei.. Ouvi a porta abrir, Li me procurou pelo quarto, mas não dei sinal onde estava. Ele veio ao banheiro e recuou de repente, me vendo apenas de sutiã e short.

- Oh, ãn... desculpe – ele reparou no corte em minha testa. – Ei, você está bem?

- Estou – falei, não me importei com o que ele estava vendo.

- Tem certeza? – ele se aproximou de mim e desligou a torneira que eu deixei ligada. – Você não me parece bem. Me deixe cuidar disso.

- Não precisa Li, sério – Li ergueu meu rosto com um dedo. Olhei para ele, desafiando quem desviaria o olhar primeiro. Ele não fez menção de me beijar, apenas passou o dedo sobre o sangue escorrido.

- Venha, saia desse escuro – ele puxou minha mão. – Vou te deixar novinha em folha.

- Certo – murmurei.

Me sentei na cama e o observei procurar a caixa de primeiros socorros em meio a bagunça de livros na minha estante. Mais sangue começou a escorrer do ferimento, vindo parar no canto da boca. Passei a língua e senti o sabor metalizado invadir minha boca, me perguntei como Nero poderia gostar daquilo. Li veio até mim segurando a caixa, ele sentou-se à minha frente e passou um algodão sobre onde o sangue manchou..

- Como você conseguiu fazer isso? – perguntou, erguendo uma sobrancelha.

- Tive um pesadelo – foi a única coisa que consegui dizer.

- Você definitivamente não está bem – ele me olhou com preocupação.

- Estou ótima – tentei dar um sorriso. – Hoje é meu encontro com Charlie.

- Ah – finalmente consegui afetá-lo, vendo-o fazer uma careta como se tivesse levado um soco no estômago.

- Hoje vou tocar na taverna do Joe, passem lá se quiser, vai ser legal – me senti confrontada com aquele convite provocador.A forma calma e controlada como ele falava me deixava furiosa.

- Estarei lá – grunhi.

- Que bom mocinha linda, agora fique quieta e me deixe fechar esse ferimento. Acho que isso vai doer um pouco – ele enfiou a ponta da agulha em mim, não senti nada. – Vai ficar tudo bem...

- SAI DO MEU QUARTO – gritei, tapeando a mão dele e o empurrando no chão. Ele caiu de costas e derrubou a caixa, espalhando curativos para todos os lados. – SAI AGORA!

- Sora, o que está fazendo? – ele me olhava preocupado, mas aquela calma em sua voz só me irritou mais. – O que está acontecendo com você?

- NADA, VAI EMBORA LOGO – gritei mais alto, chutando suas pernas. – VAI EMBORA DA MINHA CASA – levantei ele com brutalidade e o empurrei mais uma vez.

- Não vou embora daqui, você precisa de mim – ele ficou de pé e me encarou, depois foi andando até a porta. – E vê se cuida desse ferimento, pode infecionar.

Corri até a porta e a fechei com estrondo, a voz dele estava me irritando demais. A agulha ainda pendia enfiada em minha testa, removi ela e a joguei no chão. Fui ao guarda-roupas e retirei minha camiseta preta de caxemira, colocando por cima um moletom preto. Depois calcei minhas botinas pretas e me olhei mais uma vez no espelho, o ferimento já estava fechando mesmo. Passei um forte delineador preto e batom vermelho, depois sai do quarto e desci as escadas, me deparando com Lieff deitado no sofá e lendo aquele maldito livro novamente.

Ele desviou o olhar do livro e me fitou de cima para baixo, mas era um olhar de preocupação e suspeita. Sustentei o olhar e continuei a caminhar para a porta. Ele levantou do sofá e agarrou minha mão, me fazendo parar de repente. Não falei nada, esperei que ele dissesse algo depois me largasse, mas ele nada disse. Tentei me soltar, mas minha mão ainda estava presa a sua. Olhei para ele, que olhava para o chão, sem ter coragem de me encarar.

- Me solte – grunhi, ainda tentando me soltar do aperto.

- Não vou deixar de me importar com você. Ainda somos amigos certo?

