17| Menina natureza
Fiquei sozinha no banheiro que estava quase todo destruído. As paredes inclinadas e o piso rachado denunciaram que algo muito errado aconteceu ali. Cerrei os dentes, todos estavam me ignorando e eu não havia feito nada. Algo ruim aconteceu e eu fiquei a parte de tudo. Aquela risada veio de dentro da cripta, onde eu evitei ao máximo entrar, mas Li entrou com a Coisa. Ouvi uma batida na porta, por um momento pensei que Charlie estava de volta, mas era apenas Lili saindo com a coisa. Não me importei, eles que resolvessem seus problemas. Odiei sentir ciúmes da amizade que eles estavam criando, odiava ter quer dividir melhores amigos.
A adaga que encontrei estava largada no chão, peguei e a pus no bolso do short. Decidi ir atrás de respostas, estava cansada de não ficar sabendo de nada e principalmente de fugir. Lili estava tramando algo com aquela Coisa e eu iria descobrir. Fui atrás de Lieff na cozinha, mas ele não estava. Chamei por seu nome, mas não houve resposta. Fui até meu quarto e o encontrei lá, ele estava procurando algo em sua mochila quando entrei, parando de supetão na soleira da porta. Ele apenas me olhou com tédio e voltou a procurar algo na mochila, me senti horrível por estar sendo ignorada daquela maneira.
- Posso falar com você? – falei, quase sussurrando.
- Ah claro – respondeu, sem olhar para mim.
- Humm, você estava com a Coisa naquela cripta, o que houve lá dentro?
- Coisa? Não seja tão infantil, chame-o pelo nome – resmungou.
- Hum, certo. Pode me responder agora? – grunhi, odiando ser chamada de criança.
- Bem... – ele pareceu selecionar suas palavras com cuidado, depois voltou a remexer dentro da mochila. – Ah, encontrei – exclamou, retirando um moletom preto.
- Me responde – grunhi.
- An? Desculpe, me distrai – aquele seu tom de voz presunçoso estava começando a me irritar. Ele vestiu o moletom, cobrindo seu peito nu e continuou a remexer dentro da mochila como se eu não tivesse feito pergunta alguma.
- O que houve na cripta? O que houve com sua blusa? – disparei.
Ainda sem me responder, ele soltou um longo suspiro e pegou sua mochila, disparando para a saída.
- Não vai não – grunhi, ficando entre ele e a porta. – Me responde Lieff!
- Aconteceu algo muito estranho, Nero tem algo dentro dele, algo ruim! – ele falou com muita pressa, fazendo sua voz sair esganiçada. – De repente o pescoço dele começou a arder e joguei minha blusa para ajuda-lo, mas a blusa pegou fogo, foi isso!
- Só isso? – desconfiei.
- Pergunte para ele o restante da novela! – gritou, me surpreendendo por perder a paciência comigo.
- Não grita comigo! – ralhei. – O que eu fiz para você seu idiota?
- Nada, me deixe passar.
- Só depois de você me dizer o que está acontecendo, o que eu te fiz? – perguntei, mas no fundo já sabia a resposta.
- Nada, você não fez nada Sora.
- Então por que você está me tratando com indiferença?
- Indiferença? Está tudo bem, só estou tendo um dia ruim, só isso. Agora me deixe passar, saia da frente Sora.
- Eu... – balbuciei, não consegui terminar a frase quando vi o olhar hostil que ele me lançava. – Talvez...
Ficamos nos encarando por alguns instantes, ele não desviou o olhar nenhum segundo sequer. Aquele olhar irritado que nunca imaginei receber de Lieff. Ele deu alguns passos à frente, hesitante a princípio, mas depois avançou pra valer.
- Saia da frente – ralhou, colocando a mão em meu ombro e me empurrando com um pouco de força para o lado, o que foi o suficiente para me fazer cambalear e quase cair. Aquilo foi à gota d'água.
- EU NÃO SOU SUA NAMORADA LIEFF! – gritei, empurrando-o para fora do quarto.
- EU NÃO PEDI QUE FOSSE! – ele gritou de volta, com a ponta do nariz e as orelhas em escarlate, típicos de quando ficava muito irritado.