- Eu... – tentei falar, mas minha voz não saiu. Lieff ainda olhava para baixo, mas pude sentir sua respiração pesada. – Eu não sei. Acho que não. Me solte.

- Foi como pensei, algo mudou em você – ele soltou minha mão e olhou para mim. – Aviso logo que não vou perde-la pra si mesma.

E com essas últimas palavras ele subiu as escadas. Abri a porta e sai na manhã gélida de sábado, a névoa estava mais densa do que nunca, me impossibilitando de ver o que vinha adiante. O caminho para a cidade eu sabia de cor, cheguei até lá em apenas alguns minutos. A grande árvore da praça estava com seus galhos e folhas cobertos de gelo. Uma fina garoa começou a cair e me apressei para chegar à casa da velha Lisander, era uma vidente charlatã, mas eu queria saber o que estava acontecendo comigo. A pequena casa atrás da praça parecia quente e acolhedora, bati apressadamente e ouvi um resmungo vindo de dentro da casa.

- Essas garotas de hoje.... – pensei em como ela teria adivinhado que era uma garota. Ela abriu apenas uma fresta da porta e me olhou com os olhos cerrados.

- Vai me deixar entrar ou não? – perguntei já irritada com a garoa que havia aumentado.

- É claro querida – murmurou.

A velha abriu a porta e entrei rapidamente. Um cheiro bom vinha da cozinha e lembrei que não tomei café da manhã. A porta se fechou com um estrondo e ela passou com pressa por mim, murmurando algo sobre lebres cozidas. As paredes eram todas revestidas de peles de lobo, o que explicava o calor que emanava da casa. Não havia fotos, muito menos jarros de flores, haviam cabeças de lobos empalhadas nas paredes. Me aproximei das cabeças e vi que abaixo de cada uma tinha um nome entalhado. Era uma caligrafia bonita, parecia ter sido escrita com muito cuidado na tira de couro branco. Eram inúmeras as cabeças, fui andando até parar numa que me chamou atenção em particular. Era a cabeça de um lobo negro com olhos amarelos, o reconheci como o lobo da ponte por causa da cicatriz na boca. Passei o dedo na tira de couro e li a frase: Guerreiro, fiel e amigo. Esse lobo pertenceu a Nero Lancaster, Príncipe de Blizzard.

Me perguntei se Nero sabia disso, se ele sabia que a cabeça de seu lobo estava empalhado na parede da moradora mais antiga da cidade. Olhei para trás e ela me observava com interesse, me senti culpada por sair bisbilhotando sua casa sem permissão. Ela me convidou para sentar ao redor de uma mesinha baixa, não tinha cadeiras, então nos sentamos em almofadas. Ela colocou uma caixa sobre a mesa e retirou de dentro um baralho em branco, depois dois pequenos ossos e uma faquinha.

- O que quer saber filha? – perguntou, com sua voz rouca.

- Pensei que... pensei que...

- Calma, não precisa ficar nervosa – ela espalhou quatro cartas em branco sobre a mesa. – Só me diga o que veio fazer aqui.

- Bem, quero saber o que eu sou – disparei. – Quero saber a verdade, estou ficando louca.

- Pegue – ela me estendeu a pequena faca ornamentada com ossos.

- Não entendo, o que quer que eu faça? – fiquei confusa.

- Não é obvio? Quero que derrame um pouco de sangue aqui – ela arrastou uma carta em minha direção. – Vamos lá.

- O que? Isso é besteira... – guinchei.

- Se é besteira, então por que veio? – ela não olhou para mim, apenas ficou fazendo uma mistura de ervas pisadas. – Vamos lá.

- Não preciso derramar mais sangue, olhe só, fiz um ferimento hoje – passei a mão sobre a testa e senti a pele lisa, já havia curado. – Deixa pra lá...

- Beba – ele me interrompeu mais uma vez, começando a me irritar. Peguei o copo que ela estendeu e observei a mistura verde dentro dele. – Vamos lá.

- O que é isso? – o cheiro era ruim.

- Apenas beba, vamos lá – a velha ajeitou o gorro branco em sua cabeça e esperou que eu bebesse.

- Certo – olhei hesitante novamente para a bebida verde e então engoli tudo de uma vez. Tinha um sabor doce e amargo, não era tão ruim assim.

- Agora derrame o sangue, é essencial – ela sorriu para mim e esperei ver uma boca sem dentes, mas o que vi foi uma fileira de dentes brancos e perfeitos.

- Tudo bem – lhe devolvi o copo. – Tem de ser na carta?

- Sim, vamos lá.

Cortei a ponta do dedo com a faca, não foi nada agradável. O sangue pingou na carta e ela absorveu tudo, todas as gotas de sangue. Fiquei estarrecida quando a carta começou a tremer, Lisander me estendeu as outras três cartas e derramei mais sangue nelas. Ela recolheu as cartas e me estendeu um bolo de algodão para enrolar no dedo, apenas aceitei para que ela não visse o corte se fechar magicamente.

- Não precisa esconder – ela me pegou de surpresa ao dizer isso. – Chega de tantos segredos não acha?

- Acho – murmurei.

- Agora vamos as perguntas – ela remexeu nas cartas e jogou os pequenos ossos na mesa. – Vamos lá, pergunte.

- Bem... o que eu sou? – senti a atmosfera ficar tensa e um arrepio seguiu em minha espinha.

- Vocês ouviram, o que ela é? – olhei ao redor e não vi mais ninguém, ela falava com os ossos. Eles começaram a rodar em volta das cartas e pararam em cima de uma. Escrituras em vermelho começaram a aparecer na carta em branco, Lisander a pegou e leu atentamente.

- Você é a filha de duas mães, metade de uma e metade de outra – ela colocou a carta separada das outras, peguei a carta, mas as palavras estavam embaralhadas.

- Como assim? Como você conseguiu ler isso? – eu não entendi nada do que ela disse.

- Cuidado, não deve desperdiçar perguntas. Vamos lá, faça outra para meus meninos.

- Tudo bem... – pensei com cuidado na próxima pergunta. – Quem é Nero?

Os ossos voltaram a rodar entre as cartas e pararam em cima de outra. Pensei e apanhá-la antes de Lisander, mas ela foi mais rápida.

- Não volte a tentar isso, pode ver o que mais deseja esquecer – ela olhou para a carta e pareceu intrigada com o que tinha escrito. – Nero é aquele que acordou para te faz­­­er dormir.

- Mas o que...

- Não desperdice perguntas – ela me interrompeu, colocando a segunda carta em cima da primeira.

- Vamos logo para a próxima – aquilo já estava me irritando, não encontrei nexo entre essas respostas.

- Pergunte, eles estão esperando.

- Como posso encontrar mais respostas? – Lisander me olhou com um sorriso, aprovando minha pergunta. Ela pegou a carta e leu.

- Converse com o Sol, depois com a Lua – só me restava mais uma pergunta.

- Só lhe resta mais uma – ela repetiu, como se lesse meus pensamentos. Decidi deixar essa última pergunta fora de preocupação, seria uma pergunta fútil.

- Quem me ama acima de tudo? – disparei. A última carta foi lida com ênfase.

- Aquele que você magoa mais que tudo. Aquele que está sendo desprezado e que dará a vida para te manter viva.

- Ah... – ninguém que eu estivesse magoando veio à mente, mais uma pergunta desperdiçada. Levantei da almofada e peguei dinheiro no casaco, pondo em cima da mesa.

- Não precisa, você voltará até mim. Temos uma ligação agora.

- Eu voltarei sim, você é muito boa – andei até a porta, mas antes olhei para ela e depois para o lobo. – Ah, Nero, o príncipe de Blizzard acordou da tumba e está morando lá em casa – sai a tempo de vê-la fazer uma cara de surpresa. A forte chuva que estava caindo molhou meus cabelos e borrou minha maquiagem, mas aquilo não importava. Mal esperaria para contar a Lieff o que eu descobri, ou talvez pensava que sim.

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