- ENTÃO PARE DE AGIR COMO SE A GENTE FOSSE, EU POSSO SAIR COM QUEM EU QUERO!
- É CLARO QUE PODE. VOCÊ PODE SAIR TREPANDO COMO UMA VADIA COM UM CARA QUE QUER TE VER PRESA!
- NÃO ME CHAMA DISSO! – urrei.
Controlei a imensa vontade que senti de estapeá-lo, pois meu coração doía a cada grito que ele ele lançava para me ferir Lieff me ignorou e seguiu em frente, achando que podia jogar toda a sua frustração em meus ombros. Corri até ele antes que alcançasse a escada, segurei-o pela gola e o puxei para trás, quase o fazendo cair e abrindo um rasgão em seu moletom Ele grunhiu em resposta e tapeou minha mão para que eu o largasse. A fúria foi crescendo à medida que ele tocava com brutalidade em mim, porque Lieff nunca fez aquilo, foi quando rasguei sua bochecha com as unhas e ele urrou furioso, agarrando meus pulsos com tanta força que achei que fosse quebra-los.
- PARA COM ISSO – gritei. – A GENTE TEM QUE CONVERSAR!
Ele me jogou contra a parede e por um momento me olhou com arrependimento, mas depois voltou a seguir seu caminho.
- SEU IDIOTA! NÃO ME CULPE SE EU NÃO TE AMO!
- TAMBÉM NÃO PEDI QUE ME AMASSE. MUITO MENOS QUE TENHA PENA DE MIM. VOCÊ É UMA PESSOA HORRÍVEL QUANDO QUER. NÃO BRINQUE COMIGO SUA VAD... – não deixei que ele terminasse e lancei minha mão contra seu rosto. Ele ficou com a cabeça virada por alguns instantes. A marca da minha mão em suas feições era bem visível, assim como o arranhão.
- NÃO CHEGUE PERTO DE MIM!! – gritou, me olhando com um desprezo terrível.
- VAI EMBORA – gritei. Por alguns instantes senti que eu não estava mais ali, e quando voltei, a única coisa que importava era feri-lo de alguma forma.
Caí de joelhos e deixei que a fúria me consumisse, meu corpo ficou tão frio que achei que fosse congelar. De repente era como se eu não estivesse mais ali e toda a sanidade, aos poucos, se esvaísse de mim por conta da fúria. Despertei do torpor quando escutei um estrondo e depois Lieff gritar. Olhei horrorizada para seu corpo estendido e inerte no final do corredor. Um filete de sangue escorria pela parede e então entendi o que havia acabado de acontecer. Olhei para minhas mãos trêmulas e não consegui acreditar que tudo estava se repetindo. Corri para Li, que ainda jazia no chão. Quando me aproximei, quase gritei ao ver que escorria sangue de seu nariz e boca.
- O que você é? – murmurou, me tirando da onda de pânico.
Embora debilitado, ele me olhava com um misto de medo e preocupação.
- Me desculpa. Eu não quis... – não consegui continuar. Um nó surgiu em minha garganta. Lágrimas vieram depois. Como pude machucar meu melhor amigo?
Li conseguiu sentar e para minha surpresa ele agarrou meu braço e me puxou para perto. Sua expressão de raiva sumiu. Ele tentava parecer tranquilo, mas eu sabia que estava assustado.
- Sora, o que você acabou de fazer?
- Eu... eu não sei... não consegui ver – balbuciei.
Ele examinou minhas mãos, como se estivesse esquecido tudo que havia acontecido segundos antes. Senti meus olhos arderem. A garganta apertou e as lágrimas rolaram por minhas bochechas, levei uma das mãos ao rosto, tentando esconder a vergonha de fraquejar. Lieff afastou minha mão e me fitou pelo que se pareceram horas. Comecei a chorar descontroladamente, soluços subiam até minha garganta, soluços que mais pareciam engasgos. Li afagou minha cabeça e me envolveu por completo em seus braços. Aquele fez o frio das minhas mãos ir embora.
Ele me abraçou com mais força e sussurrou um pedido de desculpas em meu ouvido. Assenti em silêncio e também pedi perdão pelo que fiz e pelo que eu estava me tornando. Pensei no que estava fazendo, pensei no que a falta de controle poderia fazer comigo. Li me afastou com as duas mãos e me fitou com um misto de curiosidade e espanto. Ele limpou as lágrimas que ainda rolavam sobre meu rosto, depois passou o dedo sobre meus olhos.
- Seus olhos – sussurrou ele. – Estão azuis.
- Não... não... – murmurei, sabendo que tudo estava voltando.
- Não estão verdes. Estão azuis – ele me segurou pelo braço e me levou até o quarto, me pondo em frente ao espelho da penteadeira. – Olhe, estão azuis.
E realmente estavam. Meus olhos verdes haviam se esvaído dali, me deixando com um azul intenso e frio. Também notei que algumas mechas do cabelo estavam mais escuras, beirando ao preto. Fiquei assustada com aquilo, estava acontecendo novamente. Levantei da cadeira e fitei Li, que estava parado logo atrás de mim, também notando a mudança em meus cabelos.
- Eles sempre voltam à cor normal, é só esperar – falei apressadamente, em uma tentativa de me explicar melhor.
- O que? Você sempre soube disso? – perguntou.
- Não, quer dizer, sim – gaguejei. – Mas... mas apenas em momentos de extrema raiva. Eu não sei o que acontece comigo Li.
- Calma. Tudo isso está muito estranho. Lili sabe sobre isso? – perguntou, passando a mão sobre seus cabelos alvíssimos.
- Não. Apenas eu e papai sabíamos. Não conte para ela Li, por favor. Não quero que Lili saiba, não agora – implorei.
- Tudo bem, mas vamos tentar nos acalmar – ponderou, passando a manga do moletom no rosto para limpar o sangue – Há quanto tempo Sora?
- Bem, acho que desde sempre. Meu pai sempre soube que eu tinha algo de estranho dentro de mim, ele dizia que era especial.
- Será que isso tem algo ligado com Nero?
- Espero que não, mas tudo está acontecendo tão rápido, não consigo relacionar as coisas – choraminguei.
- Sora, por acaso isso tem algo com o acidente de carro?
Aquela pergunta foi como um soco em meu estômago. Fiquei enjoada. Pus a mão sobre a testa, uma dor de cabeça começava a se formar ali. Li agarrou meus ombros e começou a massageá-los. Senti calafrios sobre minha coluna, aquilo era bom, era o que me acalmava. Soltei um suspiro quando ele me abraçou por trás, enterrando seu rosto em meu pescoço. Ele começou a suspender meu corpo num balanço lento para os lados, me fazendo oscilar. Soltei uma risada abafada quando ele tropeçou em meus pés, quase nos fazendo cair. Não acreditei que briguei com Li daquela maneira tão baixa, não acreditei que pude descer tanto apenas para magoá-lo.
Girei para frente e o abracei com força. Era um abraço de agradecimento, porque mesmo depois de eu tê-lo magoado da pior forma possível, ele ainda continuava comigo, tentando resolver meus problemas e me apoiando em tudo. Li passou a mão sobre meus cabelos e beijou minha testa, quase afastando a dor dali. Olhei para seu rosto e ele sorriu. Um sorriso que me fez desejar que ele me beijasse, mas ele não o fez. Uma sensação de culpa cresceu ao pensar que poderia brincar com seus sentimentos daquela maneira. Afastei aquele pensamento.
- O que acha de comer alguma coisa e depois a gente conversa mais sobre isso, hein? – perguntou Li, me trazendo para a realidade.
- Ah, tudo bem. Estou faminta – falei, lembrando da refeição interrompida por Chuck e Charlie.
- Vamos lá então.
Comemos sanduíches vegetarianos e nos deitamos na cama. O filme era longo e me deu bastante sono. Quando ergui a cabeça do peito de Li ele já estava dormindo, sereno, como se aquilo o tivesse esgotado ao máximo. Olhei para o curativo bem colocado em sua bochecha e na ponta muito vermelha de seu nariz e pensei no quanto eu o havia maltratado hoje. Quando o filme acabou decidi que era hora de dizer a verdade para Li, a verdade de tudo. A verdade sobre o acidente que matou mamãe, papai e Kalinne, mas o seu sono estava tão profundo e contagiante, que logo me aninhei em seu peito e fechei os olhos, desejando que ele não me considerasse um monstro quando acordasse.
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